Embora tardiamente, enfim, a Comissão da Verdade foi
instaurada para trazer à luz os crimes, as torturas, as violências e os
desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado de cunho
ditatorial. Deve fazer justiça às vítimas que sobreviveram e aos
parentes e amigos dos desaparecidos. Importa enfatizar a natureza
diferente da violência praticada pelo Estado de terror e aquela dos que
resistiram, mesmo com armas na mão. A do Estado é perpetrada em
contradição à função do Estado como Estado. Só ele tem o uso legítimo da
violência (só a ele cabe prender, julgar e punir). Mas é seu dever
proteger a vida daqueles que estão sob sua guarda. Se não o faz,
seviciando, torturando e até assassinando, comete um crime e se
transforma num Estado de terror. Foi o que ocorreu no Brasil e em vários
países da América Latina. Aqui importa honrar a dignidade da Presidenta
Dilma Rousseff que foi torturada durante uma semana e hoje, sem rancor e
mágoa, é comandante em chefe das Forças Armadas que carregam pesada
memória por aquilo que pela força impuseram ao país.
1.O contexto maior da violência do Estado
O objeto da Comissão da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos
desaparecimentos. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se
reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais e os casos
derivarem numa casuística indesejada. Precisa-se analisar o contexto
maior que permite entender a lógica da violência estatal e explica a
sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro a perversidade
que foi a banalização da suspeita, das denúncias, das espionagens e da
criação de um ambiente de medo generalizado e desencorajador.
Cabe, a meu ver, à Comissão da Verdade, proceder a um trabalho
complementar: depois de ter levantado os dados da violência de Estado e
de suas vítimas, cumpre fazer um juízo ético-político sobre todo o
período ditatorial que se prolongou por 21 anos (1964-1985). Por que tal
tarefa é imprescindível e de grande relevância moral? Porque vítimas
não são apenas os que sentiram em seus corpos a truculência dos agentes
do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação.
2.O “Golpe militar” como crime lesa-pátria
Importa dizer com todas as palavras que o assalto ao poder foi um
crime contra a constituição. Foi rasgar as leis e em seu lugar instaurar
o arbítrio. Foi uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado
para a partir deles montar uma ordem regida por atos institucionais,
pela tirania, pela repressão e pela violência.
Nada mais dilacerador das relações sociais que a ruptura do contrato
social. É este que permite a todos conviverem com um mínimo de segurança
e de paz. Quando este é anulado, no lugar do direito entra o arbítrio e
no lugar da segurança vigora o medo. Basta a suspeita de alguém ser
subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por
engano, mas suspeitos como opositores, como ocorreu com muitos inocentes
camponeses, para logo serem submetidos a sevícias e a sessões
intermináveis de torturas. Muitos não resistiram e sua morte equivale a
um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos
esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre
1964-1979. Esperamos que a Comissão da Verdade traga sua paixão e morte à
luz da verdade.
Retomando o tema: o que os militares cometeram foi um crime
lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um lado querendo
impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Esta
alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou uma ameaça real.
Na histeria da guerra-fria, todos os que queriam reformas na
perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes
maiorias operárias e camponesas – eram logo acusados de comunistas e e
de marxistas, mesmo que fossem bispos como Dom Helder Câmara. Contra
eles não cabia apenas a vigilância, mas a perseguição, a prisão, o
interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos
desesperador e os alegados “suicídios” que camuflavam o puro e simples
assassinato. Em nome de combater o perigo comunista, assumiram a lógica
comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se
incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o
ex-agente do Dops Cláudio Guerra.
3. O capitalismo selvagem como o grande inimigo
O grande perigo no Brasil e na América Latina sempre foi o
capitalismo selvagem que criou o maior fosso de desigualdades entre
ricos e pobres, sem paralelos no mundo até os dias atuais. Esse
capitalismo sugou a população brasileira por séculos. No dizer de
Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, “capou e recapou, sangrou
e ressangrou” as multidões de nossa população, sem direitos e sem
defesa.
O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha feito, fez
regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao
exílio nossas inteligências mais brilhantes como Paulo Freire, Josué de
Castro, Álvaro Oliveira Pinto, Darcy Ribeiro, Fernando Henrique Cardoso,
Betinho, Leandro Konder, Luiz Alberto Gómes de Souza, Luis Gonzaga de
Souza Lima só para citar alguns nomes entre dezenas de outros notáveis.
Que perigo poderiam representar jornalistas como Zuenir Ventura, Luis
Fernando Veríssimo, Ziraldo, Heitor Cony, Miriam Leitão e os cantores
Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, novamente para citar alguns
entre tantos, para serem detidos e interrogados?
4. Os danos causados à nação
A repressão e o medo abortaram o desenvolvimento de nossa
intelectualidade que começava, de forma promissora, a pensar o Brasil a
partir do Brasil. Abafaram lideranças políticas e condenaram a muitos,
sem princípios éticos e sem sentido de brasilidade, a serem seus
súcubos, recompensados com benesses desde estações de rádio, jornais e
canais de televisão.
Portanto, a nação inteira foi agredida e exposta à irrisão
internacional. Os que deram o golpe de Estado que, como logo veremos,
foi principalmente um golpe de classe, devem ser responsabilizados
moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro. Não foram
seus benfeitores mas aqueles que os mantiveram na ignorância, na
minoridade e numa atmosfera de permanente medo.
Permito-me referir um caso pessoal: quando publiquei meu livro Jesus Cristo Libertador
em princípios de 1972 tive que me esconder por uma semana. A palavra
“libertador” e “libertação” era oficialmente proibida. Por causa disso
já era procurado para me explicar. O advogado da Vozes, um ex-pracinha,
portanto um militar competente e moderado, teve muito trabalho para
convencer os órgãos de repressão de que havia um equívoco, pois se
tratava de teologia e não de política. Bastava ver os longos rodapés
quase todos citando literatura alemã (acabava de regressar de meus
estudos na Alemanha) para provar a minha inoperância subversiva. Escapei
de ser interrogado, embora a vigilância continuasse forte, a ponto de
sempre ter que viajar acompanhado e falando com o companheiro numa
língua estrangeira para despistar os seguidores. A estupidez oficial
era tanta que em Porto Alegre deu-se ordem de busca e prisão ao Senhor
Medellin. Mal sabia o oficial que nunca existiu um Senhor Medellin.
Tratava-se dos documentos de viés libertador da Conferência
Latino-Ameriana de Bispos realizada na cidade colombiana de Medelin em
1969.
5. Golpe de classe com apoio do golpe militar
Os militares abandonaram o poder e pelos acertos da Anistia Geral e
Irrestrita para ambos os lados (ainda sujeita à análise de sua validade
jurídica) garantiu sua impunidade e intangibilidade. Em nome deste
status resistem ao que foi aprovado pelo Parlamento e feito ação de
Estado e não de Governo: a instauração da Comissão da Verdade. E ainda,
como se tivessem algum poder que, na verdade é inexistente e vazio,
através de porta-vozes desafiam a Presidenta e outras autoridades civis.
A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha
internacional deles.
Os militares que deram o golpe se imaginam que foram eles os
principais protagonistas desta nada gloriosa história. Na sua indigência
analítica, mal suspeitam que foram, na verdade, usados por forças muito
maiores que as deles. René Armand Dreifuss escreveu sua tese de
doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes
1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos
originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.
A partir dos anos 60 do século passado se constituiu o complexo
IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
(IPES fundado em 29 de novembro de 1961), o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (IBAD), o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC) e mais
tarde, oficiais da Escola Superior de Guerra (ESG), formando uma rede
nacional composta por grandes empresários multinacionais, nacionais,
banqueiros, órgãos de imprensa, intelectuais e alguns militares, a
maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor
“eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu
posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o
Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos.
O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já
em “em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao
poder”(p.186).
A conspiração pois estava em marcha, há bastante tempo, levada
avante, não diretamente pelos militares mas pelo complexo IPES/IBAD/GLC,
articulados com a CIA e com a embaixada norte-americana que repassava
dinheiros e acompanhava o desenrolar de todos os fatos.
Aproveitando-se a confusão política criada ao redor do Presidente
João Goulart identificado como o portador do projeto comunista, este
grupo viu a ocasião apropriada para realizarem seu projeto. Chamaram os
militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi,
portanto, um golpe da classe dominante multinacional associada à
nacional, usando o poder militar. Conclui Dreifuss: “O ocorrido em 31 de
março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar;
o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG organizaram a tomada do poder do
aparelho de Estado”(p. 397). Especifica Dreifuss: ”O Estado de 1964 era
de fato um Estado classista e, acima de tudo, governado por um
bloco de poder”(p. 488). E especificamente afirma: ”A história do bloco
de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964,
quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o
regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus
objetivos”(p.489).
Para sustentar a ditadura por tantos anos criou-se uma forte
articulação de empresários, alguns dos quais financiavam a repressão, os
principais meios de comunicação, magistrados e intelectuais
anticomunistas declarados, entre outros. A Doutrina de Segurança
Nacional não era outra coisa que a Doutrina da Segurança do Capital.
Os militares inteligentes e nacionalista de hoje deveriam dar-se
conta de como foram usados não contra uma presumida causa – o combate ao
perigo comunista – mas a serviço do capital multinacional e nacional
que estabeleceu relações de alta exploração e de grande acumulação para
as elites oligárquicas, articuladas com o poder militar. O golpe não
serviu aos interesses nacionais globais, mas aos interesses corporativos
de grupos nacionais articulados com os internacionais sob a égide do
poder ditatorial dos militares.
A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se
trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpria sua missão de ser
Comissão da Verdade. Não apenas da Verdade de fatos individualizados de
violência de Estado mas da Verdade do fato maior da dominação
de uma classe poderosa, nacional associada à multinacional que usou o
poder discricionário dos militares para operar, tranquilamente, sua
acumulação privada à custa da maioria do povo brasileiro.
Os 21 anos de regime ditatorial nos privaram da liberdade, causaram
muitas mortes e desaparecimentos, um atraso político e um oneroso
padecimento a todos.
Leonardo Boff é teólogo, filósofo, membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra e escritor.
*Leonardo Boff