Lenha na fogueira
No Brasil, apenas 8% dos homicídios são solucionados e 63% da
população não confia na polícia. A Pública foi ouvir quem convive no
dia-a-dia e quem estuda o fracasso das nossas forças policiais
Aos 30 anos, Humberto Ramos é o que chamam de linha de frente da
polícia civil paulista. Escrivão, trabalha no plantão policial com a
arma na cintura no 49º Distrito, em São Mateus, o mais movimentado de
São Paulo, e quiçá do Brasil. Desde janeiro até maio foram registradas
nove mil ocorrências. Ali Humberto passa até mesmo as suas férias.
“Vim para ajudar, tem muito serviço”, explicou. Naquele dia também
estava ali para dar uma entrevista sobre o livro que está lançando, “Dê
um novo poder ao policial”, o primeiro escrito por um policial
brasileiro sobre neurolinguística, neurociências e as técnicas de Reid,
processo desenvolvido pelo policial de Nova York, John Reid, que
integra entrevista e interrogatório. É aí que o escrivão quer colocar o
dedo. “A polícia não precisa usar a força desnecessária, basta usar o
poder de persuasão. O verdadeiro poder policial está na habilidade de
conquistar e influenciar pessoas”, diz ele, que garante querer ser
escritor e palestrante “para melhorar a polícia brasileira”.
Não é uma tarefa fácil. Segundo diagnóstico da Estratégia Nacional de
Justiça e Segurança Pública (Enasp), traçada pelo Ministério Público,
Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Justiça com o objetivo de
reduzir a impunidade dos crimes de homicídio no país, o treinamento
técnico da polícia deve ser prioridade para melhorar a segurança
pública. A Enasp realizou um mutirão nacional com as policiais estaduais
para levantar os inqúeritos de homicídios não solucionados até 2007 –
135 mil – e conseguiu denunciar suspeitos em 19% dos casos. A
porcentagem parece pequena, mas é grande quando comparada à média nacional de elucidação de homicídios: de 5 a 8%. Os mais de 90% restantes ficam sem solução.
São 50 mil homicídios por ano no país, o maior do mundo em termos
absolutos, segundo relatório da ONU de 2011, que colocou o Brasil no
3º lugar em violência na América Latina, e 26o do mundo. Desses, apenas 4
mil por ano têm seus autores presos, segundo estimativa de Julio
Jacobo Waiselfisz, coordenador da pesquisa Mapas da Violência.
CSI brasileiro
A fragilidade das investigações policiais é regra do norte ao sul do
país. Em Alagoas, o grupo de trabalho do Enasp descobriu o sumiço de mil
dos 4.180 inquéritos instaurados entre 1990 e 2007 para apurar
homicídios dolosos. No Rio Grande do Sul, o Relatório de Controle
Externo da Atividade Policial, encaminhado à cúpula da Secretaria de
Segurança Pública, constatou que delitos com “repercussão na imprensa”
têm preferência nas delegacias da grande Porto Alegre, enquanto os
demais permanecem parados. Em 2008, apenas 16% dos inquéritos
tornavam-se processos judiciais em Porto Alegre. O restante era
devolvido ou arquivado pelo Ministério Público por insuficiência de
provas técnicas para denunciar os réus.
E por que o Ministério Público devolve e arquiva tantos inquéritos?
Porque em muitos casos as investigações são insuficientes ou
incompletas, diz a promotora de Justiça da área criminal e professora
doutora em Ciências Penais, Ana Luiza Almeida Ferro. Ela explica que o
Ministério Público só pode apresentar denúncia para o juiz – abrindo
assim um processo judicial – se houver suporte “testemunhal, pericial ou
documental” que mostre que houve um crime e indícios que apontam para o
suspeito. Senão, o processo será rejeitado pelo juiz.
Em sua rotina de promotora, Ana Luiza raramente encontra inquéritos
consistentes: “Enfrento esta realidade cotidianamente. Em expressiva
parte dos casos, o inquérito chega incompleto, deficiente, sem provas
suficientes para a formulação da denúncia e a fundamentação de uma
futura condenação. Então o Ministério Público não tem outra escolha que
não se manifestar pela devolução do inquérito à polícia para o
cumprimento dessas necessárias diligências complementares. O Judiciário,
de sua parte, nada pode fazer sem a denúncia. Se os inquéritos fossem
mais fundamentados, menos incompletos, haveria maior rapidez”, diz.
O vai-e-vem de inquéritos entre Ministério Público e polícia acaba
facilitando a vida dos autores dos assassinatos. “A prescrição lhes
favorece. Fica mais difícil localizar testemunhas. Vestígios se apagam.
Provas esmaecem. Por outro lado, denunciar sem dispor de provas
suficientes para tal e, sobretudo, para alicerçar uma futura condenação
também interessa aos criminosos e àqueles que torcem pela impunidade”,
reconhece Ana Luiza, para quem “a Justiça tardia e, pior, a impunidade
são negações da democracia.”
O sociólogo Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da
Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, acredita que a divisão de funções entre Ministério Público e
polícia civil entre investigação (feita pela polícia civil), e a
denúncia (a cargo do MP, que é o titular da ação penal) é o principal
problema: “É o chamado pingue-pongue, o vai e vem entre o delegado e o
MP, um modo de o inquérito não ficar em lugar nenhum até que, passados
meses e, em vários casos anos, ele venha a ser arquivado”.
Segundo a Constituição, a investigação também é atribuição do MP.
“Apenas no Brasil encontramos uma solução ambivalente na persecução
criminal”, diz Misse. Em qualquer outro país, diz, a fase destinada a
apurar se houve crime e a identificar o autor pode ser exclusiva da
polícia ou do Ministério Público. Ou seja, o Ministério Público pode
investigar e apresentar a denúncia e não apenas encampar o inquérito
policial ou devolver ao delegado.
A promotora Ana Luiza acredita que reforçar a capacidade de
investigação da polícia também ajudaria a reduzir o “pingue-pongue” que
favorece a impunidade: “Uma deficiência crônica, por exemplo, está na
parte pericial, nos casos em que tal prova é exigida. E há casos
complexos, particularmente aqueles que envolvem crimes do colarinho
branco e de lavagem de dinheiro, além de atividades do crime
organizado”, pondera.
“Não podemos viver numa tragédia e achar normal”
Apesar da ineficiência do sistema, os gastos do país em segurança
atingem R$ 60 bilhões por ano. “Em relação ao PIB gastamos mais que a
França e estamos no mesmo patamar da Alemanha”, compara Renato Sérgio de
Lima, secretário-executivo do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública.“Só que o serviço é muito pior”, constata.
Renato, como a maioria dos especialistas ouvidos pela Pública, acredita
que é preciso pensar em um novo modelo de segurança pública no Brasil.
Porque este que está aí “é caro e ineficiente, com altas taxas de
violência”, diz. O maior problema, diz, é que “a polícia que temos não
está voltada para o cidadão, está preparada para defender os interesses
do Estado”.
“Precisamos saber o que a gente quer”, afirma o secretário do Fórum. “O
governo, o Estado tem que ter responsabilidade, não é só punir quem
está na ponta. Tem que punir quem autoriza, quem delega poderes. Não
podemos viver numa tragédia e achar normal, precisamos de política
pública”.
O relatório da Enasp enfatiza a necessidade de contratar mais peritos e
obter mais equipamentos para os órgãos periciais de algumas regiões do
país – a distribuição de recursos e expertising é bastante desigual,
já que os Estados têm capacidade financeira e prioridades políticas
diferentes. Mas dá maior ênfase à necessidade de treinamento dos que
participam da elucidação dos crimes, de estimular a meritocracia na
carreira policial e estabelecer o controle externo das investigações nos
crimes de homicídio.
Uma conclusão parecida à que chegou em seu dia-a-dia na polícia o
escrivão Humberto, que investiu as economias dos nove anos de carreira
em cursos de treinamento. Nos últimos dez anos, ele diz, os
investimentos que viu na polícia civil paulista ficaram concentrados em
armamentos e tecnologias digitais. “Nesse mesmo tempo quase nada foi
aplicado em desenvolvimento humano”, lamenta.
63% da população não confia na polícia
A curva ascendente da violência acompanha a da impunidade. Entre 1992 e 2009, a taxa de homicídios cresceu 41% de acordo com pesquisa
divulgada pelo IBGE em junho. Os números de 2009, os mais recentes,
mostram uma média de 27,1 mortes para cada 100 mil habitantes. De acordo
com parâmetros internacionais, a violência em um país pode ser
considerada endêmica a partir de 10 mortes para cada 100 mil.
Números que contribuem para a má imagem da polícia junto à população. Pesquisa
da Fundação Getúlio Vargas realizada no primeiro trimestre de 2012
apontou que 63% da população de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro,
Bahia, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Distrito Federal não confia na
polícia. Conforme o levantamento, coordenado pela professora Luciana
Gross Cunha, a população com renda inferior a dois salários mínimos (R$
1.244) é a que mais desconfia dos policiais: 77% disseram-se “muito
insatisfeitos” ou “um pouco insatisfeitos” com os policiais. “São as
pessoas que sofrem mais discriminação e preconceito da polícia”, diz
ela.
São as mais frequentes vítimas da violência policial que fez o Conselho
de Direitos Humanos da ONU pedir a extinção da PM e a Anistia
Internacional denunciar a tortura como “método” de interrogatório nas
delegacias paulistas e as execuções extrajudiciais praticadas por forças
policiais.
“Precisamos urgentemente discutir que tipo de polícia a gente tem”, diz a professora.
As conclusões do relatório mais recente
da Anistia Internacional convergem para a percepção da violência
policial entre os mais pobres. A prática da tortura, afirma a entidade
só joga mais lenha na fogueira; é usada nas ruas, em delegacias,
presídios, centros de recolhimento de adolescentes “como meio de obter
confissões, subjugar, humilhar e controlar pessoas sob detenção, ou com
frequência cada vez maior, extorquir dinheiro ou servir aos interesses
criminosos de policiais”.
Como agravante, relata a Anistia, “a grande maioria das vítimas é
composta de suspeitos criminais de baixa renda, com grau de instrução
insuficiente, frequentemente de origem afro-brasileira ou indígena,
setores da sociedade cujos direitos sempre foram ignorados no Brasil”.
Já o Conselho de Direitos Humanos da ONU pediu ao Brasil
maiores esforços para “combater a atividade dos esquadrões da morte”
(compostos por policiais civis e militares) e que trabalhe para
“suprimir a Polícia Militar, acusada de numerosas execuções
extrajudiciais”.
O relatório também pediu que o Brasil garanta que “todos os crimes
cometidos por agentes da ordem sejam investigados de maneira
independente”.
Seguir essa recomendação significa mexer em outro ponto crítico do
sistema de segurança pública: o corporativismo que substitui a
rivalidade entre as polícias e departamentos policiais quando o réu é
agente do sistema de segurança. No estado de São Paulo, por exemplo, a
Secretaria de Segurança Pública determinou em abril de 2011 que mortes
em confrontos com PMs fossem investigadas pelo departamento de
homicídios da Polícia Civil. De lá para cá, nenhum policial foi punido.
Dos 500 casos analisados, todos na região metropolitana, 40% foram
esclarecidos e em nenhum deles constatou-se desvio de conduta, ou seja,
em todos os casos os PMs teriam tido motivo para atirar.
O que fez o relatório da Enasp incluir como medida a ser adotada
imediatamente a “definição de parâmetros específicos para o controle
externo nas investigações dos crimes de homicídio”.
Armas que vão e voltam
A corrupção também está entre os ingredientes que enfraquecem a
segurança pública e multiplicam os homicídios. Armas de criminosos
recolhidas pela polícia voltam a circular e o comércio ilegal de armas
raramente é investigado, menos ainda punido. Policiais fazem bicos,
aceitam propinas e vendem proteção para comerciantes, o que dá origem à
formação de esquadrões da morte e à circulação ilegal de armas, como
aponta o relatório da Anistia. Mais de 80% das armas apreendidas em
situação ilegal é de fabricação brasileira, ou seja, foram
comercializadas aqui.
“O debate da segurança pública é frequentemente contaminado por
considerações de ordem ideológica, impedindo a implementação de medidas
importantes nessa seara. Falta a sensibilidade de entender que deve
haver um equilíbrio entre o interesse da garantia dos direitos dos
cidadãos (e dos investigados) e o interesse da segurança pública”,
defende a promotora Ana Luiza.
Junte-se a isso o apelo à força policial, a ideia de que “bandido não
tem direitos humanos”, rotineiramente defendidos por uma parte da
sociedade, também são vistos como fatores que enfraquecem a segurança
pública de acordo com especialistas e estudiosos do tema.
Em março de 2012, confrontado com os indíces de homícidio haviam
aumentado 50% em comparação com o mês anterior, o coronel Josiel Freire,
subsecretário de operações da secretaria de segurança de Brasília –
cuja polícia é a mais bem paga do país –declarou à imprensa: “Quase 70%
das vítimas de homicídios estão envolvidas com crime e tráfico. O
transeunte mesmo não está sendo vítima”. É digno de nota que a
declaração não tenha causado escândalo – e nem mesmo muitas críticas.
Para o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, que há mais de uma década vem
fazendo mapas de violência no Brasil, a situação da violência chegou a
um ponto do que ele chama de pandemia. “É um problema estrutural, mais
difícil de cuidar. A violência está incorporada”.
“A identificação do brasileiro como ‘homem cordial’ não se sustenta mais”, lamenta ele.
No Pública
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