Afinal, maconha faz bem ou mal?
Caminhos depois da reclassificação do CBD
Gerivaldo Neiva *
Depois da decisão da Anvisa de reclassificar o Canabidiol (CBD), substância extraída da planta conhecida como Cannabis Sativa (Maconha), da categoria deproibida para controlada e enquadrada na lista C1 da Portaria 344/98, que regula define os controles e proibições de substâncias no país, muitas pessoas devem estar a se perguntar: - Afinal, maconha faz bem ou mal?
Na verdade, existe uma planta, obra da natureza, da qual se pode extrair, como milhares de outras plantas sobre o planeta, diversas substâncias com as mais diversas características. Então, assim como a Cannabis, também as plantas que derivam o ópio ou a cocaína, são apenas plantas e não existe um código natural definido por Deus ou Adão para que sejam rotuladas como plantas boas ou plantas más. Como se sabe, aliás, outras plantas produzem substâncias venenosas para a vida humana e que pode levar, inclusive, ao óbito. Mesmo assim, continuam sendo apenas plantas encontradas na natureza.
Entretanto, decisões de organismos internacionais definiram, baseados em interesses econômicos ou geopolíticos, quais as plantas que seriam lícitas ou ilícitas. Neste jogo, aquelas que destilam ou fermentam álcool ou que servem para a fabricação de cigarros de tabaco ficaram de um lado e as que servem para serem mascadas pelos povos andinos ou fumadas por negros, latinos, pobres ou periféricos ficaram de outro lado. Umas seriam legais e outras ilegais. Então, o código da legalidade ou ilegalidade não está nas plantas, mas na rotulação que outros interesses lhes dão.
No caso brasileiro, o artigo 1º da Lei 11.343/06, parágrafo único, utilizando-se o que a dogmática penal define como Lei Penal em Branco, laconicamente, define drogas como sendo “substâncias ou produtos que podem causar dependência” e transfere para o Poder Executivo a responsabilidade de relacionar em listas quais seriam essas substâncias. Mais adiante, o artigo 2º amplia a proibição para o“plantio, cultura, colheita e exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser extraídas ou produzida drogas”. Aqui, por exemplo, entraria e Coca e a Cannabis.
Por fim, para concluir o “armengue” legal, como se estivesse “lavando as mãos”, o Legislativo transferiu toda a responsabilidade que lhe era própria e constitucional para o Serviço de Vigilância Sanitária, órgão de segundo escalão do Ministério da Saúde, contaminando de clara inconstitucionalidade esta norma por ferir os princípios da separação dos poderes e da reserva legal. Senão, vejamos: “Art. 66. Para fins do disposto no parágrafo único do art. 1o desta Lei, até que seja atualizada a terminologia da lista mencionada no preceito, denominam-se drogas substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, da Portaria SVS/MS no 344, de 12 de maio de 1998”.
Na citada Portaria, a planta Cannabis integra a Lista E – Plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas, na companhia da Erytroxylum Coca e outras escolhidas (Claviceps Paspali, Datura Suaveolans, Lophophora Williamsii (Cacto Peyote) e Prestonia Amazonica (Haemadictyon Amazonicum)). Além da planta Cannabis Sativum, a Portaria 344/98 também elenca o THC (Tetraidrocanabinol) na Lista F2 - Substâncias Psicotrópicas. Assim, o cerco estaria fechado para a planta Cannabis, pois a presença dela em uma estufa ou canteiro doméstico constituiria o crime de “plantio ou colheita” e o uso ou distribuição de uma de suas substâncias, o THC, também constituiria crime por se tratar de substância psicotrópica.
Pois bem, a decisão da Anvisa de retirar o CBD da lista de substâncias proibidas para a lista de substâncias de uso controlado, não tem qualquer correspondência com o uso da maconha na forma de cigarro para alívio das dores do cotidiano ou para se pegar um táxi a beira da estação lunar. Uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Assim, uma coisa é a definição do CBD como remédio e outra coisa é o uso da maconha, na forma de cigarro, seja também para aliviar dores físicas ou para aliviar as dores da alma.
Neste sentido, apesar da decepção de alguns, a decisão da Anvisa foi exatamente o que se queria e que se esperava com relação ao CBD. Assim, para as famílias que enfrentavam forte burocracia para importar o medicamento e para aqueles que dependiam dessa decisão para produzir ou comercializar no Brasil, pode-se dizer que a campanha foi vitoriosa, apesar de se saber claramente que laboratórios que já dominam o processo de extração da substância vão continuar dominando o mercado e lucrando cada vez mais.
Noutro sentido, para os que lutam pela legalização de todas as drogas, como nós da LEAP (Law Enforcement Against Prohibition – Agentes da Lei contra a Proibição), a decisão da Anvisa com relação ao CBD não importa em avanço significativo na nossa causa, mas pode ter alguns reflexos positivos. O principal, quer me parecer, seria quebrar o estigma de que maconha é uma erva maldita e relacionada à criminalidade e violência urbana, mas que pode, também, derivar remédios para diversos males que afligem uma gama enorme de pessoas. Pode parecer pouco, mas não é. Ora, deixar de ser maldita para possivelmente e limitadamente “santa” a partir de uma decisão, sem dúvidas, é um grande passo.
Bom, e agora, quais as consequências e caminhos a seguir?
Penso que um dos momentos mais importantes nesta luta pela legalização foi quando as primeiras pessoas resolveram tornar público sua condição de usuários e depois, na companhia de outros usuários, resolveram sair em marcha pelas principais cidades deste país, promovendo a “Marcha da Maconha” e enfrentado a repressão policial e decisões judiciais. Ao lado disso, sem dúvidas, tantos coletivos e entidades que passaram a discutir e defender a ideia da legalização. Para não ser injusto, desde a Comissão Global (FHC), passando por decisões judiciais e atos de desobediência, até os Agentes da Lei Contra a Proibição (Leap-Brasil), são protagonistas desta luta.
Para continuar esta luta, é preciso ter em mente que o tabu pode ter arrefecido em relação à maconha, mas ainda é muito forte. Nem se falar em relação ao crack, cocaína e outras drogas. Da mesma forma, é preciso ter em mente que a luta pela legalização para o uso recreativo não passa somente por uma decisão de tecnocratas e burocratas da Anvisa, nem pelo Judiciário, Executivo ou Legislativo, mas por todas essas instâncias e, principalmente, por uma ampla mobilização nacional de todas as entidades e coletivos que defendem a legalização.
Neste sentido, penso que o Judiciário pode ter um papel importante nesta questão. Primeiro, é preciso que o Ministro Gilmar Mendes retire de sua gaveta o Recurso Extraordinário (RE) 635659, da Defensoria Pública de São Paulo, em que se reconheceu a repercussão geral com relação à inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06. Segundo a Defensoria Pública, o dispositivo contraria o princípio da intimidade e vida privada, pois a conduta de portar drogas para uso próprio não implica lesividade, princípio básico do direito penal, uma vez que não causa lesão a bens jurídicos alheios. Além disso, a Defensoria Pública argumenta que “o porte de drogas para uso próprio não afronta a chamada ‘saúde pública’ (objeto jurídico do delito de tráfico de drogas), mas apenas, e quando muito, a saúde pessoal do próprio usuário”.
Esta decisão do STF também não causaria revoluções, nem significaria a legalização de todas as drogas, mas abriria precedente importantíssimo para outras instâncias do Poder Judiciário e, principalmente, livraria da cadeia milhares de jovens, apenas usuários, pobres, negros, periféricos e condenados como traficantes. Ora, sendo assim, basta que o STF diga, como tem que dizer, que o uso de qualquer substância psicoativa, seja considerada lícita ou ilícita, não é crime e que a conduta está adstrita à intimidade e liberdade pessoal. Só isso.
Por fim, penso que a reclassificação do CBD também pode causar certos desconfortos a julgadores deste país. Por exemplo, a constatação, agora oficial, de que da planta Cannabis pode derivar substância medicamentosa. Ora, como pode, para delírio das mentes positivistas e dogmáticas, uma planta, obra da natureza, ser maldita e benéfica ao mesmo tempo, dependendo apenas de combinações químicas para tal definição? Em consequência, como pode, portanto, o uso de tal planta ou suas substâncias, sem o auxílio de outros conhecimentos científicos, simplesmente ser considerado um ato criminoso e sujeito a prisão?
Sendo assim, o que significaria, portanto, o cultivo de uma planta de Cannabis no quintal ou na varanda quando se tem uma pessoa enferma em casa e que sente poderoso alívio quando toma o chá das folhas de Cannabis ou até mesmo quando inala a fumaça de suas flores queimando? A situação pode se transformar em um grande embaraço para a polícia e judiciário. Por exemplo, o morador pode alegar que não estava plantando a maconha para droga, mas para remédio e que o enfermo pode agravar seu estado de saúde pela falta daquele remédio e que pode cobrar responsabilidades dos prepostos que lhe levaram a planta e do Estado. Neste caso, o que deveria prevalecer: a dignidade da pessoa humana ou a Resolução da Anvisa?
Nesta compreensão, a decisão que se demanda do STF com relação a inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei 11.343/06, deve agora também contemplar a reclassificação do Canabidiol presente na planta Cannabis. Ora, um pé de maconha contém CBD, THC e dezenas de outras substâncias. Então, se o STF declarar inconstitucional a proibição do consumo da maconha para uso pessoal, o mesmo se pode dizer, como mais propriedade ainda, para o uso em qualquer estado, para um enfermo que alivia suas dores tomando um chá ou inalando.
Tudo isso, evidentemente, sem deixar de lado e nem esquecer que o Poder Executivo tem o papel fundamental de promover o debate com a sociedade sobre o problema das drogas e buscar uma alternativa à atual política de drogas, reconhecidamente falida e sem futuro. Da mesma forma, o Congresso Nacional tem papel importante e deve promover o mesmo debate com a sociedade. Sem esquecer jamais de observar o que se passa em outros países em termos de legislação inovadora e não retroceder jamais. Por fim, o Ministério Público e Defensorias Públicas precisam estudar e conhecer mais esta problemática e provocar decisões do Judiciário mais condizente com a Constituição da República. Esta luta não vingará, disso não tenho dúvidas, sem o fortalecimento dos coletivos, grupos de discussão e entidades que promovem o debate nacional sobre a legalização. As “Marchas da Maconha” precisam saírem às ruas com personalidades, artistas e políticos que defendem a causa.
Finalmente, os juízes desse país não precisam esperar a decisão do STF e podem, diante do caso concreto, utilizar-se do controle difuso da constitucionalidade para declarar a inconstitucionalidade da proibição e absolver o acusado que planta em seu quintal ou sua varanda um pé de Cannabis para seu consumo recreativo, bem como para utilizar como remédio para um enfermo, pois no jogo processual a obrigação da prova é de quem acusa (Ministério Público) e, na dúvida, a obrigação do Juiz é absolver.
* Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil)