Sader explica por que FHC deu errado.
E por que Serra vai perder
O Conversa Afiada acata sugestão do amigo navegante João:
PHA, segue mais uma sugestão de pauta. A matéria do Emir Sader é, mais uma vez, de uma enorme lucidez.
João
Por que o governo FHC deu errado
Por Emir Sader – 26 junho 2010
FHC teve a audácia de assumir o modelo neoliberal adotado por François Mitterrand, a partir do seu segundo ano de governo, e por Felipe Gonzalez, desde o começo. Acreditou no Consenso de Washington, de que qualquer governo “sério” teria que adotar as suas recomendações, não apenas cuidando dos desequilíbrios fiscais, mas centrando seu governo na estabilidade monetária.
A passagem dos governos Thatcher e Reagan aos de Blair e Clinton dava a impressão a um observador superficial que, qualquer que fosse o governo, o ajuste fiscal seria o seu eixo. Que haveria que terminar com os direitos sociais sem contrapartidas – como tinha feito Clinton, ao dar por terminado o Estado de bem estar social, instalado por Roosevelt.
Para isso, no Brasil, seria preciso atacar o Estado herdado de Getúlio e os movimentos sociais, que certamente defenderiam os direitos sociais a serem atacados, para recompor as contas públicas. Até ali, os tucanos tinham dado passos tímidos primeiro nessa direção, com o “choque de capitalismo” do Covas em 1989, passaram a atitudes mais audazes, como a entrada de uma avançada do partido no governo Collor – entre eles, Celso Lafer, Sergio Rouanet -, preparando o desembarque oficial, de que se salvaram pelo veto do Covas e pela queda do Collor.
Chamado pelo desorientado – até hoje – Itamar, FHC assumiu, eufórico, a globalização neoliberal como “o novo Renascimento da humanidade” (sic), nas suas próprias palavras. Era um destino inexorável, que a “atrasada” esquerda brasileira não percebia e seria esmagada pela nova onda. Seu vocabulário desqualificador das divergências, sua empáfia privatizadora, sua truculência ao mudar o nome da Petrobrás para torná-la um “global player” e privatizá-la, revelavam a auto- confiança daquele que representava a voz inteligente da “terceira via” nas periferias da vida, que convivia com Blair, Clinton e companhia nos seus ágapes globais.
Confiou-se de tal maneira de que o controle monetário, a partir da caracterização tentadora de que “a inflação é um imposto aos pobres”, que embora tivesse a sua mulher encarregada de políticas sociais – no estilo mais tradicional das primeiras damas -, o peso dessas nunca passou do figurino e do marketing, sem efeito algum que se contrapusesse à desigualdade social, acelerada no seu governo, uma vez passados os efeitos imediatos do controle da inflação. Um economicismo barato dominou seu governo – que ao contar com o coro unânime da imprensa, com a maioria absoluta no Congresso e com o apoio internacional, – acreditava no seu sucesso inevitável.
Afinal, Mitterrand e Felipe Gonzalez tinham se perpetuado por mais de uma década no governo dos seus países, Clinton e Blair gozavam também de grande popularidade, a adesão de forças tradicionais ao neoliberalismo parecia dar certo na Argentina, no México, no Chile. Não haveria alternativa ao Consenso de Washington e ao Pensamento Único, como havia previsto Margareth Thatcher – parecia estar plenamente convencido FHC, ainda mais quando foi reeleito no primeiro turno em 1998 – com pressa, porque a crise já era iminente e o Malan já negociava nova Carta de Intenções com o FMI, preparando-se para levar as taxas de juros, em janeiro de 1999 aos estratosféricos 48%, sem nenhum protesto do ministro José Serra.
Os primeiros anos da estabilização monetária foram os de auge de FHC, que lhe propiciaram um segundo mandato, mas naquele momento já havia iniciado seu declínio. As Cartas de Intenções do FMI, a profunda convicção nas teses do Estado mínimo, da predominância do mercado, nas privatizações, na abertura da economia, levaram o país a uma profunda e prolongada recessão, ao mesmo tempo em que o próprio sucesso do controle da inflação começava a desandar.
Serra não era o candidato da predileção de FHC, entre os dois travou-se uma dura guerra, quando a saúde afastou Covas da parada. Mas qualquer que fosse o candidato, teria perdido para Lula naquele momento. Serra tentou não arcar com o ônus do governo FHC e FHC tentou dizer que a derrota era do Serra e dele. Mas, abraçados ou não, os dois foram a pique.
Essa derrota pesa definitivamente sobre o destino tucano. Não tiveram capacidade de conquista de bases populares mais além da estabilidade monetária, até porque não tinham plano de retomada do desenvolvimento – palavra totalmente enterrada por eles – e de distribuição de renda. Foram derrotados pelo seu sucesso efêmero e artificial, financeiro, especulativo.
Hoje, quando a depressão da derrota – agora inevitável – domina o ninho tucano, os ataques, as cotoveladas e caneladas sobram para todo lado. Certamente consciente da derrocada do Serra, FHC se apressou a dizer, antes mesmo da divulgação da pesquisa do Ibope, que via com sérias preocupações as possibilidades do candidato tucano, apesar de que ele tinha “ajudado”. Deixava o cadáver para os outros, aqueles que tentaram esconde-lo, a ele e a seu governo. Imaginem-se as palavras que Serra deve ter reservado para FHC, que na hora da débâcle, lhe dá as costas.
A escolha do vice tornou-se um calvário. Não se trata agora de escolher um vice que consiga votos, mas um que tire menos votos e, conforme a indecisão foi aumentando a lista de pré-candidatos, descontente a menor gente. Chega-se ao que a pesquisa do Datafolha os tinha livrado, aparentemente: o de chegar a uma Convenção em queda livre nas pesquisas e sem o Aécio.
O governo FHC deu errado como o neoliberalismo deu errado. Sua derrota e a crise final dos tucanos representam isso. Por isso, a vitória da Dilma tem que ser a vitória da esquerda e do campo popular, da superação do neoliberalismo, do fortalecimento do Estado, do desenvolvimento econômico e social, do Brasil soberano, da construção de uma sociedade justa, solidária e próspera.
do Conversa Fiada
Um furacão de austeridade econômica na Europa
Por Jérôme Duval, Damien Millet e Sophie Perchellet [Domingo, 27 de Junho de 2010 às 12:21hs]
A crise atual é o meio ideal para que o FMI aplique na Europa as suas receitas ultraliberais adulteradas, receitas essas que impõe aos países em desenvolvimento desde o início dos anos 80. Desautorizado durante três décadas de planos de ajustamento estrutural impostos brutalmente aos povos do sul, o FMI volta ao centro do jogo político a partir do momento em que o G20 se responsabiliza pela gestão da crise, em 2008.
O sul foi o primeiro campo de batalha. A Europa é agora a sua continuação. O FMI multiplica os empréstimos a alguns países europeus que se encontram em dificuldades para pagar uma dívida pública aumentada repentinamente devido à desaceleração econômica e aos planos de salvação de bancos, cuja desenfreada procura de lucros levou, justamente, a esta crise.
Em 2007, a Turquia era o único país de envergadura que ainda batia à porta do FMI. Muitos outros países como o Brasil, a Argentina, o Uruguai, as Filipinas etc., tinham cancelado antecipadamente a sua dívida com o FMI para se libertarem da sua incômoda tutela. O tempo das vacas magras foi ultrapassado e, em menos de um ano, o FMI já abriu uma linha de crédito para uma dezena de países europeus e intervém desde essa altura em múltiplas frentes.
Agora, a instituição vê que os seus lucros quadruplicaram durante o exercício de 2009-2010 (fechado em finais de abril), mesmo sem ter em conta a venda de parte das suas reservas de ouro. Lucros que são de 534 milhões de dólares face aos 126 milhões de dólares do exercício anterior. Confiar a gestão da crise a um organismo que tira proveito dela a este ponto não deveria deixar os cidadãos tranquilos… Por outro lado, enquanto o Fundo impõe o congelamento, ou redução, dos salários um pouco por todo o lado, o seu diretor-geral, o socialista francês Dominique Strauss-Kahn "sofreu" um aumento superior a 7% desde a sua chegada, estabilizando no meio milhão de dólares/ano.
O primeiro país atingido foi a Hungria, antes da Ucrânia, Islândia e Letónia. Depois, em 2009, foram a Bielorrússia, Roménia, Sérvia, Bósnia e, mais recentemente, a Moldávia e a Grécia. A lista de países que solicitam empréstimos à instituição continua a aumentar e todos eles são obrigados a aplicar os planos de austeridade ditados pelos mercados financeiros, pelo FMI e pela União Europeia.
O impacto social desastroso sobre as populações remete aos planos de ajuste estrutural de sinistra memória, implantados no sul depois da crise da dívida de 1982. Estes planos de austeridade têm como objetivo uma forte redução dos gastos públicos, sem atingir o grande capital, a fim de arranjar os fundos necessários para reembolsar prioritariamente os credores.
A Hungria abre a dança dos ajustamentos
Em outubro de 2008, foi aprovado um plano para a Hungria de 20 bilhões de euros: 1,3 bilhão emprestados pelo FMI, 6,5 bi emprestados pela União Europeia e 1 bi de euros emprestados pelo Banco Mundial. Além do crescimento automático do estoque da dívida e da perda líquida, devido ao pagamento de juros, implantou-se uma série de condições severas para a população: aumento de 5 pontos no IVA, atualmente nos 25%; aumento da idade legal de reforma para os 65 anos; congelamento de salários para os funcionários públicos durante dois anos; supressão do subsídio de Natal para os reformados.
A Hungria, governada pelos sociais-democratas, tinha conseguido salvaguardar um sistema social bastante protetor. O descontentamento da população em consequência da aplicação, sob a ameaça do FMI, dessas medidas de austeridade, beneficiou a direita conservadora que acusou os sociais-democratas no poder de terem transformado o país numa "colônia do FMI" (conforme escreveu o jornal conservador Magyar Nemzet). No entanto, a vitória do novo primeiro-ministro conservador Viktor Orban foi aclamada pela agência de notação financeira Fitch Ratings, que considera que o partido de Orban, o Fidesz, obteve a maioria necessária para modificar a Constituição e, por isso, "representa uma oportunidade para introduzir reformas estruturais".
Os sociais-democratas sofreram uma derrota histórica nas eleições legislativas de Março de 2010 e abriram as portas à extrema-direita, que entrou no parlamento pela primeira vez, com 16,6% dos votos.
Ucrânia sancionada pelo FMI
O FMI aprovou, em novembro de 2008, um programa de resgate de dois anos para a Ucrânia que atingiu os 16,4 bilhões de dólares. Até maio de 2010, o país só tinha recebido 10,6 bilhões de dólares da instituição. Por quê? Porque desde o aumento de 20% no salário mínimo, aprovado pelo governo anterior de Viktor Yúshenko em finais de outubro de 2009, o FMI suspendeu a entrega de fundos. A visita de uma delegação ucraniana a Washington, em dezembro de 2009, não resultou em qualquer alteração e o pagamento de uma nova fração do crédito permanece bloqueado.
O último pagamento remonta a julho de 2009, devido à falta de acordo de Kiev acerca das condições. O FMI fixou o déficit orçamentário previsto para 2010 em 6% do PIB, enquanto o governo propõe um déficit de 10% para não ter de apertar tanto o cinto. Fortemente penalizada pela crise, a Ucrânia sofreu uma queda de 15,1% do PIB em 2009, e conseguir um déficit de 6% em 2010, como exige o FMI, é uma missão impossível.
Enquanto espera, a Ucrânia teve de aprovar o aumento da idade da reforma e o aumento de 20% na tarifa do gás aos particulares, a partir de 1 de setembro de 2009. Prevê-se uma privatização e recapitalização dos bancos. A privatização da fábrica química de fertilizantes de Odessa volta a estar sobre a mesa, apesar da sua importância estratégica para a região e para o Estado, e apesar de as críticas que podem ser feitas relativamente às suas práticas ambientais. O novo governo, formalizado em março de 2010 com a eleição presidencial de Viktor Yanukóvich, propõe, entre as suas prioridades, continuar a solicitar ajudas ao FMI. Dessa forma, espera obter um plano de apoio de 19 bilhões de dólares do FMI, depois de fazer o parlamento aprovar um orçamento para 2010 que prevê reduzir o défice até 5,3% do PIB, superior às próprias exigências do Fundo. A visita do FMI, no fim de março de 2010, foi a oportunidade para se aproximar do novo governo com vista ao relançamento do crédito, acompanhado por futuras medidas de austeridade.
Grécia: berço da democracia
Enquanto a Grécia, sufocada por uma dívida recorde, batia à porta da União Europeia e do FMI (em princípio para um empréstimo de urgência de 45 bilhões de euros, dos quais 15 bilhões correspondiam ao FMI) a agência de notação financeira Standard & Poor’s diminuía (em três níveis) a nota da sua dívida, a 27 de abril de 2010. Os mercados caem e os investidores especulam em baixa, acentuando a tendência.
O primeiro-ministro Papandreu declarava a 11 de dezembro de 2009 que "os assalariados não pagarão por esta situação. Não procederemos à congelação ou à redução dos salários. Não chegámos ao poder para desmantelar o Estado social". No entanto, em 18 de março de 2010 começou a ser minuciosamente elaborado um plano comum UE - BCE – FMI com o acordo do PASOK, o partido de Papandreu no poder, cuja contrapartida seria uma cura de austeridade sem precedentes, de modo a economizar, à custa do povo grego, 4,8 bilhões de euros em março de 2010 e, depois, mais 30 bilhões em maio, de acordo com um novo plano, com o objetivo de pagar aos credores.
No menu, o congelamento de contratações e a redução dos salários dos funcionários (corte substancial nos pagamentos extraordinários, diminuição dos prêmios, apesar de uma anterior redução dos salários decidida em Janeiro de 2010); congelamento das pensões; aumento do IVA de 19% para 23% – apesar de se tratar de um imposto injusto que afeta maioritariamente os mais desfavorecidos –; aumento dos impostos sobre o álcool e o tabaco; redução drástica das despesas sociais, como a Segurança Social etc.. Os direitos sociais são sacrificados no altar dos interesses da "elite tradicional local" e das despesas militares, o orçamento mais importante da UE, relativamente ao seu PIB. A população reagiu em força e organizou greves gerais (nos dias 10 de fevereiro, 11 de março, 5 de maio e 20 de maio de 2010) que paralisaram o país muitas vezes.
Os romenos também vêm para a rua
Juntamente com a Bulgária, a Romênia é um dos países mais pobres da União. Em março de 2009, a Romênia obteve um empréstimo de cerca de 20 bilhões de euros: 12,9 bilhões correspondentes ao FMI, 5 bilhões à UE, entre 1 e 1,5 bilhão ao Banco Mundial e o restante a várias instituições, entre as quais figura o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD). Em troca, Bucareste comprometeu-se a reduzir o seu déficit público de 7,9% do PIB em 2009 para 5,9%, mas ao considerar-se este objetivo não realista, fixa-se finalmente em 6,8% em 2010.
No menu, mais do mesmo: congelamento de pensões e de salários com a manutenção do salário mínimo em 600 lei brutos (145 euros), supressão de 100 mil funcionários públicos em 2010, ou seja, 7,5% dos efetivos da função pública. Ali também a população se mobilizou contra as medidas de austeridade. A 19 de maio, mais de 60 mil manifestantes concentraram-se diante da sede do governo no momento em que este reforçava o seu programa de ajustamento, ao anunciar uma redução de 25% no salário dos funcionários públicos e de 15% nos subsídios de desemprego e nas pensões, cujo mínimo é já de 85 euros.
Além disso, o governo prevê a redução por decreto dos subsídios às famílias, bem como das ajudas dadas aos deficientes. É novamente à custa dos mais pobres que se quer pagar a crise, evitando-se cuidadosamente onerar o capital: o imposto de sociedades caiu 9 pontos, passando de 25% em 2000 para 16% em 2009.
Os islandeses recusam-se a pagar
Antes da famosa nuvem de cinzas vulcânicas que paralisou o espaço aéreo europeu, em 2010, durante vários dias, a Islândia já tinha sido notícia de grande actualidade devido a uma grave crise em 2008. O desemprego tinha passado de 2%, em outubro de 2008, para 8,2%, em Dezembro de 2009. O Estado salvou da falência os três principais bancos do país, endividando-se enormemente e não podendo, mais tarde, garantir o reembolso aos detentores britânicos e holandeses dos seus títulos.
Depois de uma grande mobilização popular, a lei foi rejeitada por mais de 73% da população no referendo de março de 2010. Um relatório da SIC (Special Investigative Commission) apresentado em Abril perante o parlamento, questionou a responsabilidade de alguns dirigentes dos grandes bancos e de membros do governo cessante, em particular a do anterior primeiro-ministro, na crise bancária de 2008. David Oddsson, que dirigia o Banco Central em 2008, fugiu justamente antes da publicação desse relatório e escapou assim à Justiça do seu país.
Quatro antigos dirigentes do Banco Kaupthing, entre eles o anterior presidente-diretor-geral Hreider Mar Sigurdsson, foram detidos à sua chegada a Luxemburgo, onde residiam. Sigurdur Einarsson, presidente do conselho de administração, refugiado em Londres, tem também uma ordem de detenção, emitida pela Interpol.
Em conluio com o FMI, a União Europeia dita as suas vontades aos governos e impõe medidas bastante impopulares. Em novembro de 2009, o parlamento europeu emprestou à Sérvia 200 milhões de euros; à Bósnia-Herzegovina, 100 milhões de euros; à Arménia, 65 milhões de euros de empréstimo e 35 milhões de euros de subvenção; e à Geórgia, uma subvenção de 46 milhões de euros.
Esmagados pela especulação sobre a dívida, antes mesmo da intervenção do FMI, os estados tomam a iniciativa e prevêem reformas anti-sociais em Espanha, Portugal, Irlanda, Itália… Por toda a parte estes tratamentos de austeridade espremem os salários e preservam o grande capital, responsável por este beco sem saída capitalista. Por toda a parte os povos se mobilizam e a única esperança reside precisamente nessa mobilização. É urgente, para todos os que querem resistir eficazmente à lógica capitalista, trabalhar pela unificação destas lutas.
da Revista Forum
O discurso cínico e perigoso da austeridade
Predomina na Europa a idéia da austeridade como solução para os desequilíbrios econômicos. Esta política está baseada na concepção de que o déficit fiscal é a causa da crise. Assim se oculta que esses saldos negativos nas contas públicas têm sua origem em governos que aportaram pacotes volumosos de resgate do sistema financeiro para evitar sua quebra. Com uma elevada cota de cinismo, os principais beneficiários desses planos bilionários de auxílios são agora os maiores críticos do que denominam políticas irresponsáveis e de esbanjamento dos governos. A Alemanha é hoje uma das principais defensoras dessa via. O artigo é de Alfredo Zaiat, do Página 12.
Alfredo Zaiat - Página 12
Várias palavras identificam os militantes das políticas de ajuste sobre os grupos vulneráveis da sociedade, mas uma os delata sem possibilidade de dissimulação nestes tempos de crise internacional: “austeridade”. Diante da sucessão de descalabros sociais nas últimas décadas, mencionar o termo ajuste começou a provocar certa prevenção, embora não poucos economistas mantenham sua atitude fundamentalista de não ocultá-lo.
Outros preferiram evadir-se com habilidade desse selo de identidade do fracasso buscando uma via de escape no vocábulo “austeridade”, que encerra ainda um significado positivo para a maioria, embora tenha o mesmo conteúdo que o do ajuste. Esse conceito de austeridade socialmente aceito se vincula a essa concepção familiar que diz que “a poupança é a base da fortuna”. Mas para um Estado essa máxima implica restrições, visto que seu orçamento e influência no funcionamento da economia não tem nada a ver com a organização do orçamento familiar.
Esta última confusão é alimentada no espaço público local por essa aliança legislativa que unifica conservadores com setores da centro-esquerda preocupados com a volta de investimentos públicos, com a magnitude de subsídios e o manejo global de recursos por parte do Estado. São inquietudes interessantes em situações de normalidade da economia internacional, mas que na atual situação requerem precisão conceitual para não restarem absorvidas pelas mensagens tradicionais dos militantes do ajuste. Diferenciação complexa de se obter, visto que não se deve ignorar o que já se estudou bastante a respeito da influência na sociedade do vínculo entre meios de comunicação e hegemonia cultural.
O debate sobre o gasto público, sua origem e destino não é um a mais nestes momentos de descalabro econômico global. A histórica defesa da intervenção estatal na economia é tão importante como evitar alinhar-se na rota do questionamento global à administração dos recursos públicos.
Este aspecto é muito relevante porque em nível internacional se está travando uma forte batalha sobre a questão fiscal, com epicentro na desengonçada eurozona e onde os Estados Unidos jogam de contrapeso, alentando a continuidade dos planos de estímulo fiscal em defesa de seus próprios interesses. Sabe-se que as tendências conservadoras depois se irradiam para a periferia, como o provam as experiências do reaganomics dos oitenta e o Consenso de Washington dos noventa. Usinas do pensamento neoliberal domésticas já assumiram silenciosamente a tarefa de força avançada com o tema da previdência, defendendo a necessidade de aumento da idade de aposentadoria com o argumento da sustentabilidade do sistema no longo prazo, espelhando as medidas dispostas por países europeus em crise.
Na fase atual de descalabro das finanças globais está predominando na Europa a idéia da austeridade como solução para os profundos desequilíbrios econômicos. Essa receita é defendida pela Alemanha, levantando essa bandeira com um plano exemplar de corte orçamentário de 80 bilhões de euros até 2014. Esta política está baseada na concepção de que o vultuoso déficit fiscal é a causa da débâcle. Assim se oculta que esses saldos negativos elevados nas contas públicas têm sua origem em governos bondosos que aportaram pacotes volumosos de resgate do sistema financeiro para evitar sua quebra nos últimos anos. Com uma elevada cota de cinismo, os principais beneficiários desses planos bilionários de auxílios fiscais são agora os maiores críticos do que denominam políticas irresponsáveis e de esbanjamento dos governos, exigindo o caminho da austeridade.
Afirmam sem se ruborizar que querem a menor intervenção pública nos assuntos econômicos, obviamente a menos que os beneficie diretamente. Aqui é onde se expressa com mais nitidez a presença dessa hegemônica cultura da ortodoxia econômica através da mídia, expondo economistas do establishment e classe política conservadora em arremetida sobre o gasto público, o que exige dos representantes do pensamento crítico certa habilidade para não terminar confuso entre eles. Marshall Auerback, analista econômico norte-americano e pesquisador do Roosevelt Institute, explica-o do seguinte modo: “as elites que se escandalizam contra este gasto público vêm a ser como alguém que dá a outro cinco pacotes de cigarro por dia para depois indignar-se com o fato de que seu beneficiário contraiu irresponsavelmente um câncer de pulmão”.
Este é o principal tema em disputa no G-20, que se reúne neste fim de semana em Toronto, Canadá, e não o imposto sobre as transações financeiras que a Alemanha e outros países impulsionam com escassa convicção. Os representantes políticos das finanças globais impõem o corte do que qualificam de esbanjamento do gasto público, o que implica reduzir ainda mais a demanda privada. Também definem rebaixamento dos salários. Esses líderes tomam decisões adotando a linha conceitual do FMI, segundo a qual os multiplicadores fiscais são relativamente baixos. Isto implica que um fortíssimo ajuste, como estão anunciando em ordem unida os europeus, não aguçaria o ciclo recessivo. Estão convencidos de que a economia reagirá com estabilizadores automáticos a partir de uma política de austeridade. Auerback explica que “há provas empíricas irredutíveis de que essa hipótese é falsa e de que pôr em prática políticas fundadas nessa hipótese causa danos – que afetam gerações inteiras – em termos de queda no volume da produção, da receita, dos investimentos, do emprego e das bancarrotas empresariais.
O Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman se põe duramente contra essa política de austeridade, ao considerá-la um “erro terrível”. Assinala que essa estratégia defendida pela Alemanha “é uma má idéia”. Entre outras medidas, a chanceler Angela Merkel disse que baixarão os salários dos funcionários públicos, eliminarão milhares de postos de trabalho no Estado, cortarão benefícios sociais a setores desprotegidos e congelarão as obras públicas. Krugman explica que “a cultura da estabilidade” orçamentária alemã vale para tempos normais, não para os atuais, quando os países com superávit comercial devem contribuir para o crescimento do investimento público e para a dinamização do consumo interno, para atuar assim como motor de impulso do resto das economias. A austeridade alemã impactará negativamente outros países europeus vulneráveis, aprofundando a recessão e debilitando o euro ainda mais.
Esse retrocesso da moeda comum européia termina favorecendo às exportações européias, em especial o complexo industrial alemão. Este movimento é o que inquieta os Estados Unidos e por esse motivo Obama propôs ao G-20 manter os estímulos fiscais para sair da crise, na linha oposta à política de austeridade. A estratégia de Merkel, combinada com uma desvalorização do euro e uma redução do consumo interno, culminará exportando os efeitos da austeridade alemã para o resto do mundo, afetando a economia dos Estados Unidos, mas também instalando o risco de estar dando um empurrão para um segundo turno da crise global.
Tradução: Katarina Peixoto