Por Leneide Duarte-Plon em 19/03/2013 na edição 738
Artigo adaptado de texto originalmente publicado em CartaCapital nº 739, de 8/3/2013
Escrever a biografia de Frei Tito de Alencar Lima é um desafio. Por se
tratar de um personagem complexo, atormentado, paradoxal. Por se tratar
de um religioso envolvido com um grupo revolucionário de luta armada
contra a ditadura, pela morte trágica que o destino lhe reservou, pela
importância que sua morte adquiriu transformando-o em ícone e “mártir”
da resistência à ditadura, pelo momento político que viveu.
Foi como um desafio que aceitei a sugestão de um amigo editor quando
lhe disse que havia conhecido num colóquio em Paris, no Centro Primo
Levi, o psiquiatra-psicanalista que tratou de Tito até sua morte. Ia
entrevistá-lo para a Carta Capital.
O Dr. Jean-Claude Rolland falara no colóquio “Langage et Violence – Les
effets des discours sur la subjectivité d’une époque” (Linguagem e
violência – Os efeitos dos discursos na subjetividade de uma época). Sua
conferência tinha por título, “Soigner, Témoigner” (Tratar,
testemunhar) e era um relato do caso Tito de Alencar.
“Tito vivia na certeza de que ia ser morto de um momento ao outro. Essa
impressão deve ter sido o que ele viveu durante todo o tempo em que
ficou preso e, principalmente, durante as sessões de tortura.
Interiormente, ele vivia como um condenado à morte e o recurso ao
suicídio tem como princípio a lógica: matar-se em vez de ser morto”, diz
o psicanalista.
Antes e depois do Dr. Rolland, outros psicanalistas, juristas e filósofos fizeram conferências. O filme Batismo de sangue, baseado no livro de Frei Betto, foi projetado e seu realizador, Helvécio Ratton, debateu com o público.
“Em vez de entrevista, por que você não faz a biografia de Frei Tito,
com ênfase nos últimos anos da vida dele?” Consciente do volume de
trabalho que o livro representaria, convidei a jornalista Clarisse
Meireles para escrevermos juntas e há mais de um ano estamos trabalhando
na biografia.
O livro tinha que ser uma investigação jornalística , uma reportagem
histórica, uma página que se abre a cada evento em torno da vida de
Tito. Tivemos que contextualizar todos os principais fatos históricos
nos quais Tito se viu envolvido direta ou indiretamente.
Veneração popular
A história de Tito abre um leque de acontecimentos que precisamos
reconstituir: o movimento estudantil de 1968, as grandes passeatas e a
importância do Congresso da UNE em Ibiúna, do qual Tito foi um
protagonista paradoxal : sua atuação foi nos bastidores. Foi ele quem
conseguiu o sítio através de relações de amizade. Pagou na tortura esse
envolvimento.
Paralelamente ao endurecimento do regime com o AI-5, a resistência
organizou a luta armada, os sequestros de embaixadores. O governo
respondeu com a tortura como política de Estado, com prisões ilegais e
“desaparecimentos”. Era preciso abrir uma janela sobre o sequestro do
embaixador americano (captura, como prefere o historiador e
ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis), que levou à queda dos frades e à
execução de Marighella.
Por outro lado, o engajamento dos frades na ALN só existiu porque houve o Concílio Vaticano II e o aggiornamento
promovido por João XXIII, seguido da renovação de parte da Igreja
brasileira. Ninguém podia dizer que a Igreja progressista era “o ópio do
povo”. “Para quem pretende mudar as estruturas da sociedade, Marx é
indispensável”, disse Frei Tito, já no exílio, em 1972, respondendo
afirmativamente a um jornalista italiano que perguntou se ele era
marxista.
Contar a vida de Tito impunha reconstituir um pouco da vida dos
exilados brasileiros em Santiago e em Paris. Na capital francesa, a
Frente Brasileira de Informação (FBI), fundada por Miguel Arraes e
Márcio Moreira Alves, divulgava na Europa as prisões ilegais, tortura e
desaparecimentos promovidos pelos agentes da ditadura. E muitos dos
ex-exilados entrevistados confirmaram, com fatos vividos, a estreita
colaboração entre os órgãos de informação brasileiros e a polícia
francesa.
Para reconstituir a vida de Tito no exílio francês, fomos primeiramente
ao encontro do psiquiatra e psicanalista que tratou dele até sua morte.
O doutor Rolland tem 74 anos e vive cercado de animais de estimação, a
30 minutos de Lyon. De sua casa, estendem-se a perder de vista os
vinhedos do Beaujolais. A casa fica dentro de uma grande propriedade
onde o médico cria 13 pavões, uma arara do Brasil e pássaros do Gabão
grandes e coloridos. Num grande viveiro, cerca de vinte aves exóticas,
de diversas origens, voam e misturam seus cantos aos sons dos pavões.
Quando tratou de Tito, o médico já habitava essa casa, onde sempre viveu
cercado de animais, um contato com a natureza vital para seu bem-estar.
Com o doutor Rolland, tomamos a estrada que leva a L’Arbresle para
entrevistar todos os dominicanos que o conheceram e que ainda estão no
convento. Depois, fomos ao Convento Saint-Jacques, em Paris, onde
entrevistamos seus antigos mestres e diretores de estudos teológicos. E
pudemos ouvir aquele que foi seu mais próximo amigo durante o último ano
de vida, o dominicano Xavier Plassat, que vive no Brasil desde os anos
80. Em 1974, Tito acompanhou Plassat em viagem à Bretanha e Plassat
acompanhou Tito a praticamente todas as consultas com o psiquiatra em
Lyon. Depois da morte de Tito, o francês organizou um precioso arquivo
dos escritos do brasileiro e escreveu Alors les pierres crieront (Então as pedras clamarão, Paris, Editions Cana, 1980).
No Brasil, ouvimos praticamente todos os dominicanos que conviveram com
Tito, em entrevistas feitas pessoalmente, por telefone ou e-mail. Além
dos que foram presos, entrevistamos o ex-frade Magno Vilela, que
conseguiu escapar ao cerco de Fleury e que Tito reencontrou em Paris no
convento Saint-Jacques, assim como frei Oswaldo Rezende, responsável
pela aproximação dos dominicanos com Marighella, que fora estudar na
Suíça, antes dos acontecimentos de novembro de 1969. A exceção foi um
dos frades, que não fala mais sobre sua militância.
Nas entrevistas e na pesquisa, descobrimos um homem que viveu os
últimos anos profundamente só e atormentado, mesmo tendo encontrado a
compreensão de confrades acolhedores, primeiramente no convento
Saint-Jacques, em Paris, e depois no Convento Sainte-Marie de la
Tourette, em L’Arbresle, perto de Lyon, um prédio moderno projetado pelo
arquiteto Le Corbusier.
Descobrimos também a tentativa de familiares em construir um
martirológio para, quem sabe, preparar uma beatificação. A pesquisa nos
fez descobrir uma veneração popular em torno de frei Tito, sobretudo no
Ceará. O trabalho nos levou a alguns fatos da vida do dominicano, que
acentuam sua humanidade, como seu afastamento do convento por um ano, em
Paris, ou seu entusiasmo amoroso por uma moça de origem japonesa, que
trabalhava na biblioteca do convento, em São Paulo.
A prisão e o exílio
No 4 de novembro de 1969, Frei Tito de Alencar Lima foi preso no
Convento das Perdizes, em São Paulo. Por um ano e dois meses, o frade
ficaria preso junto com outros dominicanos: Ivo Lesbaupin, Fernando
Brito, Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), João Antônio Caldas
Valença e Giorgio Callegari. Esses dois últimos foram os primeiros a
serem libertados.
Torturado sob a acusação de pertencer à Ação Libertadora Nacional-ALN,
organização de luta armada fundada por Carlos Marighella, Tito foi
destruído psiquicamente por seus carrascos.
Os frades dominicanos foram presos na chamada “Operação Batina Branca”,
montada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, criador do Esquadrão da
Morte. O delegado era o “puro produto da polícia paulista com sua
tradição de torturas e assassinatos” segundo o jornalista Elio Gaspari,
que escreveu: “Nunca na história brasileira um delinquente adquiriu sua
proeminência”.
O delegado Fleury encarnava na época o combate aos grupos armados que
resistiam à ditadura, os “terroristas”, como imprensa e aparelho
repressor os qualificavam.
Depois da prisão dos frades, Fleury começou imediatamente a bombardear a
imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram
ora “terroristas”, ora “Judas”. Todos os jornais aderiram à versão de
que os dominicanos haviam traído Marighella. As manchetes associavam as
palavras “frades” e “terror”. O Globo deu na primeira página a
fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui é o reduto
dos terroristas do Brasil”. E fez um editorial, “O beijo de Judas” que
não honra a história da nossa imprensa.
Começava a campanha da ditadura de desmoralização dos dominicanos,
responsabilizando-os pela queda do “inimigo público número 1”. O regime
tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”.
Comentando como a imprensa aderiu à diabolização dos frades orquestrada
pela ditadura, o ex-frade Roberto Romano observou: “Eles não agiram
como jornalistas. Agiram como carrascos e torturadores”.
O sequestro dos frades Ivo e Fernando, pela polícia no Rio, foi
decisivo para a queda de Marighella, fuzilado na Alameda Casa Branca no
dia 4 de novembro, dia em que frei Tito foi preso e torturado pelo
delegado Fleury. Três meses depois, ao voltar à tortura, dessa vez na
Operação Bandeirantes, Tito tentou o suicídio, sendo salvo in extremis depois de hospitalizado. “Ele fez isso para evitar que nós todos voltássemos à tortura”, diz frei Fernando.
O relato das torturas a que foi submetido pelo capitão Albernaz saiu
clandestinamente da prisão de São Paulo e foi publicado na revista
americana Look e na italiana L’Europeo. A Look
recebeu por esse texto o prêmio de reportagem do ano, em 1970,
atribuído pelo New York Overseas Press Club, associação da imprensa
estrangeira de Nova York.
O jornal Le Monde e a imprensa europeia noticiaram com
destaque a prisão, a tortura e o processo dos dominicanos. O papa Paulo
VI foi informado desde o início da prisão dos frades e seguiu de perto o
processo. Os dominicanos presos enviaram ao papa de presente uma cruz
de madeira feita por eles, com o nome de todos os frades presos.
Meses depois, Tito foi posto na lista dos presos trocados pelo terceiro
embaixador sequestrado, o suíço Giovanni Enrico Bücher, em janeiro de
1971. Banido do território nacional por decreto, embarcou para Santiago
juntamente com 69 presos políticos. Estava triste e abatido.
Encerrava-se ali o ciclo de capturas de diplomatas. A repressão
violenta desarticulou a luta armada prendendo e matando os principais
líderes e militantes. Em setembro de 1971, Lamarca foi fuzilado. A
ditadura já exterminara Marighella, em 1969, e Câmara Ferreira, o
Toledo, em 1970.
Os revolucionários que conseguiram escapar da prisão ou foram trocados
por embaixadores viviam no exílio. Os que tentaram uma volta na
clandestinidade foram executados.
Ultraje indelével
Tito optou pelo trabalho de informação: passou a dar testemunho do que
se passava nos cárceres brasileiros, através de entrevistas em várias
capitais. Em Santiago, deu entrevista aos cineastas americanos Haskell
Wexler e Saul Landau, que fizeram o documentário Brazil: a report on torture
(Brasil, um relato de tortura) com depoimentos de alguns dos 70
brasileiros libertados em troca do embaixador suíço. De passagem por
Roma, Tito não pôde falar a religiosos no Colégio Pio Brasileiro,
impedido pela hierarquia, que alegava sua fama de “terrorista”.
Mas deu entrevistas à imprensa em Roma, na Alemanha e na França. Na
capital francesa militou ao lado de brasileiros na denúncia das torturas
praticadas pela ditadura.
No Convento Sainte-Marie de La Tourette, perto de Lyon, para onde se
mudou em 1973, o dominicano esperava encontrar um porto seguro e retomar
os estudos de teologia. No meio da natureza, no alto de uma colina,
Tito encontrou o silêncio, mas não a tranquilidade. Em 10 de setembro de
1974, o corpo do frade foi visto por um camponês, pendendo de uma
árvore, numa área inóspita, às margens do rio Saône, perto de
Villefranche-sur-Saône. Tito foi enterrado no cemitério do convento. Seu
corpo voltou ao Brasil em 1983. Hoje, repousa em Fortaleza.
Ele preferiu a morte a conviver com a tortura e com seus torturadores
que o atormentavam onde quer que fosse. O filósofo Jean Améry, amigo de
Primo Levi, dizia que quem foi submetido à tortura “fica incapaz de
sentir-se em casa neste mundo. O ultraje do aniquilamento é indelével. A
confiança no mundo que a tortura apaga é irrecuperável”.
Segundo a Anistia Internacional, apesar de 147 países terem ratificado a
Convenção contra a tortura, adotada pela ONU em 1984, a organização
detectou casos específicos de tortura em 98 países, do total de 198
países existentes no planeta.
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris
*observatoriodaimprensa
*FlaviaLeitão