SEMANA DA MULHER
Em decisão inédita, o ex-juiz Marcelo Colombelli Mezzomo foi demitido dos quadros da justiça gaúcha, por assediar atendente de lanchonete no Rio Grande do Sul. Esta é uma das manchetes que circularam desde o dia 07 de fevereiro, data que o Tribunal de Justiça exonerou o juiz Marcelo Colombelli Mezzomo. A alegação da exoneração teria sido “atitudes impróprias” ou “procedimento incompatível com a dignidade e o decoro das funções”.
O fato que deve servir de exemplo é também uma constatação de que a cultura machista e patriarcal, que permeia inclusive as instâncias judiciárias no país, constitui-se como verdadeiro óbice a realização da igualdade entre homens e mulheres e a promoção da justiça.
Dos fatos:
“Na manhã do sábado, 29 de maio de 2010, o então juiz de direito da vara de Três Passos – cidade 478 km distante de Porto Alegre – comprou um pastel no estabelecimento de Wilson e Maria Lori Neuhaus. Quem o atendeu foi Daniela, de 21 anos, casada há cinco com o filho do casal.
A garota se sentiu constrangida diante do olhar de Mezzomo, classificado por sua sogra como “atrevido”.
- Ele falou que ela era muito bonita para estar atrás de um balcão – relata Lori Neuhaus.
Mesmo depois de Daniela ter dito que era casada, o homem insistiu no assédio. Nem a intervenção de Lori o fez recuar.
- Ele me pediu licença para ficar cobiçando a moça enquanto falava comigo – prossegue a senhora, que assustada, pediu que o magistrado se retirasse.
O homem chegou a dizer que Daniela era “muito bonita e gostosa” e que a familia deveria tomar cuidado com o assédio de estranhos.
- Ele falou que cafajestes como ele poderiam aparecer e provocar problemas – descreve a proprietária do estabelecimento.
Antes de ir embora, Mezzomo pediu ainda que Lori lhe desse um tapa na cara para que ele a deixasse em paz.
- Ele não estava no seu estado normal – acredita a senhora.
Na interpretação do desembargador Túlio Martins, o ex-titular da vara de Três Passos estava “visivelmente embriagado”. “Não sei se não estava sob o efeito de drogas também”, complementa.” (fonte: O Globo).
Do direito – A mulher é sujeito de direitos, e nestes devem ser garantidas a viabilidade de uma vida digna, livre de opressões, violências e dos constrangimentos exercidos pelos homens sobre elas.
As negações e obstáculos a esses direitos são comumente naturalizados pela cultura dominante patriarcal e androcêntrica, que historicamente culpabiliza as mulheres atribuindo a violência e violações ao próprio destino, cuja resposta deve ser a resignação delas diante de tais abusos.
É de fundamental importância compreender que as práticas e concepções machistas não são involuntárias, pelo contrário são fortemente carregadas de sentido que objetivam manter e sustentar a opressão das mulheres e sua invisibilidade ante o Estado de Direitos e a sociedade como um todo.
Desta lógica, decorrem-se múltiplas distorções que transformam assédio em uma mera cantada; violência, como forma de manifestação de amor; assassinatos como extremos de descontrole emocional; e repudio a aceitação das desigualdades e diferentes formas de violência como fenômeno social, que só tem espaço nos discursos feministas.
Queremos dizer com isso, que a naturalização das desigualdades e da violência, perpetuada nas diversas instâncias sociais, é um subterfúgio para legitimar um anti-direito e afastar cada vez mais as mulheres, da realização plena de uma vida digna como direito fundamental de todos os seres humanos.
Neste sentido, o Brasil consolidou em 2006, uma legislação especifica, de tutela especial às mulheres, através da denominada Lei Maria da Penha. Como forma de combate a esta violência especifica, e como reconhecimento, que pela Lei geral, esta forma de violência não seria vencida. Assim, a Lei Maria da Penha, fez assumir, o problema da violência contra mulher, como questão de interesse publico, e não restrito a esfera privada, (“onde não se metia a colher”).
A Lei, que completa agora cinco anos de vigência, bem como as mulheres que dela se utilizaram, foram menosprezadas, questionadas, atacadas, pelos próprios operadores do direito, que saíram prontamente invocando a sua inconstitucionalidade e negando a sua aplicação e necessidade. Fato que conduz a compreensão, de que, um dos principais desafios a serem enfrentados para sua eficácia é sim, a urgente e necessária superação da cultura machista entranhada na própria estrutura de aplicação do direito no país. Deste modo, uma transformação na prestação da tutela jurisdicional, que deve estar a serviço de garantir os direitos da mulher e não da legitimação das desigualdades entre eles e elas naturalizada no conjunto da nossa sociedade.
Além do ex-juíz Mezzomo, Edílson Rumbelsperger Rodrigues, juiz titular da 1ª Vara Criminal de Sete Lagoas (MG), considerou a Lei Maria da Penha inconstitucional e suas decisões foram integralmente reformadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Neste caso, o juiz declarou que a Lei Maria da Penha tem “regras diabólicas” e que as “desgraças humanas começaram por causa da mulher”, além de outras frases igualmente polêmicas. Na ocasião da abertura do processo, declarou à imprensa que combate o feminismo exagerado, como está previsto em parte da lei. Para ele, esta legislação tentou “compensar um passivo feminino histórico, com algumas disposições de caráter vingativo”.
A gota d’água – O desligamento do Sr. Marcelo Colombelli, é fruto da reincidência em uma série de “procedimentos incompatíveis” que ele vinha procedendo desde quando foi nomeado juiz. Sabe-se que ele já estava respondendo a outros procedimentos por conduta inadequada e havia sido penalizado com uma censura, que é uma advertência relativamente grave.
É também, uma demonstração, de que a sensibilização necessária da estrutura judicial para o fenômeno da violência sexista, já surte efeitos, embora, haja um longo caminho a ser trilhado para que a justiça, realmente se perfectibilize para as mulheres.
Diante de tudo, não estranhamos que para este ex-juíz a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é considerada inconstitucional e que furtava-se a aplicar a Lei, pois não aceitava julgar processos tendo ela como norma única. Além de não cumprir com sua obrigação enquanto magistrado ele escrevia e publicava artigos sobre suas posições. Chegou a defender que a Lei trata as mulheres com o olhar da vitimização e publicou num sitio de Direito que “Partir do pressuposto de que as mulheres são pessoas fragilizadas e vitimizadas, antes de protegê-las, implica fomentar uma visão machista. Não há em todo o texto constitucional uma só linha que autorize tratamento diferenciado a homens e mulheres na condição de partes processuais ou vítimas de crime”.
Quando juiz titular da 2ª Vara Criminal de Erechim, nunca aplicou a Lei Maria da Penha por considerá-la inconstitucional e violadora da igualdade entre homens e mulheres. Escrevia em suas sentenças que o “equívoco dessa lei foi pressupor uma condição de inferioridade da mulher, que não é a realidade da região Sul do Brasil, nem de todos os casos, seja onde for“, e que “perpetuar esse tipo de perspectiva é fomentar uma visão preconceituosa, que desconhece que as mulheres hoje são chefes de muitos lares e metade da força de trabalho do país“.
Ora, só uma justiça míope, pode pretender tratar desiguais como iguais, promovendo assim maiores injustiças. Fazendo valer suas convicções pessoais, e afastando uma norma legitimamente vigente, fez o ex-juiz as mulheres duplamente vitimas: quando vitimas da violência e ao isentar de responsabilização criminal os agressores.
Assim, identificamos que em diversas situações, o Ministério Público tem recorrido contra as sentenças de juízes em relação às medidas protetivas, haja vista que não são poucos os magistrados que se negam a reconhecer na Lei Maria da Penha sua legalidade e potencial de realização de justiça. Todos os recursos foram concedidos pelas Câmaras Criminais do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Assim, passo a passo, o próprio direito vai afastando as pedras do caminho da justiça. O Sr. Marcelo Colombelli Mezzomo, ex-juiz, é uma pedra a menos, nesta longa jornada que temos para consolidar a justiça para as mulheres, efetivando-se para além da lei e sua forma abstrata.
É imprescindível considerar que a (descom)postura do Sr. Marcelo enquanto no exercício da magistratura, expôs o seu machismo pessoal e todo o seu preconceito contra as mulheres, valendo-se de forma irresponsável da distorção dos instrumentos e dispositivos legais. Já em julho de 2008 a Marcha Mundial das Mulheres repudiou os comentários do ex-juiz afirmando que este, reproduzia o machismo e o patriarcado existente nas estruturas de direito da sociedade. Passados 2 anos e 7 meses o próprio Sr. Marcelo corrobora nossa afirmativa assumindo-se como infrator potencialmente enquadrado pela Lei Maria da Penha. Dessa forma fica nítida e materializada a sua irresponsabilidade e improbidade cometidas no ato de emitir interpretação falsa e pessoalizada de tal legislação em detrimento da aplicação justa e igualitária do Direito.
Permanecem algumas questões. Quantas mulheres serão vítimas duplamente da violência sexista praticada em casa e nos tribunais? Quantos Colombellis utilizarão da deturpação da Justiça para sustentar a invisibilidade e os crimes cometidos contra as mulheres? Quantas Danielas levantarão a voz exigindo seus direitos? Quantas notas, textos, artigos os movimentos feministas terão de escrever reafirmando e combatendo as mesmas práticas, machismo, misoginia e sexismo? Até quando?
Ações do Movimento de Mulheres – A Marcha Mundial das Mulheres, em sua Ação 2010, definiu 4 eixos de intervenção sendo um deles é a violência contra as mulheres. E fala justamente desta violência naturalizada, que faz parte do cotidiano da maioria das mulheres brasileiras e em todos os países e precisa ter um fim. Mas de que forma as mulheres estão se organizando para isto? Dando visibilidade a todas as formas de violência e sua origem. Sabemos que a raiz está no machismo que trata todas as mulheres como objeto e se manifesta de diferentes formas na sociedade capitalista, discriminadora e misógina.
Sabemos que é senso comum que a violência tem sua maior expressão dentro de casa e os agressores estão entre as pessoas conhecidas da mulher, e mais que isso, compõem suas relações de afeto. Mas também sabemos que é violência sermos tratadas como mercadoria, como objetos de desejo dos homens.
Uma vitória foi obtida com a exoneração deste juiz e esperamos que outros juízes também tenham suas condutas avaliadas. A sociedade precisa assumir um compromisso com a tolerância, a paz, e com a igualdade substancial. Para isto cabe ao movimento de mulheres, dar cada vez mais visibilidade às lutas das mulheres contra a violência sexista, a partir da sensibilização das pessoas, através da pressão para que o Estado elabore e execute políticas públicas e o judiciário seja de fato uma instituição ética na qual depositamos nossa confiança e respeito.
Precisamos lutar contra a padronização e por mudanças culturais urgentes. As novas relações sociais serão construídas a partir destes paradigmas, rumo a um projeto global de transformação da vida das mulheres e da sociedade.
Mudar o mundo para mudar a vida das mulheres para mudar o mundo!
Analine Specht é do Coletivo Brasil Autogestionário; Claudia Prates e Sirlanda Selau são militantes fiministas da Marcha Mundial das Mulheres do RS.