Neoconservadorismo religioso: fé, dinheiro e comunicação de massa
por Antonio Lassance*
03/10/2012
Há algo de novo por trás dos azarões
Os candidatos que surpreenderam por suas intenções de voto em algumas
cidades do país podem não ser apenas “azarões”. Talvez sejam a face mais
evidente de um fenômeno político que junta fé, dinheiro e comunicação
de massa.
Os casos mais gritantes têm sido, até o momento, Celso Russomano, em São
Paulo, e Ratinho Jr., em Curitiba. Mas eles não são os únicos. Ao
contrário, expressam uma fórmula que tem feito sucesso. Não é um
fenômeno que tende a tomar conta da política brasileira. Não representa
um setor social majoritário. Não se vincula a um rígido padrão de
classe. Mas se trata de uma maneira de se fazer política que tem ganhado
corpo paulatinamente.
Uma legião de candidatos a prefeito, vice-prefeito e vereador será
eleita fazendo uso dessa receita. Estarão alinhados aos que já têm
assento federal. Segundo o Departamento Intersindical de Assessoria
Parlamentar (DIAP, 2011), a bancada evangélica eleita em 2010 mais que
dobrou em relação à de 2006, passando de 36 integrantes para 73
parlamentares.
A fórmula garante sucesso pessoal, financeiro e político. É um meio de
vida que tem na política um de seus braços; na comunicação, sua voz; na
religião, sua plataforma.
Embora retrógrado em vários sentidos, o neoconservadorismo religioso é
um fenômeno de novo tipo. Por sua relação umbilical com a religião e a
comunicação de massa, não se equipara a qualquer espécie anterior de
populismo. O neoconservadorismo também é uma novidade em relação ao
velho conservadorismo elitista, golpista e liberal. Aquele
conservadorismo da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, de 1964, e
que fez da Teologia da Libertação seu principal inimigo, nos anos 1970 e
1980, colhe agora o fruto do que plantou: o maior retrocesso do
catolicismo em todos os tempos, seu afastamento entre os mais pobres,
sua dificuldade em modernizar-se.
Segundo os dados do Censo de 2010, os evangélicos foram o segmento
religioso que mais cresceu no Brasil nos últimos 10 anos. Saltaram de
15,4% da população para 22,2%. Passaram de 26,2 milhões para 42,3
milhões de brasileiros. Em 1980, esse percentual era de apenas 6,6%.
(IBGE, 2010)
Os católicos, que em 2010 ostentaram um poderoso número de 64,6% da
população, coincidentemente têm seu menor percentual no Rio de Janeiro
(45,8%), estado onde o conservadorismo ortodoxo e o combate à Teologia
da Libertação tinha sua organização mais consistente e sua liderança
mais expressiva, Dom Eugênio Sales, arcebismo do Rio por 30 anos.
Não é na chamada “nova” classe média que o segmento evangélico mais
cresce. É entre mais pobres. Mais de 60% dos pentecostais recebem até 1
salário mínimo. A segunda maior proporção está entre os sem religião
(59,2% deles são pobres). Os católicos têm apenas a terceira maior
proporção nessa faixa de renda (55,8% ).
O neoconservadorismo gosta de Estado, de políticas sociais, da promoção
da igualdade. Talvez por razões cristãs, mas também porque se beneficiam
dos tempos de bonança. Podem obter retribuição crescente dos fiéis que
se julgam recompensados por alcançarem uma graça (emprego, pagamento de
dívidas, aumento de salário, um tratamento médico).
Demagogos modernos
As características socioeconômicas ajudam a entender, mas são
insuficientes para explicar o fenômeno por completo. Elas precisam ser
vistas à luz da montagem de uma poderosa máquina política a serviço do
neoconservadorismo religioso. Os nomes lançados à disputa municipal não
foram escolhidos por sua posição na hierarquia religiosa. Segundo o
Tribunal Superior Eleitoral, apenas 765 candidatos se declararam
"sacerdote ou membro de ordem ou seita religiosa", sendo apenas 37 os
candidatos a prefeito (apenas 0,24% do total), 39 vice-prefeitos (0,26%)
e 689 (0,16%) os candidatos a vereador nessa condição, incluindo todas
as denominações religiosas. (TSE, 2012)
A relação dos candidatos com suas igrejas é certamente um senhor
reforço, na medida em que estão colados aos pastores que fazem sua
pregação eleitoral de forma ostensiva, no púlpito e com o dinheiro dos
fiéis, e a siglas partidárias patrocinadas por tais igrejas. Mas, para
que os candidatos sejam competitivos, precisam de algo mais. Esse algo
mais atende pelo nome de comunicação de massa.
Em um sistema eleitoral no qual as campanhas são muito curtas, o eleitor
é cego diante de muitos candidatos, e o comunicador reina. O maior
problema de um candidato é se tornar conhecido. O segundo é evitar ser
rejeitado (conhecido negativamente).
O comunicador tem um horário eleitoral gratuito todo santo dia à sua
disposição, conquistado, é bem verdade, por dotes pessoais. Ele deve ter
talento na arte de atrair a atenção, de mobilizar paixões e ódios, de
mexer com o sentimento das pessoas. Quando isso envolve pregação
religiosa, a fidelidade tem tudo para ser bastante forte. O suficiente
para aguentar três meses de campanha sob fogo cruzado.
O neoconservadorismo religioso pode ser uma novidade também por colher
os frutos de um processo plantado desde 1997, quando se abriu espaço
para uma nova leva de emissoras de rádio e TV e à renovação de antigas
concessões. Em muitos casos, elas mudaram de dono e foram parar nas mãos
de organizações religiosas, a ponto de se ter formado uma grande rede
nacional de emissoras diretamente associada a uma dessas igrejas. Além
disso, se tornou prática costumeira o aluguel de tempo de TV para
programas de pregação religiosa. Algo aconteceu naquela época que
transformou os evangélicos em uma força de grande peso midiático, antes
mesmo de se tornarem uma força política e social de maior expressão.
Max Weber, no seu famoso texto em que distinguia os políticos que viviam
para a política daqueles que viviam da política, chamava a atenção para
o fato de que o jornalista havia se tornado o grande demagogo moderno.
Tomava a expressão em seu sentido clássico, ou seja, referindo-se a quem
tinha o talento especial de ser um mestre na arte de convencer o
público a tomar partido, a se decidir a favor ou contra uma opção.
A velha mídia tem feito um convite diário à demagogia por meio da
esculhambação do entendimento sobre a política. A disseminação da
descrença nas instituições faz grassar o moralismo rasteiro e a fé
ritualística que disputa o lugar do debate sobre propostas. O
neoconservadorismo agradece. Mesmo seus representantes mais toscos têm
muito mais a dizer do que os candidatos engomados e da predileção
indiscreta da mídia mais tradicional.
*Antonio Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo
não refletem necessariamente opiniões do Instituto.
*Opensadordaaldeia