Juruna, o índio deputado
Parece incrível, mas em 125 anos de República o Brasil só teve um parlamentar indígena: Mario Juruna (1942-2002). E nunca mais foi Dia do Índio no parlamento desde que ele saiu de lá –em vez disso, multiplicaram-se no Congresso os inimigos da causa indígena. No final da década de 1970, Juruna se tornara conhecido por empunhar um gravador onde registrava as falsas promessas feitas por altos funcionários do governo de devolver as terras dos Xavante. Dizia: “homem branco mente muito”. Acabou eleito deputado federal pelo PDT de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola, com mais de 30 mil votos, na eleição de 1982.
Sua passagem pelo Congresso foi marcada pela tentativa de ridicularizá-lo e de transformá-lo num bufão. Jô Soares, em seu programa humorístico na Globo, logo criou um índio que mal sabia falar o português para que os telespectadores rissem dele. O general João Baptista de Figueiredo, último presidente militar, foi o primeiro a rosnar contra Juruna, dizendo que o Rio de Janeiro só tinha eleito “índios e cantores de rádio”. Seu ministro da Aeronáutica, Délio Jardim de Matos, verbalizou a definição inconfessável que estava em todas as cabeças da direita: “aculturado exótico”.
O líder xavante fora convencido a entrar na política por Darcy, que denunciou a campanha contra o índio deputado feita sobretudo pela imprensa. “Este índio novo, tão melhor armado para a sua própria defesa, provoca grandes antipatias. O seu símbolo maior, Mário Juruna, chega a desencadear ódios como se fosse um ser detestável. É profundamente lamentável que até a imprensa mais respeitável do país, a exemplo do Jornal do Brasil, tenha mantido, durante anos, uma campanha sistemática de desinformação contra o deputado Mário Juruna, através dos procedimentos mais antiéticos, indignos da sua tradição jornalística.” Segundo Darcy, foi “graças à mobilização que ele fez de todos os Xavantes e à declaração de guerra que impôs à sociedade brasileira, que recuperou para o seu povo mais da metade do território tribal, roubado com a conivência de funcionários da FUNAI”.
No dia da sua posse como deputado, em março de 1983, Juruna foi aplaudidíssimo, mais até que Ulysses Guimarães. Decidido a só fazer seu primeiro discurso no Dia do Índio, resolveu falar uns dias antes apenas para reclamar das alfinetadas de Figueiredo. “Estou muito revoltado. Este presidente da República tem que fazer serviço para garantir emprego ao povo brasileiro e não para fazer campanha de calúnia contra as pessoas. Eu sou contra a repressão, contra a violência e também contra a mentira e a sujeira. O presidente não pode falar besteira, que é contra a eleição, que é contra mim. Graças a Deus fui eleito pelo Rio de Janeiro. Os cariocas me deram oportunidade para vir a Brasília, onde existe pecado, existe treteiro, existe corrupto, para protestar contra o que está errado. O governo federal quer ganhar eleições em todos os Estados do Brasil, mas ele não vai ganhar a consciência do povo, do homem carecido. O presidente não pode meter o pau em nenhum companheiro, em nenhum deputado. Ele que salve o Brasil.”
No dia 19 de abril, como prometido, subiu à tribuna e voltou à carga, valente, criticando os ministros do governo militar e pedindo sua demissão. Em setembro de 1983, iria além e chamaria os ministros de ladrões. “Todo ministro é a mesma panelinha, é a mesma cabeça. Não tem ministro nenhum que presta. Pra mim todo ministro é corrupto, ladrão, sem vergonha e mau caráter. Não vou dizer que todo ministro é bom, legal e justo. Vou dizer que todo ministro é do mesmo saco que aproveita o suor do povo trabalhador”.
Figueiredo, furioso, chegou a pedir a cassação de Juruna, mas o deputado acabou recebendo apenas uma censura por parte da Mesa. Em 1985, Mário Juruna denunciaria a tentativa de Paulo Maluf de comprar seu voto no colégio eleitoral. Devolveu o dinheiro e votou em Tancredo Neves. Desgostoso com a política após não conseguir se reeleger em 1986, Juruna morreu em 2002, vítima de diabetes. O único índio deputado morreu pobre e esquecido.
Neste Dia do Índio tão pouco lembrado, reproduzo trechos daquele primeiro discurso histórico de Juruna como deputado federal. Triste constatar como muitas das críticas que ele fazia continuam atuais. Quando vai surgir um novo Juruna no Congresso?
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Por Mário Juruna, 19/04/1983, Congresso Nacional
Eu quero apresentar exemplo com minha candidatura, porque hoje já podia ter deputado índio. Podia ter deputado aqui no Brasil mas nós não somos culpados. Quem é culpado, é responsável, é essas pessoas que não dão oportunidade pra índio. É por isso que nós só aprende, só estuda o primário.
Então primeiro eu quero falar em nome do companheiro trabalhador, porque vocês é a mesma coisa como índio, como posseiro, é a mesma coisa como lavrador e é a mesma coisa como a tribo. Esse pessoal que está lá em cima, que a gente sofre repressão da autoridade, esse pessoal é o filho do empresário, o filho do deputado, o filho do senador. Esse resto que é o pessoal filho de pobre, eu quero considerar mais ainda esse pessoal que leva sacrifício, pessoal que sofre muito mais que a gente que está vivendo muito bem aqui na Câmara Federal.
E muita gente que achava, quando eu entrei na política, muita gente falava contra Juruna, falava: “Imagina como que Juruna vai entrar no plenário, imagina, o índio, o que é que vai resolver no plenário, como é que índio vai representar índio?” E eu quero saber: imagina, o que é que o branco pode? Talvez índio pode representar melhor do que qualquer deputado, qualquer senador e qualquer da República.
Juruna é o primeiro índio que está representando brasileiro, porque o governo brasileiro não dá oporunidade pra índio, porque ele quer continuar tutelar toda vida índio. E nós não somos tutelados, somos responsáveis, nós somos gente, nós somos ser humano.
Quem não tem consciência, me trata como objeto, me trata como boneca. E quando eu passo aqui dentro de plenário e alguns companheiros à frente de mim e diz cara emburrada é ridículo. Eu não vim aqui fuxicar com ninguém, eu vim aqui pra trabalhar, pra defender povo, eu vim aqui pra lutar. Eu quero que gente começa a respeitar nome de Juruna. Eu quero que gente trata índio brasileiro o mais possível dentro do melhor.
Cada um de nós tem consciência e cada um de nós tem capacidade. Ninguém tem menos capacidade. Todos nós tem capacidade e todos nós tem inteligência e todos nós tem a vontade para assumir onde que existe poder. Eu acho esse já é fruto está nascendo aqui dentro do Brasil, esse já é sinal está nascendo aqui dentro do plenário. Único índio que tá falando hoje, único deputado que tá falando hoje: não é terceiro, não é quinto deputado, não é cinquenta deputado. Se tiver ao menos mais cinquenta Juruna, o Juruna já tinha mudado o Brasil.
Governo da República não pode ser indicado por uma pessoa. Presidente da República tem que ser mais votado com povo brasileiro. Até eu me lembro muito bem que antes de 64 Brasil tinha muito ouro, era muito sagrado e hoje Brasil não tem mais muito ouro não. Está estragado. O Brasil não tem mais ouro. Quem está estragando o Brasil é o próprio governo federal, é este presidente da República que está estragando nosso Brasil, junto com Delfim, esse responsável pelo Brasil.
Quero falar problema do Brizola. O Brizola é homem, foi cassado, como acontece com o índio, por isso eu apoio Brizola e por isso quero dar liberdade para Brizola, porque, como acontece com o posseiro, como acontece com o índio, o Brizola foi expulso do Brasil sem necessidade. E por que o governo não expulsa outro agora? Expulsa todo o ministério, tira todo o ministério! Bota na rua todo mundo!
Se o governo federal, ele tem capacidade, ao lado do povo, se o governo federal assume, como homem, tira meia dúzia de ministro que atrapalha o nosso Brasil. Tirava meia dúzia, o presidente da República, qualquer um de nós apoiava ele. Nós apoiamos o presidente da República e nós levava para crescer mais ainda o nome dele. Desse jeito, ninguém vai apoiar o presidente. Ninguém pode apoiar sujeira. Eu mesmo não pode apoiar sujeira porque eu quero que o presidente muda o nosso Brasil. Porque o presidente é responsável da Nação, o presidente é juízo do povo, o presidente é o pai do povo, o pai do Brasil. Agora, como está hoje, o presidente é o pai do povo? Não existe pai do povo, não. Aqui não tem pai do povo, não.
O presidente foi eleito com empresário, presidente foi compromisso com multinacional, com fazendeiro, com empresário e grande empresário. Se presidente pai do Brasil, presidente segurava toda barra que está acontecendo no Brasil. E aqui gente tá morrendo. E por quê? Porque não tem presidente, não tem autoridade. E toda autoridade é comprada, toda autoridade está se vendendo, quer o dinheiro, quer ganhar dinheiro.
Às vezes, presidente é bom e assessor diretor quem engana o presidente, assessor que não leva verdade para presidente. Por isso que presidente passa mal assessorado. Se tiver assessor bom, se tiver diretor bom que levava recomendação do povo, eu acredito que presidente atendia pedido do povo.
Sou homem do povo, sou homem de campo, quando me criei não encontrei nem um branco, não encontrei nem um avião, nem automóvel, nem estrada; onde me criei era sertão, eu só escutava canto do passarinho, e hoje eu encontro muito pressão contra índio, e invasor, e estrada. A gente está recebendo muita pressão.
Quando eu tive na Holanda, é país pequeno, todo holandês vive igual. Aqui Brasil é muito grande e muita gente tá precisando da terra. Aqui eu quero pedir a V.Excia., presidente, vamos pensar juntos, vamos reformar o nosso Brasil, viu? Vamos dividir, terra é para posseiro, é terra para fazendeiro, é terra para índio, vamos dividir a nossa terra.
Abaixo, trailer do documentário Juruna, o Espírito da Floresta, de Armando Lacerda (o filme será exibido hoje às 15h30 no Canal Brasil)
*socialistamorena