Médicos cubanos assustam o Conselho Federal de Medicina. Corporativistas temem que mudança do foco no atendimento abale o sistema mercantil de saúde do Brasil
A virulenta reação do Conselho Federal de Medicina (CFM) contra a vinda de seis mil médicos cubanos para trabalhar em áreas absolutamente carentes do país é
muito mais do que uma atitude corporativista: expõe o pavor que uma
certa elite da classe médica tem diante dos êxitos inevitáveis do modelo
adotado na ilha, que prioriza a prevenção e a educação para a saúde,
reduzindo não apenas os índices de enfermidades, mas sobretudo a
necessidade de atendimento e os custos com a saúde.
Essa não é a primeira investida
radical do CFM e da Associação Médica Brasileira contra a prática
vitoriosa dos médicos cubanos entre nós. Em 2005, quando o governador de
Tocantins não conseguia médicos para a maioria dos seus pequenos e
afastados municípios, recorreu a um convênio com Cuba e viu o quadro de
saúde mudar rapidamente com a presença de apenas uma centena de
profissionais daquele país.
A reação das entidades médicas de
Tocantins, comprometidas com a baixa qualidade da medicina pública que
favorece o atendimento privado, foi quase de desespero. Elas só
descansaram quando obtiveram uma liminar de um juiz de primeira
instância determinando em 2007 a imediata “expulsão” dos médicos
cubanos.
No Brasil, o apego às grandes cidades
Neste momento, o governo da
presidenta Dilma Rousseff só está cogitando de trazer os médicos
cubanos, responsáveis pelos melhores índices de saúde do Continente,
diante da impossibilidade de assegurar a presença de profissionais
brasileiros em mais de um milhar de municípios, mesmo com a oferta de
vencimentos bem superiores aos pagos nos grandes centros urbanos.
E isso não acontece por acaso. O
próprio modelo de formação de profissionais de saúde, com quase 58% de
escolas privadas, é voltado para um tipo de atendimento vinculado à
indústria de equipamentos de alta tecnologia, aos laboratórios e às
vantagens do regime híbrido, em que é possível conciliar
plantões de 24 horas no sistema público com seus consultórios e clínicas
particulares, alimentados pelos planos de saúde.
Mesmo com consultas e
procedimentos pagos segundo a tabela da AMB, o volume de clientes é
programado para que possam atender no mínimo dez por turnos de cinco
horas. O sistema é tão direcionado que na maioria das especialidades o
segurado pode ter de esperar mais de dois meses por uma consulta.
Além disso, dependendo da
especialidade e do caráter de cada médico, é possível auferir
faturamentos paralelos em comissões pelo direcionamento dos exames
pedidos como rotinas em cada consulta.
Sem compromisso em retribuir os cursos públicos
Há no Brasil uma grande
“injustiça orçamentária”: a formação de médicos nas faculdades públicas,
que custa muito dinheiro a todos os brasileiros, não presume nenhuma
retribuição social, pelo menos enquanto não se aprova o projeto do
senador Cristóvam Buarque, que obriga os médicos recém-formados que
tiveram seus cursos custeados com recursos públicos a exercerem a
profissão, por dois anos, em municípios com menos de 30 mil habitantes
ou em comunidades carentes de regiões metropolitanas.
Cruzando informações, podemos
chegar a um custo de R$ 792 mil para o curso de um aluno de faculdades
públicas de Medicina, sem incluir a residência. E se considerarmos o
perfil de quem consegue passar em vestibulares que chegam a ter 185
candidatos por vaga (Unesp), vamos nos deparar com estudantes de classe
média alta, isso onde não há cotas sociais.
Um levantamento do Ministério da
Educação detectou que na medicina os estudantes que vieram de escolas
particulares respondem por 88% das matrículas nas universidades bancadas
pelo Estado. Na odontologia, eles são 80%.
Em faculdades públicas ou
privadas, os quase 13 mil médicos formados anualmente no Brasil não
estão nem preparados, nem motivados para atender às populações dos
grotões. E não estão por que não se habituaram à rotina da medicina
preventiva e não aprenderam como atender sem as parafernálias
tecnológicas de que se tornaram dependentes.
Concentrados no Sudeste, Sul e grandes cidades
Números oficiais do próprio CFM
indicam que 70% dos médicos brasileiros concentram-se nas regiões
Sudeste e Sul do país. E em geral trabalham nas grandes cidades. Boa
parte da clientela dos hospitais municipais do Rio de Janeiro, por
exemplo, é formada por pacientes de municípios do interior.
Segundo pesquisa encomendada pelo
Conselho, se a média nacional é de 1,95 médicos para cada mil
habitantes, no Distrito Federal esse número chega a 4,02 médicos por mil
habitantes, seguido pelos estados do Rio de Janeiro (3,57), São Paulo
(2,58) e Rio Grande do Sul (2,31). No extremo oposto, porém, estados
como Amapá, Pará e Maranhão registram menos de um médico para mil
habitantes.
A pesquisa “Demografia Médica no
Brasil” revela que há uma forte tendência de o médico fixar moradia na
cidade onde fez graduação ou residência. As que abrigam escolas médicas
também concentram maior número de serviços de saúde, públicos ou
privados, o que significa mais oportunidade de trabalho. Isso explica,
em parte, a concentração de médicos em capitais com mais faculdades de
medicina. A cidade de São Paulo, por exemplo, contava, em 2011, com oito
escolas médicas, 876 vagas – uma vaga para cada 12.836 habitantes – e
uma taxa de 4,33 médicos por mil habitantes na capital.
Mesmo nas áreas de concentração
de profissionais, no setor público, o paciente dispõe de quatro vezes
menos médicos que no privado. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde
Suplementar, o número de usuários de planos de saúde hoje no Brasil é
de 46.634.678 e o de postos de trabalho em estabelecimentos privados e
consultórios particulares, 354.536.Já o número de habitantes que
dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) é de 144.098.016
pessoas, e o de postos ocupados por médicos nos estabelecimentos
públicos, 281.481.
A falta de atendimento de saúde
nos grotões é uma dos fatores de migração. Muitos camponeses preferem ir
morar em condições mais precárias nas cidades, pois sabem que, bem ou
mal, poderão recorrer a um atendimento em casos de emergência.
A solução dos médicos cubanos é
mais transcendental pelas características do seu atendimento, que mudam o
seu foco no sentido de evitar o aparecimento da doença. Na Venezuela,
os Centros de Diagnósticos Integrais espalhados nas periferias e
grotões, que contam com 20 mil médicos cubanos, são responsáveis por uma
melhoria radical nos seus índices de saúde.
Cuba é reconhecida por seus êxitos na medicina e na biotecnologia
Em sua nota ameaçadora, o CFM
afirma claramente que confiar populações periféricas aos cuidados de
médicos cubanos é submetê-las a profissionais não qualificados. E
esbanja hipocrisia na defesa dos direitos daquelas pessoas.
Não é isso que consta dos números
da Organização Mundial de Saúde. Cuba, país submetido a um asfixiante
bloqueio econômico, mostra que nesse quesito é um exemplo para o mundo e
tem resultados melhores do que os do Brasil.
Graças à sua medicina preventiva,
a ilha do Caribe tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa da
América e do Terceiro Mundo – 4,9 por mil (contra 60 por mil em 1959,
quando do triunfo da revolução) – inferior à do Canadá e dos Estados
Unidos. Da mesma forma, a expectativa de vida dos cubanos – 78,8 anos
(contra 60 anos em 1959) – é comparável a das nações mais desenvolvidas.
Com um médico para cada 148
habitantes (78.622 no total) distribuídos por todos os seus rincões que
registram 100% de cobertura, Cuba é, segundo a Organização Mundial de
Saúde, a nação melhor dotada do mundo neste setor.
Segundo a New England Journal of
Medicine, “o sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos.
Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente
gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu
sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu
resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do
que os EUA”.
O Brasil forma 13 mil médicos por
ano em 200 faculdades: 116 privadas, 48 federais, 29 estaduais e 7
municipais. De 2000 a 2013, foram criadas 94 escolas médicas: 26
públicas e 68 particulares.
Formando médicos de 69 países
Em 2012, Cuba, com cerca de 13
milhões de habitantes, formou em suas 25 faculdades, inclusive uma
voltada para estrangeiros, mais de 11 mil novos médicos: 5.315 cubanos e
5.694 de 69 países da América Latina, África, Ásia e inclusive dos
Estados Unidos.
Atualmente, 24 mil estudantes de
116 países da América Latina, África, Ásia, Oceania e Estados Unidos
(500 por turma) cursam uma faculdade de medicina gratuita em Cuba.
Entre a primeira turma de 2005 e
2010, 8.594 jovens doutores saíram da Escola Latino-Americana de
Medicina. As formaturas de 2011 e 2012 foram excepcionais com cerca de
oito mil graduados. No total, cerca de 15 mil médicos se formaram na
Elam em 25 especialidades distintas.
Isso se reflete nos avanços em
vários tipos de tratamento, inclusive em altos desafios, como vacinas
para câncer do pulmão, hepatite B, cura do mal de Parkinson e da dengue.
Hoje, a indústria biotecnológica cubana tem registradas 1.200 patentes e
comercializa produtos farmacêuticos e vacinas em mais de 50 países.
Presença de médicos cubanos no exterior
Desde 1963, com o envio da
primeira missão médica humanitária à Argélia, Cuba trabalha no
atendimento de populações pobres no planeta. Nenhuma outra nação do
mundo, nem mesmo as mais desenvolvidas, teceu semelhante rede de
cooperação humanitária internacional. Desde o seu lançamento, cerca de
132 mil médicos e outros profissionais da saúde trabalharam
voluntariamente em 102 países.
No total, os médicos cubanos
trataram de 85 milhões de pessoas e salvaram 615 mil vidas. Atualmente,
31 mil colaboradores médicos oferecem seus serviços em 69 nações do
Terceiro Mundo.
No âmbito da Alba (Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América), Cuba e Venezuela decidiram
lançar em julho de 2004 uma ampla campanha humanitária continental com o
nome de Operação Milagre, que consiste em operar gratuitamente
latino-americanos pobres, vítimas de cataratas e outras doenças
oftalmológicas, que não tenham possibilidade de pagar por uma operação
que custa entre cinco e dez mil dólares. Esta missão humanitária se
disseminou por outras regiões (África e Ásia). A Operação Milagre dispõe
de 49 centros oftalmológicos em 15 países da América Central e do
Caribe. Em 2011, mais de dois milhões de pessoas de 35 países
recuperaram a plena visão.
Quando se insurge contra a vinda
de médicos cubanos, com argumentos pueris, o Conselho Federal de
Medicina (CFM) adota também uma atitude política suspeita: não quer que
se desmascare a propaganda contra o regime de Havana, segundo a qual o
sonho de todo cubano é fugir para o exterior. Os mais de 30 mil médicos
espalhados pelo mundo permanecem fiéis aos compromissos sociais de quem
teve todo o ensino pago pelo Estado, desde a pré-escola e de que, mais
do que enriquecer, cumpre ao médico salvar vidas e prestar serviços
humanitários.
Por Pedro Porfírio, em seu blog