A resistência ao projeto que obrigará os estudantes de medicina a trabalhar dois anos no SUS expõe a fratura social do Brasil
Eliane Brum, Revista Época
O
programa “Mais Médicos”, lançado pela presidente Dilma Rousseff, não vai
resolver o problema do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas pode, sim, ser
parte da solução. Ou alguém realmente acredita que colocar mais médicos
nos lugares carentes do Brasil pode fazer mal para a população? Sério
que, de boa fé, alguém acredita nisso? A veemência dos protestos contra o
projeto de ampliar o curso de medicina de seis para oito anos e tornar
esses dois últimos anos um trabalho remunerado para o SUS revela muito.
Especialmente o quanto é abissal a fratura social no Brasil. E o quanto a
parte mais rica é cega para a possibilidade de fazer a sua parte para
diminuir uma desigualdade que deveria nos envergonhar todos os dias – e
que, no caso da saúde, mata os mais frágeis e os mais pobres.
Para
resolver o problema do SUS é preciso assumir, de fato, o compromisso com
a saúde pública gratuita e universal. O que significa investir muito
mais recursos. Em 2011, segundo dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS), o Brasil gastou US$ 477 per capita em saúde. Menos do que
vizinhos como Uruguai (US$ 817,8) e Argentina (US$ 869,4), por exemplo. E
quase seis vezes menos do que o Reino Unido (US$ 2.747), cujo sistema
de saúde tem sido apresentado como referência do projeto do governo.
Hoje, falta dinheiro e falta gestão eficiente. Sem dinheiro e sem
eficiência, duas obviedades, não se constrói um sistema decente. Mas,
para investir mais dinheiro no SUS, é preciso tocar também em questões
sensíveis, como o financiamento da saúde privada. Falta dinheiro no SUS
também – mas não só – porque o Estado tem subsidiado a saúde dos mais
ricos via renúncia fiscal.
Um
recente estudo do IPEA (leia aqui) mostrou que, em 2011, último ano
avaliado, quase R$ 16 bilhões de reais deixaram de ser arrecadados pelo
governo, por dedução no imposto de renda de pessoas físicas e jurídicas e
desoneração fiscal da indústria farmacêutica e de hospitais
filantrópicos. O que é, de fato, renúncia fiscal? Um pagamento feito
pelo Estado: ele não desembolsa, mas paga, ao deixar de receber. Assim,
quase R$ 16 bilhões, o equivalente a 22,5% do gasto público federal em
saúde, deixaram de ser investidos no SUS para serem transferidos para o
setor privado, numa espécie de distribuição de renda para o topo da
pirâmide. Para ter uma ideia do impacto, é mais do que os R$ 13 bilhões
que o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, afirma que o governo está
investindo em unidades básicas de saúde, pronto-atendimento e hospitais.
Não é a toa que, entre 2003 e 2011, o faturamento do mercado dos planos
de saúde quase dobrou e o lucro líquido cresceu mais de duas vezes e
meia acima da inflação.
O
governo tem estimulado a população – e também os empregadores – a
investir em saúde privada. Um plano de saúde privado tornou-se uma marca
de ascensão social. A “classe C” ou “nova classe média” tem sido vítima
de planos de saúde mequetrefes que, na hora de maior necessidade,
deixam as pessoas desprotegidas. Como muitos já sentiram na pele, quando
a coisa realmente aperta, quando a doença é séria e requer recursos e
intervenções de ponta, quem vai resolver não é a rede privada, mas o
SUS, porque uma parte significativa dos planos não cobre os exames e
tratamentos mais caros.
Para que
a solução seja estrutural – e não cosmética – é preciso acabar com as
distorções e fortalecer o SUS. Sem dinheiro, o SUS vai sendo sucateado e
se torna o destino apenas dos mais pobres e com menos instrumentos para
reivindicar seus direitos. Assustada com a precarização do SUS, a
classe média se sacrifica para pagar um plano privado, que tem sempre
muitas letras miúdas. Os trabalhadores organizados incluem saúde privada
na pauta sindical, afastando-se da luta do SUS. Quem tem mais poder de
pressão para pressionar o Estado por saúde pública de qualidade,
portanto, encontra saídas individuais – que muitas vezes vão se mostrar
pífias na hora da urgência – ou saídas coletivas, mas para grupos
específicos, no caso dos empregados com planos empresariais.
Enquanto
sobrar distorções e faltar dinheiro, o SUS não vai melhorar. Não vai
mesmo. Neste sentido, tem razão quem afirma que o programa “Mais
Médicos” é demagogia. Mas apenas em parte.
Acrescentar
dois anos ao curso de medicina e tornar esses dois últimos anos um
trabalho remunerado no SUS, uma das mudanças previstas para iniciar em
2015, pode ser um aprendizado. E rico. Não só da prática médica como da
realidade do país e da sua população, o que não pode fazer mal a alguém
que pretenda ser um bom médico. Para que isso funcione, tanto como
formação quanto como atendimento de qualidade à população, é preciso que
exista de fato a supervisão dos professores e das faculdades. E essa é
uma boa causa para as entidades corporativas e para as escolas de
medicina.
Hoje, um
dos problemas do SUS é a fragilidade da atenção básica: o que poderia
ser resolvido nos postos de saúde ou pelo médico de família e que
consiste em cerca de 90% dos casos acaba indo sobrecarregar os
hospitais, que deveriam ser acionados apenas para os casos mais graves. A
distorção provoca problemas de atendimento de uma ponta a outra do
sistema. Por outro lado, entre os avanços mais significativos do SUS
está o Programa Saúde da Família (PSF), um dos principais responsáveis,
junto com o Bolsa Família, pela redução da mortalidade infantil no país.
Mas faltam médicos para esse programa. A atuação dos estudantes de
medicina poderá fazer uma enorme diferença. E isso não é pouco num país
em que os filhos dos pobres ainda morrem de diarreia e de doenças já
erradicadas nos países desenvolvidos.
A
obrigatoriedade de trabalhar dois anos no SUS tem sido considerada por
alguns setores, como as entidades corporativas, uma violação dos
direitos individuais do estudante de medicina. Será que não poderia ser
vista, além de um aprendizado, também como uma contrapartida,
especialmente para quem estudou em universidades públicas ou foi
beneficiado com bolsas do Prouni? O Estado, o que equivale a dizer toda a
população brasileira, incluindo os que hoje não têm acesso à saúde pela
precariedade do SUS, financia os estudos desses estudantes. Não seria
lógico e mesmo ético que, ao final do curso, os estudantes devolvessem
uma mínima parte desse investimento à sociedade? Para os estudantes das
escolas privadas, o projeto prevê a liberação do pagamento das
mensalidades nestes dois últimos anos. Mas sempre vale a pena lembrar
que também há financiamento público das particulares, na forma de uma
série de mecanismos, como renúncia fiscal para as filantrópicas e para
as que aderiram ao Prouni.
Os
estudantes de medicina serão remunerados pelo trabalho e pelo
aprendizado. O valor mensal da bolsa ainda não está definido, mas a
imprensa divulgou que será algo entre R$ 3 mil e R$ 8 mil. Ainda que
seja o menor valor, que outra categoria no Brasil pode sonhar em ganhar
isso antes mesmo de se formar? E mesmo depois de formado? Por que,
então, uma resistência tão grande?
Por
causa do abismo. A maioria dos estudantes de medicina vem das classes
mais abastadas, como mostrou a Folha de S. Paulo de 13/7: na Unesp
(Universidade Estadual Paulista), apenas 2% cursaram colégio público,
contra 40% no geral; na USP (Universidade de São Paulo), 20% dos
estudantes têm renda familiar superior a R$ 20 mil, não há negros na
turma que ingressou em 2013. Historicamente, a elite brasileira não se
vê como parte da construção de um país mais igualitário. Pelos motivos
óbvios – e porque está acostumada a receber, não a dar. Assim, ter seus
estudos financiados pelo conjunto da população brasileira é interpretado
como parte dos seus direitos – não como algo que pressupõe também um
dever ou uma contrapartida. Dever e contrapartida, como se sabe, são
para os outros.
Não
fosse esse olhar sobre si e sobre seu lugar no país, seria plausível que
trabalhar os dois últimos anos do curso no SUS pudesse ser uma boa
notícia para quem escolheu ser médico. Fosse até desejável. Primeiro,
porque está ajudando a levar saúde a uma população que não tem. E, neste
sentido, pode fazer a diferença, algumas vezes entre viver e morrer.
Segundo, por participar da construção de um país mais justo, o que
implica deveres ainda maiores a quem recebeu mais. Receber mais –
melhores escolas, melhor saúde, melhores oportunidades – não significa
que tenha de continuar recebendo mais, mas que precisa dar mais, já que a
responsabilidade com quem recebeu menos se torna ainda maior. Terceiro,
porque é inestimável a oportunidade de conhecer as dores, as
necessidades e as aspirações das porções mais carentes do Brasil, não só
pelo aprendizado médico em si, mas pelo que essa população pode ensinar
sobre um outro viver.
Tornar-se
médico – e não apenas um técnico em medicina – não passa pela
capacidade de escutar o outro como alguém que tem algo a dizer não
apenas sobre seus sintomas, mas sobre uma visão de mundo singular e uma
interpretação complexa da vida?
Ao ler a
maioria das críticas sobre o programa, o que chama a atenção é a
impossibilidade de seus autores se verem como parte da construção de um
SUS mais forte e eficiente, o que significa ser parte da construção de
um Brasil melhor para todos – e não só para uma minoria. No geral, o que
se revela nitidamente é um olhar de fora, como se tudo tivesse que
estar pronto, em perfeitas condições, para que só então o médico
atuasse. Mas é no embate cotidiano, no reconhecimento das carências e na
pressão por mudanças que o SUS será fortalecido, como tem mostrado em
sua prática uma parcela dos médicos tachada – às vezes pejorativamente –
como idealista. Nesse sentido, também os estudantes de medicina e seus
professores farão uma enorme diferença ao estar no palco onde esse
embate é travado. Ao estar presentes – promovendo saúde, denunciando
distorções e pressionando por qualidade – mais do que hoje.
Acredito
que a vida da maioria só muda quando os Brasis se aproximam e se
misturam. Tenho esperança de que esse programa – se bem executado, o que
só pode acontecer com a adesão e o compromisso de todos os envolvidos –
possa ser inscrito nesse gesto. O conjunto de medidas do “Mais
médicos”, que inclui também a atuação de profissionais estrangeiros em
áreas carentes, já promoveu pelo menos um impacto positivo: colocou o
SUS no centro da pauta nacional. Seria tão importante que os
protagonistas desse debate superassem a polarização inicial entre
governo e entidades médicas para fazer uma discussão séria, com a
participação da população, que pudesse resultar no acesso real da
maioria a um sistema de saúde com qualidade. E seria uma pena que essa
oportunidade fosse perdida por interesses imediatos e menos nobres,
tanto de um lado quanto de outro.
É grande
o debate sobre se faltam profissionais ou se eles estão mal
distribuídos. O que me parece é que não faltam doutores no Brasil – o
que falta são médicos. São muitos os doutores que ainda nem sequer se
formaram, mas já assumiram o título e o encarnam num sentido profundo. O
SUS terá mais chance quando existirem menos doutores e mais médicos
trilhando o mapa do Brasil.
*Mariadapenhaneles
(JAL)ECOS DA REVOLTA
Médicos com fronteiras: pobre não entra
(Trechos do editorial de Carta Maior de 19.07.2013)
Credite-se à elite brasileira façanhas anteriores dignas de figurar,
como figuram, nos rankings da vergonha do nosso tempo. O repertório
robusto ganhou agora um destaque talvez inexcedível em seu simbolismo
maculoso: uma rebelião de médicos contra o povo. Sim, os médicos, aos
quais o senso comum associa a imagem de um aliado na luta pela vida,
lutam hoje nas ruas do Brasil.
Contra a adesão de profissionais ao programa ‘Mais Médicos’, que busca
mitigar o atendimento onde ele inexiste. A sublevação branca incluiria
táticas ardilosas: uma rede de inscrições falsas estaria em operação
para inibir o concurso de profissionais estrangeiros, sobre os quais os
nacionais tem precedência.
Consumada a barragem, uma desistência em massa implodiria o plano no
último dia de inscrição. O cinismo conservador é useiro em evocar a
defesa do interesse nacional e social enquanto procede à demolição
virulenta de projetos e governos assim engajados.
Encara-se o privilégio de classe como o perímetro da Nação. Aquela que
conta. O resto é o vazio. A boca do sertão, hoje, é tudo o que não
pertence ao circuito estritamente privado. O sertão social pode começar
na esquina, sendo tão agreste ao saguão do elevador, quanto Aragarças o
foi para os irmãos Villas Boas,nos anos 40, na expedição ao Roncador.
Sergio Buarque de Holanda anteviu, em 1936, as raízes de um Brasil
insulado em elites indiferentes ao destino coletivo. O engenho era um
Estado paralelo ao mundo colonial. O interesse privado ainda prevalece
sobre a coisa pública. Mesmo quando está em questão a vida.
Se a organização humanitária ‘Médicos Sem Fronteiras’ tentasse atuar no
Brasil, em ‘realidades que não podem ser negligenciadas’, como evoca o
projeto que ganhou o Nobel da Paz, em 1999, possivelmente seria
retalhada pelo levante dos bisturis. Jalecos evocam as fronteiras do
engenho corporativo, dentro das quais não cabem os pobres do Brasil.
(Fonte: aqui e aqui)).
................
Enquanto isso, entidades médicas simplesmente anunciam o rompimento com o governo federal (aqui),
sob a alegação de "rompimento do diálogo". Merece registro o fato de
que as entidades médicas jamais se interessaram em manter ao menos um
mísero diálogo com as populações dos pequenos municípios e periferias
das grandes cidades, que seguem à míngua, desprovidos de médicos.
Quantidade de municípios sem médico: 700 (setecentos).
*Dodó Macedo