Fundação Maurício Grabois
Tido
como "auge da filosofia ocidental", defensor da idéia de que "a
escravidão é necessária à cultura", Nietzsche transforma-se em guru da
pós-modernidade, considerado como libertário até por setores
progressistas
A trajetória de Friedrich Nietzsche, hoje transformado em guru da pós-modernidade,
foi paradoxal. Seu pensamento, elaborado nas décadas finais do século
passado, foi descoberto pela intelectualidade européia no final de 1880,
inspirou os movimentos direitistas e elitistas do começo do século e
influenciou os ideólogos do nazismo e dos autoritarismos militares
europeus.
Após a Segunda Guerra Mundial, porém, a compreensão – e
aceitação – de seu pensamento foi mudando, principalmente entre os
intelectuais que formaram as fileiras existencialistas, até
transformá-lo numa caricatura de teórico libertário, influenciando
alguns setores progressistas. Essa recuperação de Nietzsche, por
exemplo, está presente na biografia do filósofo escrita pelo professor
norte-americano da universidade de Princeton, W. A. Kaufmann, publicada
em 1950, que apresenta Nietzsche – convenientemente "desnazificado", diz
Lukacs – como o auge da filosofia ocidental desde Descartes. Duas
décadas mais tarde, a rebelião estudantil de maio de 1968, na França e
em outros países europeus, foi seguida de uma ampliação da reabilitação
do pensador alemão, feita por intelectuais intimamente ligados àquele
movimento. Giles Deleuze, Michael Foucault, François Lyotard foram
profundamente influenciados por Nietzsche e basearam nele a crítica que
fazem não só da ciência e do pensamento contemporâneo, mas
principalmente fundamentaram aí seu rompimento com o socialismo e com
qualquer proposta de atuação social, coletiva, para superar os problemas
de nosso tempo. Mais recentemente, o norte-americano Marshall Bermann
colocou Nietzsche lado a lado com Marx como pai da modernidade. Ele
fazia eco a uma tradição do pensamento crítico ocidental que começou
muito antes, e que tende a despolitizar Nietzsche e transformá-lo
meramente num analista da cultura e da vida individual. O italiano
Gianni Vattimo, por sua vez, apresentou-o como um profeta da
pós-modernidade.
Ao lado de autores como esses – que pelo menos,
procuraram respostas articuladas para a problemática de seu tempo – a
moda acadêmica e intelectual teve outros suportes, fugazes e de menor
envergadura. O movimento que ficou conhecido promocionalmente como "nova
filosofia", de meados dos anos 1970, na França, foi fortemente
inspirado por Nietzsche, particularmente em sua virulência contra o
socialismo, o conhecimento científico e a defesa intransigente do
indivíduo. A "nova filosofia" fez parte do início da onda neoliberal de
nossos dias, onda que dá espaço a escritores radicalmente niilistas (e
pessimistas) como o francês Clement Rosset e o franco-romeno Emil
Cioran, recentemente traduzidos no Brasil. Não vamos aqui fazer a
crítica – necessária e urgente – da obra desses autores.
Nosso
tema é mais limitado: dada a apresentação caricatural de Nietzsche como
um "libertário", e a influência que essa forma de pensar adquiriu em
setores progressistas – e mesmo socialistas! –, nosso tema é o início da
discussão de algumas de suas teses principais.
“Um autor político, nutrido nos preconceitos das rodas da alta aristocracia”.
Filho
de família de pastores luteranos (por parte de pai e de mãe), Nietzsche
viveu na periferia da pequena nobreza provincial prussiana. O pai
orgulhava-se de ter sido preceptor de princesas da Casa de
Sachsen-Altenburg, e fora investido como pastor pelo próprio imperador
Frederico Guilherme IV, da Prússia. Desde cedo, o menino Nietzsche
aprendeu a orgulhar-se de uma lenda familiar segundo a qual descenderiam
de um obscuro conde Nietzki, polonês que, na época da Reforma, aderiu
ao protestantismo e foi forçado a fugir para a Alemanha.
Nutrido
nos preconceitos aristocráticos das rodas que sua família frequentava,
cedo ele aprendeu a detestar os "franceses revolucionários" e a "alta
cultura". Era ainda estudante ginasial quando, numa visita a Berlim,
hospedou-se na casa de um velho burguês cujas lamúrias resumiam bem a
atmosfera onde o pensador se formou. "A Prússia – dizia – está perdida;
os liberais e os judeus estragaram tudo com seus mexericos (...)
destruíram a tradição, a confiança, o pensamento".
O período em
que Nietzsche viveu foi marcado por grandes transformações políticas,
econômicas, sociais e culturais na Europa. A revolução de 1848 – e, mais
tarde, a Comuna de Paris, em 1871 – foram acontecimentos onde um novo
ator político, a classe operária, defendia seu próprio programa,
autônomo, de organização da sociedade. Antes do furacão, no final de
1847 e em janeiro de 1848, o aristocrata francês Alexis de Tocqueville
advertia contra "essas singulares doutrinas, com nomes diversos, mas que
têm, todas, por principal caráter, a negação do direito de
propriedade". Creio que dormimos no momento que estamos sobre um vulcão,
escreveu.
A revolução européia daquele ano aproximou, como nunca
desde a revolução de 1789, a burguesia e a aristocracia. Em seguida à
insurreição parisiense de junho de 1848 e seu afogamento em sangue,
escreveu Marx, uniram-se "tanto na Inglaterra como na Europa Continental
todas as facções das classes dominantes, proprietários de terra e
capitalistas, especuladores da Bolsa, lojistas, protecionistas e livre
cambistas, governo e oposição, padres e livre-pensadores, jovens
prostitutas e velhas freiras, sob a bandeira comum da salvação da
propriedade, da religião, da sociedade".
Pensador
fundamentalmente político, foi nesse quadro que Nietzsche definiu o
programa que guiaria sua vida, a formulação de uma nova ideologia para a
elite burguesa e aristocrática européia. Crítico reacionário do
capitalismo concorrencial (que, naquela época, começava a ser suplantado
pelo capitalismo monopolista que se tornaria hegemônico na virada do
século XIX para o século XX), Nietzsche propôs-se a defender a velha
tradição – que ele chamava de "alta cultura" –, a atacar os inimigos
ligados à plebe (os democratas e os socialistas) e à fundação de uma
nova filosofia para justificar os privilégios da elite.
Seu
elitismo traduziu-se num texto escrito por volta de 1870, quando –
professor em Basiléia, Suíça – descobrira, encantado, que a escravidão
fora essencial para o desenvolvimento da cultura grega.
“A cultura é sempre privilégio e trabalho, por sua vez, é tido como vergonha”.
"É
possível que esse conhecimento nos encha de espanto – diz esse texto
quase programa –, mas esse espanto é o efeito quase necessário de todo
conhecimento mais profundo. Pois a natureza continua sendo alguma coisa
de espantoso, mesmo quando se empenha em criar suas mais belas formas.
Ela é feita de tal modo que a cultura, em sua marcha triunfal, beneficia
apenas uma minoria íntima de mortais privilegiados, sendo necessário,
se quisermos alcançar um desenvolvimento pleno da arte, que as massas
permaneçam escravas". Os modernos, diz ele, falam da "dignidade do
homem" e da "dignidade do trabalho". "A linguagem dos gregos é outra.
Declararam com simplicidade que o trabalho é uma vergonha, pois é
impossível que um homem ocupado no esforço de ganhar a vida se torne um
artista. Confessemos, portanto, essa verdade que parece cruel: a
escravidão é necessária à cultura".
Verdadeiro programa que seria
desenvolvido ao longo de sua vida, este texto define alguns dos traços
principais do pensamento de Nietzsche: seu elitismo, a cultura como
privilégio da elite ociosa, a
definição do trabalho como "uma vergonha", a ridicularização dos direitos do homem.
Seu
elitismo não ficou apenas na defesa passiva dos privilégios da elite,
em seu individualismo aristocrático, mas significou também a
recomendação de medidas para a defesa da "cultura" e das "tradições"
ameaçadas pela democracia e pelo socialismo. Assim, em 1870, ele dizia:
"a guerra é necessária ao Estado como o escravo à sociedade". Em 1872:
"O mundo imperativo do belo e do sublime" é o "único meio de salvação
contra o socialismo". Em 1879: "Uma cultura superior só pode surgir onde
haja duas castas distintas no seio da sociedade: a dos trabalhadores e a
dos ociosos, capacitados para desfrutar verdadeiramente de seu ócio".
Em 1887, desencantado da cultura como anteparo ao socialismo, pedia
defesas mais fortes: "A manutenção do estado militar é o último meio que
nos resta, seja para a manutenção das grandes tradições, seja para a
instituição do tipo superior de homem, do tipo-forte". E acrescentava:
"Será necessário um novo terrorismo". Em 1888, dizia: "a compaixão
dificulta, em grande medida, a lei da evolução, que é a lei da seleção",
e fazia a apologia do delinquente como modelo de homem forte: o
criminoso é "o tipo de homem forte situado em condições desfavoráveis,
um homem forte convertido num enfermo", pois "suas virtudes foram
proscritas pela sociedade".
Essa reiterada e crua defesa dos
privilégios da elite sinalizou, também, numa mudança na ética burguesa.
Anunciando-se como promotor da "transmutação de todos os valores",
crítico ferrenho da moral – que definia como "parte de tirania contra a
'natureza'" e "uma longa coação" –, Nietzsche fundamentou sua ética numa
recusa radical do trabalho, considerado como atividade degradante,
destinada a manter a glória dos homens superiores. Naquele
texto-programa escrito por volta de 1870, ele dizia: "a miséria dos
homens que vivem no esforço deve tornar-se mais rigorosa ainda, para que
um número mínimo de homens olímpicos possa criar um mundo de arte". Um
mundo que não tenha lugar para o povo, para o homem comum, que deve –
deliberadamente – ser mantido à margem da cultura: "quem deseja ter
escravos – escreveu em 1888 – é um néscio se os educa para senhores".
Trata-se
de uma mutação essencial na ideologia burguesa. Desde Calvino e a
Reforma o trabalho – encarado de forma ampla, como atividade prática,
comercial, industrial ou artesanal – fora posto no centro do modo
burguês de explicar o mundo e definir os méritos que distinguem os
homens. Adam Smith, no final do século XVIII, deu a definição clássica
dessa noção, apresentando o trabalho como fundamento do valor. E, numa
visão progressista para a época, pregou que o egoísmo, ao levar todos os
homens a procurarem seu benefício próprio, era o formador da felicidade
coletiva. Idéia à qual Hegel deu expressão filosófica, dizendo que só
na aparência os homens trabalham (egoisticamente) apenas em seu próprio
benefício, mas, na verdade, eles trabalham para o bem comum. Essa
ideologia correspondia à etapa concorrencial do capitalismo, onde a
produção era valorizada em contraposição ao consumo, em que a poupança,
os hábitos morigerados e austeros eram vistos como virtudes. Na época do
capitalismo monopolista – que se anuncia no tempo de Nietzsche –, essa
ética já não era suficiente. Era preciso mais, a justificação dos ganhos
fora da produção, da especulação na bolsa, da pilhagem imperialista que
começava a sobrepor-se à pilhagem colonial.
Assim, a visão do
trabalho como atividade degradante está, em Nietzsche, intimamente
ligada à apologia do capitalismo monopolista e do imperialismo,
traduzida no elogio do criminoso, visto antes, do animal predador e na
valorização da agressão imperialista. Em A Genealogia da Moral (1887)
ele escreveu: "Se o animal predador se sentisse atormentado por
remorsos, há muito tempo teria decaído e degenerado". E, no livro
póstumo A Vontade de Potência deixou a opinião de que "uma sociedade que
definitivamente, e por instinto, renuncia à guerra e à conquista, está
em decadência: se acha madura para a democracia".
“Uma nova relação entre o ser e o pensar, entre o real e a imagem”.
Democracia
que, para Nietzsche, era uma ameaça tão grande como o socialismo, a
ponto de ele criticar Bismarck, o chanceler de ferro da Alemanha
unificada, inimigo feroz dos socialistas e do movimento operário e chefe
de um ofensivo militarismo de conquista que levou a Alemanha (sob
hegemonia dos prussianos) a invadir quase todos os seus vizinhos, numa
preparação para a disputa inter-imperialista que – décadas mais tarde –
envolveria o mundo em duas trágicas guerras mundiais. Nietzsche
criticava Bismarck por não considerá-lo suficientemente reacionário e
imperialista, e por fazer aquilo que ele considerava "concessões
democráticas". Em 1885, por exemplo, dizia que a Alemanha estava
estragada pelas complacências democráticas, honrada apenas por uma casta
que permaneceu apegada a seus deveres: a casta dos oficiais prussianos,
sobre a qual perguntava: "Digna de salvar a Europa, ela será capaz
disso?" Salvar a Europa, evidentemente, de ameaça democrática e
socialista, tarefa em que – esperava Nietzsche –, os prussianos teriam
apoio e ajuda da Rússia czarista.
Em Para além do bem e do mal
(1885), Nietzsche escreveu que o Socialismo era uma ameaça real, e que a
consciência desse fato impunha "também uma nova tarefa" aos que
pensaram nessa possibilidade. E, em seguida, deu uma noção do que seria
essa tarefa: “onde estão os bárbaros do século XX? – perguntou. É
evidente que não poderão aparecer e impor-se senão depois de enormes
crises socialistas". Nietzsche propôs-se fundar uma filosofia nova, para
o século vindouro, e proclamou-se um militante dessa tarefa. Essa
filosofia baseou-se na reinterpretação do problema fundamental da
filosofia, a relação entre o ser e o pensar, entre o mundo real,
objetivo, e a imagem teórica que fazemos desse mundo em nosso cérebro.
Toda
a filosofia ocidental, desde Sócrates – pensava ele – era a crônica de
uma decadência. Os gregos pré-socráticos – principalmente Heráclito –
haviam, dizia ele, alcançado o cume do pensamento, em sua compreensão
intuitiva, artística, não conceitual, do mundo e do homem. Com Sócrates
começa a queda: sua filosofia conceitual, baseada no exame racional das
proposições, introduzia uma perturbação na antiga harmonia, perturbação
que tomou forma com Platão e sua definição do mundo objetivo como cópia
de um mundo primordial, das idéias. A separação entre ser e pensar entre
essência e aparência, que então teve início – separação fundamental
para o desenvolvimento da atividade científica e para o conhecimento
objetivo do mundo – é, para Nietzsche, o principal traço dessa queda.
Queda que, depois, acentuou-se com o cristianismo e a definição de todos
os homens como iguais perante a Deus (um ressentimento de escravos
invejosos do poder do senhor) e aprofundou-se, séculos mais tarde, com a
Revolução Francesa de 1789, para ele vitória da mediocridade e da moral
de escravos, que acabou com a hierarquia antiga e vulgarizou a idéia
dos direitos do homem, da igualdade e da democracia. Foi ela,
principalmente, que deu as bases para a maioria dos males
contemporâneos, e para o maior deles, o socialismo.
“Realidade objetiva não existe, apenas o véu de maia da ilusão pela ignorância”.
Assim,
a refundação da filosofia proposta por Nietzsche partia de uma
recuperação do caráter mágico-místico da aurora do pensamento ocidental.
Inspirado em Heráclito, Nietzsche baseou sua filosofia num perpétuo
movimento, num vir-a-ser eterno, onde tudo muda constantemente e onde
toda permanência é uma ilusão dos sentido. Da tradição indiana,
absorvida diretamente através de algumas leituras de textos antigos e de
uma biografia de Buda, e indiretamente da influência de Schopenhauer,
Nietzsche formulou a tese de que há uma vontade que age na natureza, que
chamou de vontade de potência, base de sua concepção idealista, que
explica – diz ele, em Para além do bem e do mal – "toda a nossa vida de
impulsos como a conformação e ramificação de uma forma fundamental de
vontade – ou seja, da vontade de potência" e que leva a "determinar toda
força eficiente univocamente como vontade de potência. O mundo visto de
dentro, o mundo determinado e designado por seu caráter 'inteligível' –
seria justamente 'vontade de potência', e nada além disso".
A
concepção do conhecimento como uma ilusão necessária para a vida decorre
desta fundamentação subjetivista da compreensão nietzscheniana do
mundo, um eco da visão indiana do mundo; do conhecimento como o véu de
maia (para os indianos, a realidade objetiva não existe – ela não passa
de uma ilusão, o véu de maia, criação mágica de um mundo de
multiplicidade superposta à realidade singular não dual, pelo poder da
ignorância, ensina o Dicionário das Religiões, de John R. Hinnells.
Maia cria a ilusão de um universo diferenciado e esconde a unidade divina atrás das aparências).
Nietzsche
intuiu agudamente os problemas que a filosofia – e a teoria do
conhecimento – enfrenta em seu tempo. O dualismo espírito-matéria,
pensamento-mundo objetivo, aparência e essência, levava o pensamento
filosófico a verdadeiros becos sem saída. A antiga concepção da verdade
como "adequação da coisa e da inteligência" (definição dada pelos
escolásticos da Idade Média com base em Aristóteles) foi duramente
questionada, no Ocidente, desde Descartes. Meus sentidos não podem me
dar a certeza dessa adequação, pensava Descartes, pois eles podem me
enganar; e, assim, só podemos ter certeza daquilo que podemos controlar e
conhecer com segurança, isto é, nosso próprio pensamento. Estava
fundada, assim, a metafísica moderna, que opôs radicalmente o pensamento
e o mundo objetivo e fundou as bases da ciência moderna, ao exigir
concepções claras do pensamento e da razão para dar uma segurança mínima
à exploração objetiva do mundo material, existente fora de nossa
consciência. A formulação mais desenvolvida dessa concepção de verdade
foi dada pelo alemão Immanuel Kant, cuja teoria do conhecimento teria
influência decisiva no pensamento burguês dos dois últimos séculos. Kant
resolveu o problema da contradição entre conhecimento e mundo objetivo
declarando que o sujeito que conhece e o objeto investigado são
irredutíveis, isto é, o sujeito conhece apenas a aparência do objeto
estudado, conhece apenas aquilo que seus sentidos conseguem captar – o
objeto, a "coisa em si", seria, por definição, inacessível,
incompreensível, inapreensível pela atividade do sujeito. Assim, a
verdade para Kant, é o "acordo do conhecimento com o seu sujeito" e o
critério consiste na conformidade "com as leis gerais do intelecto" uma
vez que tudo aquilo que contradiz essas leis é falso pois, nesse caso, o
intelecto "contrastaria com suas próprias leis, isto é, consigo mesmo".
Em outras palavras, uma vez que o conhecimento da "coisa em si" é
impossível para o intelecto, nosso conhecimento deve limitar-se à uma
decisão racional, meramente intelectual, pois são iguais às
possibilidades de a "coisa em si" existir ou não, e não podemos ter
certeza de nenhuma delas. Hegel superou o radical dualismo kantiano
afirmando a unidade fundamental do mundo como desenvolvimento da idéia
que se torna auto-consciente, onde a unidade que é moldada pela enorme
multiplicidade das relações que fazem a intermediação entre a essência e
a aparência, entre a "coisa em si" e o conhecimento que temos dela.
Nietzsche,
sem o brilho e o alcance universal do pensamento de Hegel, tentou
resolver o problema de um golpe, à sua maneira intuitiva e aparentemente
radical, negando qualquer oposição entre a essência e a aparência, e
afirmando também a unidade fundamental do mundo. Só que, ao contrário de
Hegel, Nietzsche enfatizou o lado irracional da solução kantiana, e
refugiou-se no subjetivismo que nega a existência da "coisa em si", isto
é, do mundo material, objetivo, afirmando-o como mera projeção de nossa
vontade, de nosso pensamento.
Em sua doutrina, Nietzsche dá
passos de gigante para trás não só em relação a Hegel, mas também a
Kant. Ele dissolve o dualismo kantiano sujeito-objeto enfatizando o
sujeito, a atividade mental, enfatiza o subjetivismo e nega radicalmente
a possibilidade de conhecimento objetivo (e, consequentemente, reduz a
ciência a uma ficção inútil e nociva).
“O fundamento da verdade para Nietzsche é a utilidade que ela tem para a vida”.
"A
coisa em si é digna de uma homérica gargalhada: ela parecia tanto, e
mesmo tudo, e, propriamente, é vazia, ou seja, vazia de significação",
escreveu ele. Nada mais existe além de "nosso mundo de apetites e
paixões". "O que é uma palavra? A figuração de um estímulo nervoso em
sons. Mas concluir do estímulo nervoso uma causa fora de nós já é um
resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como
poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na gênese da
linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas
designações, como poderíamos, no entanto, dizer: a pedra é dura, como se
para nós esse 'dura' fosse conhecido ainda de outro modo e não somente
como estimulação inteiramente subjetiva". O conhecimento, assim, fica
reduzido a "metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às
entidades de origem".
A novidade inaugurada por Nietzsche, no
âmbito do idealismo subjetivo, foi a definição da verdade como
utilidade: a verdade é uma ficção útil para a vida, pensava ele. "Todo
mecanismo de conhecimento – escreveu em A vontade da potência – é um
aparato de abstração e simplificação, não encaminhado a conhecer, mas a
adquirir poder sobre as coisas". Assim, bebendo um pouco de Kant e outro
de Ernest Mach, definiu o conhecimento como esquematização do caos,
comandado por categorias a priori, que já estariam na mente antes de
qualquer experiência prática. O sistema de categorias cognitivas é
encarado, assim, como um sistema de índices a partir do qual o
pensamento pensa, uma 'tábua' "posta à disposição do pensamento",
explica o filósofo Gilvan Fogel.
Essa tese nietzscheniana
fundamenta modernamente diversas correntes que compreendem o
conhecimento como interpretação. O conhecimento é, em sua origem,
metáfora; cada palavra, ao nomear os objetos, já é uma interpretação;
assim, o conhecimento é um jogo de espelhos sem fim, onde cada
interpretação leva à outra, sem nenhuma contrapartida objetiva e
confiável. Foucault – um dos mais influentes nietzschianos modernos –
diz que "se a interpretação não pode nunca acabar, isto quer
simplesmente significar que não há nada a interpretar, porque no fundo
tudo é interpretação, cada símbolo é, em si mesmo, não a coisa que se
oferece à interpretação, mas a interpretação de outros símbolos".
Esta
tese, versão moderna do idealismo subjetivo, opõe-se radicalmente à
tese marxista do conhecimento como reflexo, e baseia-se naquela
superação subjetiva do dualismo filosófico tradicional. O fundamento da
verdade, para Nietzsche, é a utilidade para a vida; assim, há em sua
doutrina uma "identificação fundamental de ser e valor", diz Eugene
Fink. Valor entendido aqui como aquilo que o sujeito considera útil. Se o
conhecimento é uma "mentira do intelecto (que) se baseia na
inapreensibilidade conceitual da vida" (como diz Eugene Fink), então o
critério de verdade deixa necessariamente de ser a correspondência da
imagem teórica com o objeto real, e passa a ser meramente aquilo que o
sujeito valoriza, independentemente do grau de arbitrariedade
especulativa dessa valorização.
A unicidade universal, encarada
deste ponto de vista meramente subjetivo, dilui também toda diferença
entre essência a aparência. Essa diferença se baseou, no pensamento
ocidental, naquela oposição entre sujeito e objeto, e sua interpretação
idealista levou ao pensamento kantiano da irredutibilidade da coisa em
si (a essência, o objeto real que está localizado no mundo, fora da
consciência), e colocou como limite, para as teorias burguesas do
conhecimento, as especulações sobre a aparência (ou fenômeno, segundo o
linguajar dos filósofos).
O subjetivismo nietzscheniano dispensa
esta distinção. Tudo é uno, diz Nietzsche, e o uno é o pensamento: se a
essência não existe, se a "coisa em si é digna de uma homérica
gargalhada", o problema das relações entre a essência e a aparência é um
falso problema, pois tudo se reduz à mera aparência, à metáfora criada
pelo cérebro pensante. Hegel, mais uma vez, enfrentou este problema
antes de Nietzsche, e deu a ele uma solução idealista fértil, que
fomentou o desenvolvimento do pensamento e influenciou o surgimento do
materialismo dialético. Hegel investigou as múltiplas conexões entre
essência e aparência, compreendendo a unidade existente entre elas como
estabelecida através do desenvolvimento como desenvolvimento do
espírito, que se torna auto-consciente através da inteligência do homem.
Se o cérebro pensante, o sujeito, e a realidade investigada, o objeto,
fazem parte de um único movimento do espírito, que se desdobra em
múltiplos aspectos, a atividade cognitiva é, na verdade – pensava Hegel
–, a investigação do espírito sobre seu próprio desenvolvimento, o
conhecimento seria parte do movimento do espírito no sentido de superar a
alienação através de uma síntese superior cujo fundamento é a unidade
básica que há no mundo.
“A ciência precisa saber decifrar relações entre aparência e essência”.
Marx
inverteu a dialética hegeliana, para deixar exposto "o cerne racional
dentro de seu conteúdo", como escreveu no posfácio à segunda edição de O
Capital. Assim, a forma mistificada da dialética hegeliana forneceu o
método para a fundação da nova concepção de mundo, o materialismo
dialético, onde o conceito de totalidade, que engloba as relações entre o
universal, o particular e o singular, baseia-se na compreensão
rigorosamente materialista das relações entre a essência e a aparência.
"Toda ciência seria supérflua se houvesse coincidência imediata entre a
aparência e a essência das coisas", escreveu Marx em O Capital. Assim, o
esforço de investigação materialista do mundo deve decifrar as relações
entre aparência e essência e provar a coincidência entre ambas. "O
concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo
unidade da diversidade", escreveu Marx.
A valorização da
percepção imediata leva Nietzsche a uma noção mistificada das relações
entre o universal e o particular, visível em sua compreensão da formação
dos conceitos. Uma palavra torna-se um conceito quando deve servir para
designar "um sem número de casos mais ou menos semelhantes, isto é,
tomados rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente
desiguais", diz ele. O conceito iguala o desigual, pensa, e dá o exemplo
do conceito de folha, formado pelo abandono das diferenças individuais,
formando uma representação ideal de folha, como "se na natureza além
das folhas houvesse algo, que fosse 'folha', eventualmente uma folha
primordial, segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas,
recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis, de tal
modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e fidedigno como cópia
fiel da forma primordial". "Assim, diz, "a desconsideração do individual
e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto
a natureza não conhece formas nem conceitos, portanto, também não
conhece espécies, mas somente um X, para nós inacessível e indefinível".
Em
outro lugar, a mesma concepção das relações entre o individual e o
universal aparece na condenação das formas coletivas e sociais que as
relações entre os homens assumem: o indivíduo se oculta, diz ele, sob "a
generalidade do conceito 'homem' ou sob a sociedade, ou se adapta a
príncipes, classes, partidos, opiniões do tempo ou do ambiente".
A
concepção do conceito como eliminação das diferenças individuais – uma
idéia formalmente correta – nada mais é do que a transferência para a
natureza do individualismo radical que anima o pensamento de Nietzsche. É
insuportável, para ele, a submissão da parte ao todo, a compreensão do
indivíduo – do singular – como expressão do universal mediatizada pelo
particular. Uma garrafa, por exemplo, só pode ser apreendida pelo nosso
cérebro como expressão conjunta dessas três categorias: ela é singular, é
esta garrafa que tenho à minha frente, única entre todas as que se
assemelham a ela; ela é também um tipo específico de garrafa, uma
garrafa de refrigerante que, por sua vez, é a expressão particular do
universal garrafa, nome dado a uma espécie de recipiente de vidro para
líquidos. Assim, a compreensão do singular (de nosso exemplo de garrafa)
só pode ocorrer se ela estiver relacionada com o universal, tendo o
particular como mediador. Como diz Engels, na Dialética da Natureza, "o
movimento do singular ao universal e vice-versa é sempre mediatizado
pelo particular, ele é um membro intermediário real, tanto na realidade
objetiva, quanto no pensamento que a reflete de um modo
aproximativamente adequado".
A ausência da consciência da
dialética entre estas três categorias exige a introdução do pensamento
mágico, divino, para a compreensão do mundo, dos processos materiais e
as relações entre os homens. Se a investigação não se dedica à
descoberta das mediações entre as categorias, a especulação precisa –
forçosamente – introduzir uma explicação mística para que o conhecimento
possa ter alguma consistência, por mais alienado que seja. Em O Capital
Marx mostra como a universalidade não é jamais um ponto de chegada
autônomo do pensamento, como sugerem idealistas como Nietzsche. O
universal é elaborado pelo pensamento através da experiência concreta,
histórica, real, no trato com a imensa riqueza material do mundo
objetivo, daí o caráter necessariamente aproximativo da ciência. Para o
pensamento, escreveu Marx em outro lugar, o concreto é "um processo de
síntese, um resultado, e não um ponto de partida".
"As abstrações
mais gerais – diz Marx – só nascem, em resumo, com o desenvolvimento
concreto mais rico, em que um caráter aparece como comum a muitos, como
comum a todos".
Ao contrário dos idealistas – e do beco sem saída
em que se metem – o conceito forma-se a partir da experiência real,
concreta, cotidiana; o universal é a expressão abstrata de inúmeros
singulares. O universal – diz José Arthur Gianotti – deve sempre residir
num suporte material qualquer; "o contrário é platonismo", é idealismo.
Exige o pensamento mágico, a mistificação especulativa – na qual
Nietzsche é perito. Marx ilustra esse beco sem saída filosófico com um
exemplo quase banal. A representação abstrata de "fruta" surge do
processo mental que resume as características comuns às maçãs, peras,
bananas etc. Os idealistas, porém, concebem a idéia de fruta como
substância, e as maçãs, bananas, etc, como modos dessa substância, um
procedimento especulativo que anula a realidade sensível e cria uma
dificuldade inventada e insuperável. "É tão fácil – diz Marx – produzir a
partir de frutas reais a idéia abstrata de fruta, 'a fruta', quanto é
difícil produzir, partindo da idéia abstrata 'fruta', frutas reais. É,
inclusive, impossível se chegar a uma abstração do contrário da
abstração sem renunciar à abstração".
“Engels mostrou a falsidade da oposição entre o homem e a sociedade em que vive”.
Hábil
polemista, herdeiro das virtudes sofísticas dos pré-socráticos – que
embaralhavam os interlocutores com palavras, sem preocuparem-se com as
relações delas com o mundo real, objetivo – Nietzsche leva esta
mistificação à análise da consciência e da linguagem. O conceito não
existe, foi o animal homem – cuja arrogância deu origem ao conhecimento –
que o desenvolveu. A linguagem levou à formação da consciência (outra
concepção idealista: que desconsidera o papel do trabalho no
desenvolvimento da inteligência, da consciência e da linguagem, e que,
assim, não diz de onde a linguagem vem, como se ela preexistisse ao
homem, ao animal cujas habilidades o tornariam suporte material da
linguagem!) devido à necessidade de comunicação. A consciência, assim, é
"propriamente apenas uma rede de ligação entre homem e homem – apenas
como tal ela se desenvolveu e teve de desenvolver: o homem ermitão e o
animal de rapina não teriam precisado dela", diz em A Gaia Ciência.
"A
consciência não faz parte propriamente da existência individual do
homem". Consequentemente, "cada um de nós, com a melhor boa vontade de
entender a si mesmo tão individualmente quanto possível, de 'conhecer a
si mesmo', sempre trará à consciência apenas o não-individual em si", e
nosso pensamento mesmo "é constantemente como que ampliado e retraduzido
para a perspectiva do rebanho". Isto é, para o indivíduo a consciência é
desnecessária – e mesmo nociva: ela imprime na mente individual as
limitações em que a sociedade e a cultura se baseiam.
A
fragilidade dessa idéia, seu caráter ideológico – baseado na
desconsideração do trabalho como elemento de desenvolvimento das
potencialidades do homem, e na incompreensão do homem como um animal
radicalmente social, do indivíduo como ser social, que só pode se
desenvolver coletivamente através da cooperação com outros indivíduos de
sua espécie – foi demonstrada poucas décadas mais tarde por psicólogos
como o russo Lev Vygotsky e o suíço Jean Piaget. Vygotsky,
principalmente, desenvolvendo antigas sugestões do materialismo
dialético (registradas por Engels no texto "O papel do trabalho na
transformação do macaco em homem"), mostrou a falsidade da oposição
entre o homem e a sociedade, e que o desenvolvimento individual só pode
ocorrer através do contato com outros homens, que esse desenvolvimento é
biológico apenas em parte, mas é cultural, social, naquilo que é
decisivo, naquilo que não só distingue o homem dos outros animais, mas
também dá suporte ao próprio desenvolvimento daquilo que há de animal no
homem, seu corpo, o atendimento de suas necessidades fisiológicas,
aquilo que garante a sobrevivência física do indivíduo. Em lugar da
oposição, há na verdade uma íntima e necessária interação entre o
indivíduo e o coletivo, em cada homem particular.
“Uma história sem movimento onde todo impulso do homem é absurdo e inútil”.
Outro
aspecto do pensamento de Nietzsche que merece consideração – pela sua
influência moderna – é sua concepção da história. "Enquanto há leis na
história, as leis não valem nada e a história não vale nada", escreveu
na segunda das Considerações Extemporâneas. Uma contradição a mais no
pensamento de Nietzsche: se a realidade é um fluxo permanente e
imutável, a história – entendida como compreensão do processo – teria
que ter algum lugar nesse pensamento. Mas sua introdução significaria o
reconhecimento das leis da história mesmo que elas fossem mistificadas
e, principalmente, o reconhecimento da mutalidade inerente ao processo.
Mas, em Nietzsche, a realidade é um fluxo permanente e imutável.
A
solução desse enigma surgiu um dia, como uma iluminação, com a
"revelação" do eterno retorno, formável assim (segundo Jorge Luis
Borges): "o número de todos os átomos que compõem o mundo é, embora
descomunal, finito, e só capaz, como tal, de um número finito (embora
também descomunal) de permutações. Num tempo infinito, o número das
permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo tem de se
repetir. Novamente nascerás de um ventre, novamente crescerá teu
esqueleto, novamente chegará esta mesma página às tuas mãos iguais,
novamente percorrerás todas as horas até à de tua morte incrível". No
Zaratustra, Nietzsche apresentou essa idéia dizendo: "esta lenta aranha,
arrastando-se à luz da lua, e esta mesma luz da lua, e tu e eu
cochichando no porão, cochichando coisas eternas, já não coincidimos no
passado? E não voltaremos a percorrer o longo caminho, esse longo e
terrível caminho, não voltaremos a percorrê-lo eternamente?".
O
eco da concepção circular da história, dos indianos, está presente aqui –
mas revestido de uma aparente materialidade e cientificidade, que fala
de átomos, universo, tempo e espaço. Nietzsche pensou em ir a Viena ou
Paris estudar as bases matemáticas dessa tese, mas desistiu pois seria
vão – os matemáticos não endossam essa falsificação idealista baseada na
combinação de elementos díspares, um tempo infinito e um universo
finito. Apesar disso, essa tese teve uma carreira promissora na
intelectualidade burguesa. Ela decifra o enigma da história sem mudança:
concebendo a história como um jogo onde os átomos fariam o papel de
inumeráveis dados lançados ao acaso e igualmente se combinando ao acaso,
o tempo fica reduzido a uma sucessão de "agoras" e o instante é
glorificado.
No turbilhão financeiro da etapa imperialista do
capitalismo, onde o jogo, a capacidade de perceber o momento exato de
ganhar, toma a aparência de um acontecimento fugaz, desconectado do
passado e do futuro, uma teoria como a do eterno retorno adquire ares de
fiel descrição da realidade.
Mais que isso, trata-se de uma
história sem movimento, sem processo imutável. "Se tudo volta, então,
evidentemente, todo impulso do homem é inútil”, diz Nietzsche. “Toda
ação, todo atrevimento, é absurdo e vão, pois tudo já está decidido".
Este jogo não prevê espaço para a atuação do homem na história e, ao
mesmo tempo, transforma o instante num espelho onde o passado e futuro
se igualam: "outorga ao passado – diz Fink – o caráter aberto de
possibilidade do futuro, e este adquire a estabilidade do passado" – uma
lenda útil para a burguesia na época em que qualquer aceleração da roda
da história parece uma ameaça à estabilidade do mundo burguês. Essa
lenda fundamenta, em nossos dias, concepções idealistas da história cuja
polêmica com o marxismo está centrada justamente na idéia de um
processo histórico sem mudança, cujas etapas sucedem-se
arqueologicamente (como pensa Foucault) sem relações de causa e
consequência, movida – diz Clóvis Moura – pela "contingência (o acaso,
as idéias motoras ou mesmo os impulsos irracionais de personalidades ou
grupos)", contingência encarada como conjunto de elementos que dão
conteúdo ao processo histórico. Nesse caso, a história se realizaria
através de explosões imprevisíveis. Passaria a ser um conglomerado
imprevisível de fatos atomizados, desligados uns dos outros, de vez que
cada um esgotaria os seus efeitos e ressonâncias em si mesmo e não no
seu encadeamento diacrônico. E a história desapareceria como ciência.
Tornar-se-ia mito ou passatempo acadêmico.
Se o pensamento de
Nietzsche não inova em relação a questões fundamentais do conhecimento,
se ele recua em relação mesmo a teóricos burgueses como Kant e Hegel,
qual o segredo do enorme prestígio que ele adquiriu em nosso tempo em
setores progressistas?
É natural que ele adquirisse grande
influência entre os intelectuais ligados à burguesia, seus porta-vozes e
apologistas. Mas entre militantes do conhecimento e do pensamento
ligados ao movimento democrático – e mesmo à luta pelo socialismo – a
ascendência dessa filosofia só pode ser entendida se se compreender a
dinâmica dessa intelectualidade, a natureza de seus vínculos sociais
(progressistas ou não), o papel que ela se auto-atribui e a avaliação
que ela faz da necessidade do pensamento crítico, e da própria natureza
desse pensamento.
Em Os últimos intelectuais o escritor
norte-americano Russell Jacoby mostrou a profunda mudança na atividade
intelectual provocada pelo desenvolvimento do capitalismo, com a
profissionalização e academização dos trabalhadores do pensamento, entre
os escritores e produtores intelectuais dos EUA. Voltados para sua
própria atividade, escrevem apenas a seus pares, desprezam a cultura
pública e consolidam-se como uma casta de escrivas privilegiados, com
altos salários e prestígio social.
Nesse quadro, não é difícil
entender o prestígio de Nietzsche – prestígio baseado numa interpretação
que subestima o reacionarismo do filósofo alemão e enfatiza a crítica
da cultura e a análise do eu presentes em sua obra. Para Georg Lukács,
"o encargo social" que a filosofia de Nietzsche cumpre, consiste em
"salvar", "resgatar" este tipo de intelectual burguês, "em apontar-lhe
um caminho que torne desnecessária a ruptura e até todo conflito sério
com a burguesia; caminho em que possa seguir abrigando, e inclusive se
acentue nele, o agradável sentimento de ser um rebelde ao contrapor-se,
tentadoramente, à revolução social 'superficial' e 'puramente externa'
outra revolução 'mais profunda', de caráter 'cosmobiológico'. Uma
'revolução", além disso, que deixe em pé, íntegros, os privilégios da
burguesia e que defende, sobretudo, aproximadamente, a situação de
privilégio da intelectualidade burguesa, imperialista e parasitária, uma
'revolução' dirigida contra as massas e que dá, ao medo que os
privilegiados econômicos e culturais têm de perder seus privilégios, uma
expressão patético-agressiva em que se disfarça seu temor e seu
egoísmo".
José Carlos Ruy é jornalista.
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— com Carlos Maia.