“O GOLPE DE 64 DESTRUIU A MINHA FAMÍLIA”
Aos 73 anos, Maria Thereza Goulart, viúva do ex-presidente João Goulart,
revela à revista Istoé detalhes dos dias que antecederam o golpe
militar, fala da vida do casal e lembra da angústia dos anos de exílio:
"Nós saímos daqui correndo, deixamos tudo para trás. A gente passou a
viver com sofrimento"; Maria Thereza se casou com Jango aos 17 anos e
foi a primeira-dama mais jovem que o País já teve; após a morte do
marido, na Argentina, em 1976, demorou alguns anos para voltar a viver
no Brasil e escolheu o Rio de Janeiro, onde ainda mora, perto da
família, para passar o resto de seus dias; apesar de tudo, se declara
feliz
29 DE MARÇO DE 2014
Primeira-dama mais jovem que o Brasil já teve, eleita entre as 10
mulheres mais bonitas do mundo pela revista "Time" à época, Maria
Thereza Goulart, hoje aos 73 anos, traz consigo as marcas do golpe de
1964 que depôs o marido João Goulart. Em entrevista à revista Istoé, no
Rio, onde mora, ela quebra o silêncio e relata os momentos de extrema
tensão vividos às vésperas da chegada dos militares ao poder. “Para mim
foi tudo muito tenso. O golpe de 64 destruiu a minha família. Tivemos
que sair correndo, deixar nossa vida, tudo nosso para trás. Destruiu
porque tirou tudo da gente. A gente passou a viver com sofrimento”,
disse à revista Istoé. Ela lembra que teve de sair às pressas da país
com Jango e os dois filhos para o exílio no Uruguai. Muito assediada por
jornalistas, Maria Thereza evita a lembrança daqueles dias de terror:
"Não gosto de ficar falando das tristezas do passado." Apesar disso,
defende os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Sobre a exumação
do cadáver de Jango, diz que a análise dos restos mortais poderá ajudar a
tirar uma dúvida da cabeça. "A gente vai sair desse estado de
incerteza, questionamentos, espero – embora ache difícil depois de
tantos anos. Fui contra isso durante muito tempo. Não queria porque
sabia que seria muito doloroso, como de fato foi. Desabei naquele
momento, perto do caixão de Jango de novo."
Confira a entrevista
Eliane Lobato (elianelobato@istoe.com.br)
Viúva
do ex-presidente João Goulart (1919/1976), Maria Thereza Goulart tem
planos frugais para a segunda-feira 31 de março, data da efeméride dos
50 anos do golpe militar que depôs seu marido: viajará para Porto Alegre
(RS) com a filha, Denise, e desfrutará do descanso com a família. Há
quase meio século, em 1º de abril de 1964, ela, o marido e os dois
filhos tiveram de sair às pressas do País em direção ao Uruguai, onde
iriam se exilar. Antes de partirem de Porto Alegre, o então governador
do Rio Grande do Sul Leonel Brizola (1922/2004) sugeriu um movimento de
resistência ao golpe, mas Jango não consentiu por, entre outras coisas,
temer um derramamento de sangue. São momentos tensos que voltam à
memória de Maria Thereza, hoje com 73 anos, e provocam tristeza, embora
ela lute contra a melancolia que este passado evoca. Arredia a
entrevistas, a ex-primeira-dama conversou com ISTOÉ com exclusividade.
Contou que escreveu um diário no exílio e que esse material vai virar um
livro. Mas só após sua morte. “Antes, não. Acho que há pessoas que não
vão gostar. Não tenho coragem de enfrentar isso agora.”
À
ISTOÉ, Maria Thereza disse ainda que a famosa foto em que ela aparece
ao lado do marido no palanque do histórico comício da Central do Brasil,
em 13 de março de 1964, não revela seu verdadeiro estado íntimo. A
imagem da mulher apontada como uma das dez mais lindas do mundo pela
revista “Time” não exprime a apreensão que sentia. “Estava gelada, dura
por dentro”, conta. Poucos minutos antes, Jango havia tido queda de
pressão. Muitos amigos e correligionários tentaram dissuadi-lo de ir ao
comício, mas “ele estava com ideia fixa” e “preparado para o que ia
acontecer”, declara ela.
Para
a jovem primeira-dama que nunca tinha pisado em um palanque, saber que
eles poderiam ser alvo de um atentado a era atemorizante. De fato, houve
esse temor, fazendo com que Jango aumentasse o aparato de segurança do
evento. Segundo ela, a pouca idade – 24 anos em 64 – ajudou-a a superar
as angústias dos momentos que antecederam o golpe. Mesmo assim,
desabafou: “Para mim foi tudo muito tenso. O golpe de 64 destruiu a
minha família. Tivemos que sair correndo, deixar nossa vida, tudo nosso
para trás. Destruiu porque tirou tudo da gente. A gente passou a viver
com sofrimento”.
Nascida
em São Borja, a quase 500 quilômetros de Porto Alegre, Maria Thereza se
casou com Jango aos 17 anos de idade e foi a primeira-dama mais jovem
que o País já teve. Após a morte do marido, na Argentina, em 1976,
demorou ainda alguns anos para voltar a viver no Brasil e escolheu o Rio
de Janeiro, onde ainda mora, perto dos filhos, netos e bisnetos, para
passar o resto de seus dias. Apesar de tudo, se declara feliz.
ISTOÉ – Como a sra. vê o País neste momento, 50 anos depois do golpe militar que derrubou seu marido da Presidência?
Maria
Thereza Goulart – Sinto, neste momento, o resgate justo da memória do
Jango. Isso é mais importante do que o resgate do meu marido. Não espero
que ele seja transformado num Deus, não digo que ele tenha sido
perfeito. Mas Jango foi um grande patriota, um presidente que amou o
País, sobretudo. Pode ter tido seus defeitos, como todos, mas vai ficar
guardado na memória com respeito e dignidade.
ISTOÉ – Como a sra. recorda de seu papel naquele momento?
Maria
Thereza – Minha presença ao lado dele foi importante, procurei ser
companheira. Nunca fui muito política. Vivemos momentos muito
assustadores. Meu marido já tinha previsto o futuro, quando saímos para o
exílio. Jango já estava marcado pelo golpe. Mas eu até pensei que
voltaríamos. Jango estava preparado, achou que era o momento de ele
renunciar. Mas, para mim, foi tudo muito tenso. Acho que a minha pouca
idade até ajudou a ter forças para viver aquilo. O golpe de 64 destruiu a
minha família. Nós saímos daqui correndo, deixamos nossa vida, tudo
nosso para trás. O golpe tirou tudo da gente. A gente passou a viver com
sofrimento.
ISTOÉ – A sra. não gosta de falar sobre isso?
Maria
Thereza – Sou permanentemente convidada para dar entrevistas,
participar de eventos, mas te digo, sinceramente, não gosto, evito.
Primeiro porque fico triste. Não gosto de ficar falando das tristezas do
passado. Segundo porque pensar em tudo o que poderia ter acontecido de
pior ainda me assusta. Ajudei a criar meus oito netos, tenho meus dois
filhos amados... A vida foi continuando.
ISTOÉ – Depois do golpe, a sra. sabia que iria para o Uruguai e imaginava que viveria lá por tanto tempo?
Maria
Thereza – O desterro foi muito cruel, especialmente para o Jango. Mas
eu não sabia, com antecedência, o nosso destino. Quando saímos, com as
duas crianças, é que me disseram que eu ia morar no Uruguai. Não sabia
de nada até então.
ISTOÉ – Como era a vida no exílio?
Maria
Thereza – Era difícil porque estávamos longe de todos os que amávamos,
das nossas coisas. Eu sentia medo do que pudesse nos acontecer lá. Jango
sofria calado, não era de ficar reclamando, fraquejando. Perdi meu pai e
minha mãe no Brasil e não pude chegar perto. Era muita tensão, Jango
sabia de tudo o que estava acontecendo no Brasil, dos horrores todos. O
medo tornou-se um grande inimigo capaz de me confundir entre o ódio e o
perdão.
ISTOÉ
– A foto da sra. no palanque do comício na Central do Brasil, no dia 13
de março de 1964, mostra uma mulher extremamente bonita e passa a
imagem de força, segurança. A sra. se sentia assim?
Maria
Thereza – Essa imagem é, na verdade, de apreensão extrema. A foto não
mostra tudo. Eu estava com muito medo. Estava gelada, dura por dentro.
Nos disseram que poderiam ser jogadas bombas no palanque, no meio das
pessoas. Jango teve uma queda de pressão antes, estava muito tenso.
Tínhamos noção do que poderia acontecer ali. Mas ele estava firme,
preparado. Disseram para ele não fazer aquele comício, mas não
adiantavam os conselhos. Ele estava com ideia fixa, estava realmente
preparado para o que pudesse acontecer.
ISTOÉ – A sra. subiu em palanque alguma outra vez na vida, além dessa?
Maria Thereza – Nunca mais. Nem antes eu tinha vivido isso. Só subi em palanque naquele comício da Central.
ISTOÉ
– Por marcar meio século do golpe militar, este ano a data de 31 de
março será diferente para a sra.? Onde pretende passar o dia e o que
pretende fazer?
Maria
Thereza – Vou para Porto Alegre com minha filha, Denise. Vamos
participar de um evento lá. É difícil para mim, porque me emociono. Mas
vou, acho que devo e que estou preparada. E só. O resto, será comigo
mesma e minha família.
ISTOÉ – No ano passado teve início a exumação do cadáver de Jango. Qual é a sua expectativa do resultado das análises?
Maria
Thereza – Poderá nos ajudar a tirar essa dúvida da cabeça. A gente vai
sair desse estado de incerteza, questionamentos, espero – embora ache
difícil depois de tantos anos. Fui contra isso durante muito tempo. Não
queria porque sabia que seria muito doloroso, como de fato foi. Desabei
naquele momento, perto do caixão de Jango de novo. Eu sempre achei que
ele tinha morrido de infarto. Mas tantas dúvidas foram sendo levantadas,
tanta polêmica... Hoje, acho possível, sim, que tenham envenenado algum
dos remédios que ele tomava para o coração. Pode ter havido troca do
remédio, sim.
ISTOÉ
– A sra. acha importantes esses movimentos em busca de um passado? O
que pensa do trabalho da Comissão Nacional da Verdade?
Maria
Thereza – Muito importante. As pessoas precisam saber o que aconteceu,
que fim tiveram os que desapareceram. Vivemos um momento muito
importante. Essas medidas já deveriam ter sido tomadas, mas não foram
antes dos governos do Lula e da Dilma. A iniciativa foi deles. Ninguém
antes foi capaz de tomar uma atitude dessas. Fiquei arrasada com os
depoimentos desse militar (coronel Paulo Malhães) que disse as coisas
horríveis que faziam com quem lutava contra o regime. Como uma pessoa
ainda tem coragem de contar? Mas é importante a gente saber, sim. Mesmo
com todo o sofrimento que provoque, especialmente para os familiares.
ISTOÉ – Quando pensa sobre o passado, o que prevalece nas lembranças?
Maria
Thereza – A certeza de que fui casada com um homem maravilhoso, que
tive uma vida maravilhosa até acontecer o golpe. Sou a mesma pessoa
simples. Minha vida mudou muito, mas eu não mudei. O grande mérito,
acho, foi ter entendido que o que aconteceu no passado faz parte do
passado. Me acho meio provinciana até hoje. Vou a São Borja, onde nasci.
Me reencontro comigo lá.
ISTOÉ – Não pretende contar sua história em livro?
Maria
Thereza – Olha, vou contar: comecei um diário quando estava no exílio,
que vai virar um livro um dia, quando eu não estiver mais aqui neste
mundo. Escrevi muitas partes em espanhol. Falo de tudo o que aconteceu,
conto tudo. Pedi à minha família para só publicar quando eu não mais
estiver aqui, porque pode ser que algumas pessoas não gostem, não tenho
muita coragem de enfrentar isso.
ISTOÉ – Recentemente, tentaram reeditar a Marcha da Família com Deus, a exemplo do ocorrido em 1964. O que achou?
Maria
Thereza – Ainda tem gente que tem coragem de fazer isso?! Ainda tem
tempo? Me disseram que foi um fiasco horrível. Imagino que tenha sido
mesmo.
ISTOÉ – Como foi a convivência com o poder?
Maria
Thereza – No início foi muito difícil me adaptar. Mas, como ele era
vice-presidente, fui aprendendo e contei com a ajuda de pessoas como a
dona Risoleta (mulher de Tancredo Neves, político) e Iara Vargas
(política e sobrinha do presidente Getúlio Vargas). Elas me orientavam
muito, em tudo. Fizemos, eu e Jango, uma viagem belíssima para os
Estados Unidos, a convite de (Richard) Nixon (presidente americano). Foi
uma vida de glamour, mas eu sabia que tinha que manter os pés no chão,
que não podia me deslumbrar para não me perder no meio daquilo. De certa
forma, eu já tinha uma relação com o poder de longe porque minha tia
era casada com um irmão de Getúlio (Vargas), frequentava o palácio.
Olha, o que posso dizer é que o poder chega e passa.
ISTOÉ – Como foi depois da morte de Jango?
Maria
Thereza – Meus dois filhos são meus dois grandes amigos, companheiros.
Fui avó cedo, com 37 anos. Meu neto, o Cris (Christopher), é uma grande
paixão, e me ajudou muito. Ele é o que mais gosta de política.
ISTOÉ – Como é a sua vida no Rio?
Maria
Thereza – Gosto muito de viver no Rio. Sou andarilha, faço caminhadas
na praia, ginástica, estou sempre em movimento. Quase nem assisto
televisão. Estou agora na fase do check up anual, me cuido. E estou
preparando uma festa para uma afilhada, filha de uma ex-empregada que é
amiga, na Baixada Fluminense, onde ela mora. Serei madrinha de batismo
e, por isso, estou fazendo um curso preparatório. A festa será lá, onde
vou sempre. Aliás, meu médico veio de Cuba e trabalha lá na Baixada: é o
João Marcelo (Goulart, neto). É um grande médico, tenho muito orgulho
dele e de todos os outros netos também. Minha família é a minha
segurança, meu apoio, alegria.
ISTOÉ – A sra. é vaidosa? Já fez plástica?
Maria
Thereza – Sim, mas sem exageros. Mantenho os 46 quilos que tinha quando
casei. Mas não me privo de comer coisas de que gosto para manter o
corpo. Como tudo o que tenho vontade, até sanduíche. Fiz uma plástica,
um minilifting. E estou querendo fazer outra.
ISTOÉ – O Jango era um homem bonito e assediado pelas mulheres, não é? Tinha ciúmes?
Maria
Thereza – Não tinha ciúmes. Ele sempre disse: nunca vou deixar de
voltar para casa. Mas tinha uma vida fora de casa – e, aliás, vou dizer:
isso era muito bom, se ficasse muito tempo não ia dar certo. Casamento é
assim. Dentro de casa, Jango era um doce de pessoa, adorava os filhos,
era uma festa quando ele chegava. Era um pai maravilhoso
ISTOÉ – A sra. ouvia falar que ele tinha casos extraconjugais?
Maria
Thereza – Tinha conhecimento, sim. Mas as pessoas falavam mais do que
acontecia. Ele tinha alguns casos, todos os políticos tinham, e muitos
ainda têm. Mas ele sempre voltava para casa. Jango era perseguido
político e na vida íntima. Diziam que ele tinha várias mulheres. Não
eram tantas. Ele gostava, não vou dizer que não. Quando ele era
solteiro, sabia que tinha algumas em Porto Alegre, mas eu nunca vi.
Falavam de uma moça no Uruguai. Nós morávamos em Punta del Este, eu
sabia que tinha essa pessoa, mas nunca vi essa criatura que diziam que o
acompanhava a lugares. Nossa vida não foi alterada por causa disso. Mas
hoje inventam, publicam falsidades, fartam-se com mentiras que vendem.
Falar mal de pessoas, especialmente as que não estão mais aqui para se
defender, é muito sério. Tenho horror disso. Infelizmente, vão muito
além da verdade e criam fantasias.
ISTOÉ – Falavam da sra. também, não é?
Maria
Thereza – Sim. Me arrumaram tantos casos aqui no Brasil... Mas quando
eu poderia ter algum caso se vivia cercada por seguranças? Nunca
aconteceu nada disso.
ISTOÉ – A sra. não quis se casar novamente?
Maria
Thereza – Não. Tive uns três relacionamentos mais sérios, mas acabaram
não dando certo. Acho que tudo ficou muito marcado na minha vida, não
consegui. Namorei um gaúcho bem mais jovem, e também gostei muito de um
canadense, de um banco do Canadá. Mas não consegui. Tudo bem. Tenho uma
família maravilhosa, amizades verdadeiras, sou feliz. Sou a Tetê de
sempre.
ISTOÉ – O Jango também a chamava de Tetê?
Maria
Thereza – Não. Ele me apelidou de Teca. Só ele me chamava assim. Tenho
uma foto dele, quando ainda era ministro do Trabalho e namorávamos, com a
dedicatória: “Para Teca, com carinho, Jango.”
* Blog Justiceira de Esquerda