Julgamento,
a partir das 14h, será acompanhado por mobilização de alunos cotistas e
Banda Afro-reggae, e acompanhado pelo cineasta Spike Lee
Pode
terminar esta tarde, em Brasília, um episódio emblemático de
resistência das elites brasileiras a medidas democratizantes que atingem
seus privilégios. O plenário do Supremo Tribunal Federal julgará três
Ações Diretas de Inconstitucionalidade que procuram anular as políticas
de cotas sociais e raciais nas universidades. Foram impetradas por um
partido político (naturalmente, o DEM…), pela Confederação dos donos de
escolas privadas (a Confenen) e por um estudante branco que se julgou
prejudicado.
Hoje,
a confirmação das cotas é considerada certa: diversos ministros do STF
já se manifestaram por sua constitucionalidade. Mas há apenas três anos,
quando as ações começaram a chegar ao tribunal, o cenário era outro,
lembra o blog Mamapress.
Os jornais ironizavam a nova política, afirmando que “não iria dar
certo; atrairia o ódio racion norte-americano; dividiria o país entre
pretos e brancos”; “formaria profissionais que não seriam aceitos no
mercado”. Colunistas como Demétrio Magnoli e editores como Ali Kamel
eram chamados para constantes pronunciamentos a respeito.
A
provável vitória de hoje é mais um sinal de que o país vive mudanças
culturais importantes e rápidas, impulsionadas também por uma atitude
altiva das periferias. Para pressionar o STF a enterrar as políticas
antidiscriminatórias, caravanas de alunos quotistas de vários estados
estão desde ontem em Brasília. Um ato ecumênico diante do tribunal será
animado pela Banda Afro-Reggae (na foto). O cineasta Spike Lee (diretor
deMalcolmX e Faça a Coisa Certa) anunciou que estará presente e registrará o julgamento. Ele prepara novo filme, intitulado Go, Brazil, go, em
que destaca a importância internacional do país para novos padrões de
igualdade e diálogo inter-étnico. Tais mobilizações continuam a ser
ignoradas pela mídia tradicional, num sinal de que parte das elites
deixou a histeria, mas ainda não se sente à vontade num país menos
desigual.
Os 10 mitos sobre as cotas
1-
as cotas ferem o princípio da igualdade, tal como definido no artigo 5º
da Constituição, pelo qual “todos são iguais perante a lei sem
distinção de qualquer natureza”. São, portanto, inconstitucionais.
Na
visão, entre outros juristas, dos ministros do STF, Marco Aurélio de
Mello, Antonio Bandeira de Mello e Joaquim Barbosa Gomes, o princípio
constitucional da igualdade, contido no art. 5º, refere-se a igualdade
formal de todos os cidadãos perante a lei. A igualdade de fato é tão
somente um alvo a ser atingido, devendo ser promovida, garantindo a
igualdade de oportunidades como manda o art. 3º da mesma Constituição
Federal. As políticas públicas de afirmação de direitos são, portanto,
constitucionais e absolutamente necessárias.
2- as cotas subvertem o princípio do mérito acadêmico, único requisito que deve ser contemplado para o acesso à universidade.
Vivemos
numa das sociedades mais injustas do planeta, onde o “mérito acadêmico”
é apresentado como o resultado de avaliações objetivas e não
contaminadas pela profunda desigualdade social existente. O vestibular
está longe de ser uma prova equânime que classifica os alunos segundo
sua inteligência. As oportunidades sociais ampliam e multiplicam as
oportunidades educacionais.
3- as cotas constituem uma medida inócua, porque o verdadeiro problema é a péssima qualidade do ensino público no país.
É
um grande erro pensar que, no campo das políticas públicas
democráticas, os avanços se produzem por etapas seqüenciais: primeiro
melhora a educação básica e depois se democratiza a universidade. Ambos
os desafios são urgentes e precisam ser assumidos enfaticamente de forma
simultânea.
4- as cotas baixam o nível acadêmico das nossas universidades.
Diversos
estudos mostram que, nas universidades onde as cotas foram
implementadas, não houve perda da qualidade do ensino. Universidades que
adotaram cotas (como a Uneb, Unb, UFBA e UERJ) demonstraram que o
desempenho acadêmico entre cotistas e não cotistas é o mesmo, não
havendo diferenças consideráveis. Por outro lado, como também evidenciam
numerosas pesquisas, o estímulo e a motivação são fundamentais para o
bom desempenho acadêmico.
5- a sociedade brasileira é contra as cotas.
Diversas
pesquisas de opinião mostram que houve um progressivo e contundente
reconhecimento da importância das cotas na sociedade brasileira. Mais da
metade dos reitores e reitoras das universidades federais, segundo
ANDIFES, já é favorável às cotas. Pesquisas realizadas pelo Programa
Políticas da Cor, na ANPED e na ANPOCS, duas das mais importantes
associações científicas do Brasil, bem como em diversas universidades
públicas, mostram o apoio da comunidade acadêmica às cotas, inclusive
entre os professores dos cursos denominados “mais competitivos”
(medicina, direito, engenharia etc). Alguns meios de comunicação e
alguns jornalistas têm fustigado as políticas afirmativas e,
particularmente, as cotas. Mas isso não significa, obviamente, que a
sociedade brasileira as rejeita.
6-
as cotas não podem incluir critérios raciais ou étnicos devido ao alto
grau de miscigenação da sociedade brasileira, que impossibilita
distinguir quem é negro ou branco no país.
Somos,
sem dúvida nenhuma, uma sociedade mestiça, mas o valor dessa mestiçagem
é meramente retórico no Brasil. Na cotidianidade, as pessoas são
discriminadas pela sua cor, sua etnia, sua origem, seu sotaque, seu sexo
e sua opção sexual. Quando se trata de fazer uma política pública de
afirmação de direitos, nossa cor magicamente se desmancha. Mas, quando
pretendemos obter um emprego, uma vaga na universidade ou, simplesmente,
não ser constrangidos por arbitrariedades de todo tipo, nossa cor
torna-se um fator crucial para a vantagem de alguns e desvantagens de
outros. A população negra é discriminada porque grande parte dela é
pobre, mas também pela cor da sua pele. No Brasil, quase a metade da
população é negra. E grande parte dela é pobre, discriminada e excluída.
Isto não é uma mera coincidência.
7- as cotas vão favorecer aos negros e discriminar ainda mais aos brancos pobres.
Esta
é, quiçá, uma das mais perversas falácias contra as cotas. O projeto
atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, PL 73/99, já aprovado na
Comissão de Constituição e Justiça, favorece os alunos e alunas oriundos
das escolas públicas, colocando como requisito uma representatividade
racial e étnica equivalente à existente na região onde está situada cada
universidade. Trata-se de uma criativa proposta onde se combinam os
critérios sociais, raciais e étnicos. É curioso que setores que nunca
defenderam o interesse dos setores populares ataquem as cotas porque
agora, segundo dizem, os pobres perderão oportunidades que nunca lhes
foram oferecidas. O projeto de Lei 73/99 é um avanço fundamental na
construção da justiça social no país e na luta contra a discriminação
social, racial e étnica.
8- as cotas vão fazer da nossa, uma sociedade racista.
O
Brasil esta longe de ser uma democracia racial. No mercado de trabalho,
na política, na educação, em todos os âmbitos, os/as negros/as têm
menos oportunidades e possibilidades que a população branca. O racismo
no Brasil está imbricado nas instituições públicas e privadas. E age de
forma silenciosa. As cotas não criam o racismo. Ele já existe. As cotas
ajudam a colocar em debate sua perversa presença, funcionando como uma
efetiva medida anti-racista.
9- as cotas são inúteis porque o problema não é o acesso, senão a permanência.
Cotas
e estratégias efetivas de permanência fazem parte de uma mesma política
pública. Não se trata de fazer uma ou outra, senão ambas. As cotas não
solucionam todos os problemas da universidade, são apenas uma ferramenta
eficaz na democratização das oportunidades de acesso ao ensino superior
para um amplo setor da sociedade excluído historicamente do mesmo. É
evidente que as cotas, sem uma política de permanência, correm sérios
riscos de não atingir sua meta democrática.
10-
as cotas são prejudiciais para os próprios negros, já que os
estigmatizam como sendo incompetentes e não merecedores do lugar que
ocupam nas universidades.
Argumentações
deste tipo não são freqüentes entre a população negra e, menos ainda,
entre os alunos e alunas cotistas. As cotas são consideradas por eles,
como uma vitória democrática, não como uma derrota na sua auto-estima,
ser cotista é hoje um orgulho para estes alunos e alunas. Porque, nessa
condição, há um passado de lutas, de sofrimento, de derrotas e, também,
de conquistas. Há um compromisso assumido. Há um direito realizado.
Hoje, como no passado, os grupos excluídos e discriminados se sentem
mais e não menos reconhecidos socialmente quando seus direitos são
afirmados, quando a lei cria condições efetivas para lutar contra as
diversas formas de segregação. A multiplicação, nas nossas
universidades, de alunos e alunas pobres, de jovens negros e negras, de
filhos e filhas das mais diversas comunidades indígenas é um orgulho
para todos eles.
Laboratório de Políticas Públicas/ UERJ
Demóstenes, o STF e a legalidade das cotas raciais
No Blog do Sakamoto
*MariadaPenhaNelesNo Blog do Sakamoto
O Supremo Tribunal Federal deve julgar, nesta quarta (25), se as cotas raciais para reserva de vagas em universidades públicas são constitucionais.
Uma das ações contrárias foi movida pelo DEM em 2009, pedindo sua
suspensão na Universidade de Brasília. Segundo o partido político, esse
tipo de reserva de vaga fere a dignidade e afeta o próprio combate à
discriminação e ao preconceito.
Toda
a vez que trato da questão da desigualdade social e do preconceito que
os negros e negras sofrem no Brasil (herança cotidianamente reafirmada
de um 13 de maio de 1888 que significou mais uma mudança na metodologia
de exploração da força de trabalho do que uma abolição de fato, pois não
garantiu as bases para a autonomia real dos ex-escravos e seus
descendentes) sou linchado. Até porque, como todos sabemos, o brasileiro
não é racista (suspiro…)
Bem,
resumindo o que estou querendo dizer com um discurso de descontente com
as cotas que ouvi tempos atrás: “Vê se me entende que eu vou explicar
uma vez só. A política de cotas é perigosa e ruim para os próprios
negros, pois passarão a se sentir discriminados na sociedade – fato que
não ocorre hoje. Além disso, com as cotas, estará ameaçado o princípio
de que todos são iguais perante a lei, o que temos conseguido cumprir,
apesar das adversidades”.
E relembrar é viver.
Durante
audiência no Supremo Tribunal Federal para discutir o sistema de cotas
em universidades públicas em março de 2010, o senador Demóstenes Torres
(então pertencente ao DEM-GO) usou da palavra para destilar todo o seu
profundo conhecimento sobre a história do Brasil. Quem ouviu seu
discurso saiu com a impressão de que aprendeu várias coisas novas. Que
os africanos eram os principais responsáveis pelo tráfico transatlântico
de escravos. Que escravas negras não foram violentadas pelos patrões
brancos, afinal de contas “isso se deu de forma muito mais consensual” o
que “levou o Brasil a ter hoje essa magnífica configuração social” de
hoje. Que no dia seguinte à sua libertação, os escravos “eram cidadãos
como outro qualquer, com todos os direitos políticos e o mesmo grau de
elegibilidade” – mesmo sem nenhuma política de inserção aplicada. Com
tudo isso, o nobre senador deu a entender que os negros foram os reais
culpados pela escravidão no Brasil. E, a partir disso, compreende-se que
são os culpados por sua situação econômica hoje e qualquer forma de
discriminação contra eles.
A
posição do senador é compreensível, se considerarmos que o discurso
feito não foi um ataque à reserva de vagas para negros e
afrodescendentes e sim uma defesa da elite política e econômica que
controlou a escravidão no país e que, com algumas mudanças e adaptações,
desembocou em setores do seu próprio partido.
Em
meados do século 19, com o fim do tráfico transatlântico de escravos, a
propriedade legal sob seres humanos estava com os dias contados. Em
questão de anos, centenas de milhares de pessoas estariam livres para
ocupar terras virgens – que o país tinha de sobra – e produzir para si
próprios em um sistema possivelmente de campesinato. Quem trabalharia
para as fazendas? Como garantir mão-de-obra após a abolição?
Vislumbrando
que, mantida a estrutura fundiária do país, o final da escravidão
poderia representar um colapso dos grandes produtores rurais, o governo
brasileiro criou meios para garantir que poucos mantivessem acesso aos
meios de produção. A Lei de Terras foi aprovada poucas semanas após a
extinção do tráfico de escravos, em 1850, e criou mecanismos para a
regularização fundiária. As terras devolutas passaram para as mãos do
Estado, que passaria a vendê-las e não doá-las como era feito até então.
O
custo da terra começou a existir, mas não era significativo para os
então fazendeiros, que dispunham de recursos para a ampliação de seus
domínios. Porém, era o suficiente para deixar ex-escravos e pobres de
fora do processo legal. Ou seja, mantinha a força de trabalho à
disposição do serviço de quem tinha dinheiro e poder.
Para
além dos efeitos da Lei Áurea, que esta prestes a completar 124 anos em
maio, trabalhadores brasileiros ainda são subdivididos em classes. Ou
castas. O homem branco ganha mais do que o homem negro pela mesma
função, seja pelas diferenças de oportunidades que os dois tiveram
acesso, seja por puro preconceito. Se compararmos então com as mulheres
negras, a sensação de vergonha de ser brasileiro aflora de vez.
Mudaram-se os rótulos, ficaram as garrafas.
O
Brasil não foi capaz de garantir que os libertos fossem tratados com o
respeito que seres humanos e cidadãos mereciam, no campo ou na cidade.
Herança maldita disseminada na sociedade. E alimentada por discursos
como o de Demóstenes Torres. Ou pela falta de políticas afirmativas.
Antes
de tratar todos com igualdade, como pedem desesperadoramente alguns, é
preciso tratar os desiguais de forma desigual através de ações
afirmativas. Só assim, poderemos sonhar – um dia – em que negros e
brancos, homens e mulheres, não se sintam como se tivessem vindo com a
roupa errada para a festa.