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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, março 27, 2020

O lado desumano do COVID-19

Novo post em biologosocialista

O lado desumano do COVID-19

por biologosocialista
Por Luiz Fernando Leal Padulla*
Muita coisa se fala e se sugere sobre o COVID-19. Teorias conspiratórias de um lado, afirmações infundadas do outro. E no meio, a população e seu livre arbítrio para escolher a quem abraçar. De repente, pessoas se tornam as mais preparadas para opinar, sem qualquer embasamento e mínimo estudo.
Causa indignação que muitas dessas (des)informações ganhem espaço em meio de comunicação popular. Vi essa semana, por exemplo, um debate entre uma respeitada e gabaritada socióloga, a professora Sabrina Fernandes, e uma dissidente cubana, Zoe Martinez, no canal brasileiro da CNN. Não era um debate, mas uma troca entre evidências e fatos, contra mentiras e ódio. A clara realidade entre Ciência vs. Fake News.
A tal (pseudo)cubana, só faltava espumar pela boca cada vez que ouvia a professora argumentar com trabalhos e relatórios científicos. Para essa sujeita, cuja expressão facial e o tom de voz mostram destempero e desespero, o vírus causador da pandemia é obra laboratorial do Partido Comunista Chinês e tudo é culpa do comunismo e da esquerda mundial. Sabrina Fernandes, calma e serena como toda pessoa centrada, inteligente e segura do que estava falando, rebatia cada acusação infundada com maestria – inclusive, para a raiva final de Martinez, apontou e elogiou o humanismo das brigadas de médicos cubanos que assistem vários países.
Na sequência ao debate, a emissora entrevistou o médico Anthony Wong, diretor do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da FM-USP, e diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Toxicológicos e Farmacológicos. Para o médico (!), é um erro o isolamento social, pois isso poderia trazer mais problemas de saúde no aspecto psicológico, como a depressão e suicídio. Ele também usa um artigo escrito em 1985, para argumentar que o vírus não resiste ao calor, indicando que não há necessidade do isolamento social ao qual estamos submetidos, e que tudo não passa de “uma pandemia de fake news e notícias alarmantes”. No entanto, esquece-se (por ignorância ou mau-caratismo?) que o vírus, existente desde os anos de 1960 sofreu mutação, o que pode tê-lo tornado capaz de sobreviver inclusive à novas temperaturas – comportamento que ninguém ainda sabe como será. Ainda de forma tendenciosa, afirma que o calor do Brasil é o responsável pelas baixas taxas de infecções, e não as medidas do isolamento social.
gráfico
Simulação da transmissão do COVID-19: apenas isolando os casos (linha vermelha), com isolamento social (linha verde) e com interrupção das medidas de isolamento (linha azul). Fonte: ANDERSON et al. (2020)

Contrariando suas colocações, o estudo de ANDERSON et al. (2020) publicado na respeitada e conceituada revista médica The Lancet, informa que o verão no Hemisfério Norte talvez não seja capaz de reduzir a transmissão, e que cabe sim aos governos adotarem medidas para minimizar as taxas aceleradas de disseminação, assim como a inevitável crise econômica. Para os autores, as medidas adotadas pela China mostram que a quarentena, o distanciamento social e o isolamento das pessoas infectadas são as mais eficientes para a contenção da epidemia. Estudos recentes também afirmam que a elevação de 20 graus na temperatura ambiente retardaria a reprodução do vírus, no entanto isso apenas reduziria sua propagação em 18%, sendo o restante (82%) proporcionado pelas políticas de contenção e medidas sanitárias.
Mas enquanto alguns “experts” minimizam o efeito dessa pandemia, os números não mentem: mortes crescendo em ritmo alarmante em países que subestimaram e não adotaram medidas preventivas, como Itália e Espanha, estão sendo divulgados diariamente.
O desconhecimento de como tal vírus possa atuar, é algo que preocupa ainda mais. Ainda que 80% das pessoas sejam assintomáticas ou manifestem levemente a doença (contra 14% tendo doença grave e 6% gravemente doentes), o tempo de duração do período infeccioso do COVID-19 parece ser mais longo para esse vírus, o que requer ainda mais atenção e cuidados. Chamam atenção também para um relaxamento nas medidas de controle justamente para evitar um impacto econômico mais grave, mas que pode acarretar um pico adicional de infecções.
Não duvido que exista uma guerra comercial – o que justifica essa briga de acusações para com a China, inclusive com o recurso baixo das fake news. Mas sinceramente, se havia algum interesse em desestabilizar a atual situação político-econômica, não seria da China, cujo crescimento médio nos últimos dez anos foi de 6%, ante os 2% dos ianques. É óbvio o ressurgimento da nova crise do capital – para vários pesquisadores e especialistas, como o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, podendo ser pior do que a de 1929 – refletindo na perda de valor do dólar, quedas nas ações das bolsas, guerra no preço do petróleo – sem contar que esse ano é ano eleitoral no EUA, e não se pode descartar uma jogada política de Trump.
É lamentável – mas não surpreende – a postura de certas lideranças e empresários defendendo a volta a rotina de trabalhos, sacrificando a vida de “5mil, 7 mil pessoas”, o que mostra que a preocupação com o dinheiro se sobrepõe exatamente sobre a vida humana. O que tanto defendem, sob a falsa bandeira do “caos social”, nada mais é do que seu capital e lucros. Ou será que esses mesmos estavam se importando com os cortes nas políticas públicas e assistencialistas que o atual (des)governo fez? Como sempre, tentam defender suas riquezas e interesses financeiros, sem jamais pensarem nas pessoas – essa é a lógica capitalista!
E por conta desse tipo de desinformação, temos no BraZil a única nação onde parte da população é contra as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS)! Pessoas que acreditam em qualquer asneira que Bolsonaro fala, e colocam suas vidas e a de terceiros em risco ao ignorar as recomendações de quarentena – tanto que embaixadas dos EUA e da Inglaterra estão solicitando o retorno de seus cidadãos. Como disse o professor Lejeune Mirhan em seu recente artigo intitulado Pandemia, neoliberalismo e saídas para a crise, “essa gente tem uma concepção malthusiana de sociedade, onde não importa que morram alguns milhões, mas o importante é salvar a economia da catástrofe financeira que se avizinha”. Eis que ganha voz o chamado “darwinismo social” e sua visão eugênica, distorcendo a seleção natural, como bem lembra o referido professor.
A essa altura, com disseminação e mortes causadas pelo COVID-19, não devemos mais polarizar as discussões a respeito. O que deve nos direcionar é o bom senso, coisa que a direita fascista desconhece e prefere apostar no caos. Enquanto o mundo sofre e se solidariza, por aqui ainda vemos prevalecer o espírito do ódio, da ignorância e da ganância...justamente por parte daqueles que defendiam “família acima de tudo, Deus acima de todos”.
*Professor, Biólogo, Doutor em Etologia, Mestre em Ciências

quarta-feira, outubro 31, 2018

Boitempo libera curso completo sobre teoria da revolução!

Boitempo libera curso completo sobre teoria da revolução!

Série de vídeos da TV Boitempo introduz os clássicos da teoria e prática revolucionária: Karl Marx, Vladímir Lênin, Mikhail Bakunin e Rosa Luxemburgo.

A Boitempo acaba de disponibilizar mais um curso completo em seu canal no YouTube! “A teoria da revolução” oferece um panorama introdutório das concepções de revolução em quatro figuras clássicas do pensamento crítico revolucionário. São aulas longas, de cerca de duas horas e meia cada, conduzidas por professores diferentes, cada um especializado na vida e obra dos respectivos pensadores: Karl Marx, Vladímir Lênin, Mikhail Bakunin e Rosa Luxemburgo. Realizado no contexto do IV Salão do Livro Político, o curso ocorreu entre os dias 18 e 21 de junho, no teatro Tucarena da PUC-SP.

Clique aqui para se inscrever na TV Boitempo!

Não deixe de se inscrever no nosso canal para receber nossos conteúdos em primeira mão. Com vídeos novos a cada dois dias, a TV Boitempo reúne cursos exclusivos, gravações de debates, palestras e aulas promovidos pela editora, além de reflexões inéditas de nossos autores sobre temas diversos. Com coordenação de Artur Renzo e assistência de Heleni Andrade, a TV Boitempo se aproxima do marco de cem mil inscritos, consolidando-se como o maior canal de YouTube de todo o mercado editorial brasileiro.
Bons estudos!

1. MARX, por Mauro Iasi


2. LÊNIN, por Augusto Buonicore 


3. BAKUNIN, por Acácio Augusto


4. ROSA LUXEMBURGO, por Isabel Loureiro 


Gostou?

quarta-feira, outubro 24, 2018

Carlos Alves, que está em Portugal, chamou a presidente do TSE Rosa Weber de 'salafrária' e 'corrupta'

Dodge vai pedir extradição de coronel da reserva que gravou vídeos atacando ministros

Carlos Alves, que está em Portugal, chamou a presidente do TSE Rosa Weber de 'salafrária' e 'corrupta'. Ele também criticou outros integrantes do Supremo e afirmou que a Corte sofrerá consequência caso decida impedir a candidatura de Jair Bolsonaro. A informação é do jornalista Kennedy Alencar, comentarista da CBN.

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Carlos Alves gravou vídeos com ofensas e ameaças ao STF. Foto: reprodução (Crédito: )
Carlos Alves gravou vídeos com ofensas e ameaças ao STF. Foto: reprodução

segunda-feira, outubro 22, 2018

“Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”


Quando uma criança krenak nasce, não vai para a creche, fica com a mãe, as avós e as tias. Partilham um quotidiano e um modo de estar na vida. As crianças indígenas não são educadas, mas orientadas. Não aprendem a ser vencedores, porque, para uns vencerem, outros têm de perder. Aprendem a partilhar o lugar onde vivem e o que têm para comer. Têm o exemplo de uma vida onde o indivíduo conta menos do que o coletivo. Este é o mistério indígena, um legado que passa de geração para geração. Ailton carrega no apelido a pertença à sua gente, o povo krenak. E a sua memória mais antiga é muito simples: “Eu não sei viver sozinho.”
Esteve esta semana em Portugal para participar no Fórum Internacional de Festivais de Cinema de Ambiente, em Seia, onde realizadores de mais de 30 países estiveram reunidos e demonstraram preocupação com o rumo político do Brasil e as consequências das eleições presidenciais na preservação da floresta amazónica. Antes de regressar a casa, Ailton Krenak conversou com o Expresso.
Que povo é o seu?
Krenak.
O que quer dizer?
Numa das línguas nativas do Brasil que restaram, kren quer dizer cabeça, e nak é terra. Logo, nós somos a cabeça da terra. Escutando os velhos e perguntando sobre a nossa história, entendi que somos uma das últimas famílias de um povo que, quando D. João VI chegou ao Brasil, habitava uma região conhecida como a Floresta do Rio Doce. Os viajantes se referem a ela como uma floresta tão impressionante como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazónica. Era uma muralha natural no caminho do ouro e dos diamantes que vinham do interior. Mas a Coroa precisava de dinheiro e os colonos não eram bobos e pressionaram D. João VI para que libertasse a entrada na floresta. Os nossos antepassados, chamados botocudos, resistiram bravamente a essa investida e a nossa aldeia foi o último lugar a ser colonizado, já tardiamente, por volta de 1910. Nessa altura ainda havia caçadores e recoletores andando nessa floresta. Para acabar com os botocudos, primeiro esses colonos que estavam expandindo as fronteiras internas do Brasil tiveram de devastar a floresta. Vejo um paralelo muito grande, passados quase 200 anos, com o que os brasileiros estão a fazer [agora], determinados a devastar a última grande floresta da bacia amazónica.

SEGREGADOS “NUM CAMPINHO DE CONCENTRAÇÃO”

A conversa começa assim e segue por muitos percursos, sempre sob a sombra das árvores, no meio da cidade. Rapidamente nos deparamos com as eleições presidenciais no Brasil e com a possibilidade de Jair Bolsonaro ser o escolhido pela maioria da população. O candidato já afirmou que “não vai ter nem um centímetro demarcado para reserva indígena”.
Preocupado, mas sereno, Ailton responde: “Em outras épocas, o meu povo já experimentou diferentes tipos de violência. Os botocudos foram aniquilados durante o século XIX e chegaram ao século XX quase extintos, ao ponto de sermos a única família. Os krenak têm memória da guerra descrita numa carta assinada por D. João VI, que se chamava mesmo 'guerra de extermínio à nação dos botocudos do Vale do Rio Doce'. Uma declaração de guerra contra o nosso povo.”
Uma guerra que não se pode resumir ao número de mortos. “A população de indígenas daquela região no final do século XIX era estimada em cinco mil pessoas. Só chegaram 140 indivíduos ao século XX. Era como se caísse uma bomba na Europa e ficassem umas cem mil pessoas para contar a história. Fomos vítimas de um genocídio e não há contabilidade possível. Os krenak voltaram a reunir 120 famílias. Se considerarmos cinco pessoas por família, somos pouco mais de 500. Vivemos dentro de uma pequena reserva, segregados pelo governo brasileiro, num campinho de concentração que o Estado fez para os krenak sobreviverem. Durante o período da ditadura, se constituiu num campo de reeducação, que na verdade era um centro de tortura. Já passamos por tanta ofensa que mais essa agora não nos vai deixar fora do sério. Fico preocupado é se os brancos vão resistir. Nós estamos resistindo há 500 anos.”

DECLARAÇÃO DE GUERRA

Há 30 anos, perante a Assembleia Constituinte que redigiu a lei fundamental da então recém recuperada democracia brasileira, Ailton Krenak pintou o rosto de negro e declarou guerra aos congressistas. Lutava pelos direitos do povo indígena - e venceu. Mas diz que o tempo não se repete e que hoje não voltaria a tomar a mesma atitude. “Na década de oitenta abrimos trilhas para as novas gerações buscarem o reconhecimento dos direitos das populações originárias, os indígenas, e para conscientizar a população da importância de continuarmos tendo rios, montanhas, paisagens, florestas como recursos capazes de se refazerem ao longo do tempo e como uma riqueza a ser partilhada pelas gerações futuras. É um tipo de entendimento da terra como a nossa casa comum, mas o que tem prevalecido é a ideia de que diferentes lugares do planeta podem oferecer posicionamentos estratégicos para algumas potências ou ser simplesmente fonte de suprimento daquilo que estas potências querem controlar. E pequenas nações como o Brasil e a maior parte dos países da América Latina, ex-colónias, não tiveram sequer o tempo necessário para consolidar um pensamento acerca de si mesmos. Não tenho nenhuma ilusão acerca do futuro destas pequenas nações: ou vamos experimentar grandes transformações globais na relação entre os povos ou estas pequenas nações vão ser cada vez mais territórios de disputa e enclaves das potências que têm força para decidir o jogo, que não precisa nem de ser na ONU, é decidido no mercado.”
Nações pequenas? O Brasil? “O Brasil é pequeno no sonho. Sonha pequeno. Um território que não esboça uma visão soberana pode ser grande geograficamente mas vai continuar sendo pequeno na sua expressão no mundo. A Amazónia é a maior floresta tropical do planeta que ainda tem condição de ser reguladora do clima e o Brasil quer derrubar a Amazónia. Por que eu vou achar o Brasil grande? O Brasil é menor do que a Amazónia. Eu queria que ele fosse maior.”
E como aquele país se limitou desta forma? Para Ailton, “a colonização que a Europa fez do resto do mundo desde os séculos XV e XVI imprimiu uma maneira de dominação que é como um vírus, é capaz de se auto-reproduzir, inclusive nas colónias”. E “se o Brasil foi inseminado com esta ideologia colonialista, ele vai ser capaz de reproduzir isso infinitamente, enquanto não quebrar esse ciclo colonial. O projeto político de criar uma nação chamada Brasil é tão pequeno que chega a ser menor do que a Amazónia.”

PISAR COM LEVEZA

Ailton Krenak não se esquece de um texto de 1865, atribuído a um chefe indígena da América do Norte quando abordado por um representante do governo de Washington, avisando que queriam comprar as terras dos índios. Não se esquece também de que a resposta do chefe Seatle foi de que os índios não podiam vender a terra porque a terra é maior do que os índios, é a mãe deles. “Disse aos brancos que, se algum dia eles herdassem aquela terra, que a pisassem suavemente, porque se não aprenderem a respeitar, vão acumular detritos sobre detritos até que vão acordar enterrados no próprio vómito.” Reconhece aquele texto como o primeiro manifesto ambiental do século XX, “uma ideia partilhada pelos povos que vivem nas ilhas do Pacífico, nos Andes, nas montanhas dos Himalaias, porque estes povos originários têm isso no coração, antes de ter na cabeça”. Para completar: “Talvez o que as nossas crianças aprendem desde cedo é a pôr o coração no ritmo da terra.”
Como um círculo, a conversa volta ao início, à génese: à memória e à sua partilha. Das muitas formas de as novas gerações terem acesso ao passado. Homem de longos silêncios, Ailton Krenak emudece por alguns momentos, quando questionado sobre como o legado de um povo é transmitido às gerações seguintes. “Quem dera que eu pudesse responder a uma pergunta dessas. Ao longo da minha vida inteira vou experimentar [as formas] como transmitimos aos nossos filhos e filhas os valores que nos distinguem de uma sociedade predatória, individualista e que incentiva desde cedo as crianças para a competição, a dominarem-se uns aos outros”. Para concluir com outro questionamento, ainda mais denso do que a primeiro: “Parece que o mandamento principal dessa civilização é 'dominai-vos uns aos outros', contrariando aquele outro que seria 'amai-vos uns aos outros'. Estamos nesta dualidade e podemos escolher qual o mandamento mais interessante para ensinarmos aos nossos filhos.” E Ailton despede-se de nós e do Sol, que também começa a partir. “Te mum tepó itxá, kren nabã tepó erehé”*
* “Oh Sol, você já tá indo? Eu abaixo a minha cabeça para você.”

*https://expresso.sapo.pt/internacional/2018-10-19-Somos-indios-resistimos-ha-500-anos.-Fico-preocupado-e-se-os-brancos-vao-resistir#gs.gJEzkbQ