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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, outubro 27, 2013

Frei Tito, uma biografia


 

Por Leneide Duarte-Plon em 19/03/2013 na edição 738
Artigo adaptado de texto originalmente publicado em CartaCapital nº 739, de 8/3/2013
Escrever a biografia de Frei Tito de Alencar Lima é um desafio. Por se tratar de um personagem complexo, atormentado, paradoxal. Por se tratar de um religioso envolvido com um grupo revolucionário de luta armada contra a ditadura, pela morte trágica que o destino lhe reservou, pela importância que sua morte adquiriu transformando-o em ícone e “mártir” da resistência à ditadura, pelo momento político que viveu.
Foi como um desafio que aceitei a sugestão de um amigo editor quando lhe disse que havia conhecido num colóquio em Paris, no Centro Primo Levi, o psiquiatra-psicanalista que tratou de Tito até sua morte. Ia entrevistá-lo para a Carta Capital.
O Dr. Jean-Claude Rolland falara no colóquio “Langage et Violence – Les effets des discours sur la subjectivité d’une époque” (Linguagem e violência – Os efeitos dos discursos na subjetividade de uma época). Sua conferência tinha por título, “Soigner, Témoigner” (Tratar, testemunhar) e era um relato do caso Tito de Alencar.
“Tito vivia na certeza de que ia ser morto de um momento ao outro. Essa impressão deve ter sido o que ele viveu durante todo o tempo em que ficou preso e, principalmente, durante as sessões de tortura. Interiormente, ele vivia como um condenado à morte e o recurso ao suicídio tem como princípio a lógica: matar-se em vez de ser morto”, diz o psicanalista.
Antes e depois do Dr. Rolland, outros psicanalistas, juristas e filósofos fizeram conferências. O filme Batismo de sangue, baseado no livro de Frei Betto, foi projetado e seu realizador, Helvécio Ratton, debateu com o público.
“Em vez de entrevista, por que você não faz a biografia de Frei Tito, com ênfase nos últimos anos da vida dele?” Consciente do volume de trabalho que o livro representaria, convidei a jornalista Clarisse Meireles para escrevermos juntas e há mais de um ano estamos trabalhando na biografia.
O livro tinha que ser uma investigação jornalística , uma reportagem histórica, uma página que se abre a cada evento em torno da vida de Tito. Tivemos que contextualizar todos os principais fatos históricos nos quais Tito se viu envolvido direta ou indiretamente.
Veneração popular
A história de Tito abre um leque de acontecimentos que precisamos reconstituir: o movimento estudantil de 1968, as grandes passeatas e a importância do Congresso da UNE em Ibiúna, do qual Tito foi um protagonista paradoxal : sua atuação foi nos bastidores. Foi ele quem conseguiu o sítio através de relações de amizade. Pagou na tortura esse envolvimento.
Paralelamente ao endurecimento do regime com o AI-5, a resistência organizou a luta armada, os sequestros de embaixadores. O governo respondeu com a tortura como política de Estado, com prisões ilegais e “desaparecimentos”. Era preciso abrir uma janela sobre o sequestro do embaixador americano (captura, como prefere o historiador e ex-guerrilheiro Daniel Aarão Reis), que levou à queda dos frades e à execução de Marighella.
Por outro lado, o engajamento dos frades na ALN só existiu porque houve o Concílio Vaticano II e o aggiornamento promovido por João XXIII, seguido da renovação de parte da Igreja brasileira. Ninguém podia dizer que a Igreja progressista era “o ópio do povo”. “Para quem pretende mudar as estruturas da sociedade, Marx é indispensável”, disse Frei Tito, já no exílio, em 1972, respondendo afirmativamente a um jornalista italiano que perguntou se ele era marxista.
Contar a vida de Tito impunha reconstituir um pouco da vida dos exilados brasileiros em Santiago e em Paris. Na capital francesa, a Frente Brasileira de Informação (FBI), fundada por Miguel Arraes e Márcio Moreira Alves, divulgava na Europa as prisões ilegais, tortura e desaparecimentos promovidos pelos agentes da ditadura. E muitos dos ex-exilados entrevistados confirmaram, com fatos vividos, a estreita colaboração entre os órgãos de informação brasileiros e a polícia francesa.
Para reconstituir a vida de Tito no exílio francês, fomos primeiramente ao encontro do psiquiatra e psicanalista que tratou dele até sua morte. O doutor Rolland tem 74 anos e vive cercado de animais de estimação, a 30 minutos de Lyon. De sua casa, estendem-se a perder de vista os vinhedos do Beaujolais. A casa fica dentro de uma grande propriedade onde o médico cria 13 pavões, uma arara do Brasil e pássaros do Gabão grandes e coloridos. Num grande viveiro, cerca de vinte aves exóticas, de diversas origens, voam e misturam seus cantos aos sons dos pavões. Quando tratou de Tito, o médico já habitava essa casa, onde sempre viveu cercado de animais, um contato com a natureza vital para seu bem-estar.
Com o doutor Rolland, tomamos a estrada que leva a L’Arbresle para entrevistar todos os dominicanos que o conheceram e que ainda estão no convento. Depois, fomos ao Convento Saint-Jacques, em Paris, onde entrevistamos seus antigos mestres e diretores de estudos teológicos. E pudemos ouvir aquele que foi seu mais próximo amigo durante o último ano de vida, o dominicano Xavier Plassat, que vive no Brasil desde os anos 80. Em 1974, Tito acompanhou Plassat em viagem à Bretanha e Plassat acompanhou Tito a praticamente todas as consultas com o psiquiatra em Lyon. Depois da morte de Tito, o francês organizou um precioso arquivo dos escritos do brasileiro e escreveu Alors les pierres crieront (Então as pedras clamarão, Paris, Editions Cana, 1980).
No Brasil, ouvimos praticamente todos os dominicanos que conviveram com Tito, em entrevistas feitas pessoalmente, por telefone ou e-mail. Além dos que foram presos, entrevistamos o ex-frade Magno Vilela, que conseguiu escapar ao cerco de Fleury e que Tito reencontrou em Paris no convento Saint-Jacques, assim como frei Oswaldo Rezende, responsável pela aproximação dos dominicanos com Marighella, que fora estudar na Suíça, antes dos acontecimentos de novembro de 1969. A exceção foi um dos frades, que não fala mais sobre sua militância.
Nas entrevistas e na pesquisa, descobrimos um homem que viveu os últimos anos profundamente só e atormentado, mesmo tendo encontrado a compreensão de confrades acolhedores, primeiramente no convento Saint-Jacques, em Paris, e depois no Convento Sainte-Marie de la Tourette, em L’Arbresle, perto de Lyon, um prédio moderno projetado pelo arquiteto Le Corbusier.
Descobrimos também a tentativa de familiares em construir um martirológio para, quem sabe, preparar uma beatificação. A pesquisa nos fez descobrir uma veneração popular em torno de frei Tito, sobretudo no Ceará. O trabalho nos levou a alguns fatos da vida do dominicano, que acentuam sua humanidade, como seu afastamento do convento por um ano, em Paris, ou seu entusiasmo amoroso por uma moça de origem japonesa, que trabalhava na biblioteca do convento, em São Paulo.
A prisão e o exílio
No 4 de novembro de 1969, Frei Tito de Alencar Lima foi preso no Convento das Perdizes, em São Paulo. Por um ano e dois meses, o frade ficaria preso junto com outros dominicanos: Ivo Lesbaupin, Fernando Brito, Carlos Alberto Libânio Christo (frei Betto), João Antônio Caldas Valença e Giorgio Callegari. Esses dois últimos foram os primeiros a serem libertados.
Torturado sob a acusação de pertencer à Ação Libertadora Nacional-ALN, organização de luta armada fundada por Carlos Marighella, Tito foi destruído psiquicamente por seus carrascos.
Os frades dominicanos foram presos na chamada “Operação Batina Branca”, montada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, criador do Esquadrão da Morte. O delegado era o “puro produto da polícia paulista com sua tradição de torturas e assassinatos” segundo o jornalista Elio Gaspari, que escreveu: “Nunca na história brasileira um delinquente adquiriu sua proeminência”.
O delegado Fleury encarnava na época o combate aos grupos armados que resistiam à ditadura, os “terroristas”, como imprensa e aparelho repressor os qualificavam.
Depois da prisão dos frades, Fleury começou imediatamente a bombardear a imprensa com a versão da traição dos dominicanos. Os frades da ALN eram ora “terroristas”, ora “Judas”. Todos os jornais aderiram à versão de que os dominicanos haviam traído Marighella. As manchetes associavam as palavras “frades” e “terror”. O Globo deu na primeira página a fotografia do convento dos dominicanos com a manchete: “Aqui é o reduto dos terroristas do Brasil”. E fez um editorial, “O beijo de Judas” que não honra a história da nossa imprensa.
Começava a campanha da ditadura de desmoralização dos dominicanos, responsabilizando-os pela queda do “inimigo público número 1”. O regime tentava dividir a esquerda, ao apresentar os frades como “traidores”.
Comentando como a imprensa aderiu à diabolização dos frades orquestrada pela ditadura, o ex-frade Roberto Romano observou: “Eles não agiram como jornalistas. Agiram como carrascos e torturadores”.
O sequestro dos frades Ivo e Fernando, pela polícia no Rio, foi decisivo para a queda de Marighella, fuzilado na Alameda Casa Branca no dia 4 de novembro, dia em que frei Tito foi preso e torturado pelo delegado Fleury. Três meses depois, ao voltar à tortura, dessa vez na Operação Bandeirantes, Tito tentou o suicídio, sendo salvo in extremis depois de hospitalizado. “Ele fez isso para evitar que nós todos voltássemos à tortura”, diz frei Fernando.
O relato das torturas a que foi submetido pelo capitão Albernaz saiu clandestinamente da prisão de São Paulo e foi publicado na revista americana Look e na italiana L’Europeo. A Look recebeu por esse texto o prêmio de reportagem do ano, em 1970, atribuído pelo New York Overseas Press Club, associação da imprensa estrangeira de Nova York.
O jornal Le Monde e a imprensa europeia noticiaram com destaque a prisão, a tortura e o processo dos dominicanos. O papa Paulo VI foi informado desde o início da prisão dos frades e seguiu de perto o processo. Os dominicanos presos enviaram ao papa de presente uma cruz de madeira feita por eles, com o nome de todos os frades presos.
Meses depois, Tito foi posto na lista dos presos trocados pelo terceiro embaixador sequestrado, o suíço Giovanni Enrico Bücher, em janeiro de 1971. Banido do território nacional por decreto, embarcou para Santiago juntamente com 69 presos políticos. Estava triste e abatido.
Encerrava-se ali o ciclo de capturas de diplomatas. A repressão violenta desarticulou a luta armada prendendo e matando os principais líderes e militantes. Em setembro de 1971, Lamarca foi fuzilado. A ditadura já exterminara Marighella, em 1969, e Câmara Ferreira, o Toledo, em 1970.
Os revolucionários que conseguiram escapar da prisão ou foram trocados por embaixadores viviam no exílio. Os que tentaram uma volta na clandestinidade foram executados.
Ultraje indelével
Tito optou pelo trabalho de informação: passou a dar testemunho do que se passava nos cárceres brasileiros, através de entrevistas em várias capitais. Em Santiago, deu entrevista aos cineastas americanos Haskell Wexler e Saul Landau, que fizeram o documentário Brazil: a report on torture (Brasil, um relato de tortura) com depoimentos de alguns dos 70 brasileiros libertados em troca do embaixador suíço. De passagem por Roma, Tito não pôde falar a religiosos no Colégio Pio Brasileiro, impedido pela hierarquia, que alegava sua fama de “terrorista”.
Mas deu entrevistas à imprensa em Roma, na Alemanha e na França. Na capital francesa militou ao lado de brasileiros na denúncia das torturas praticadas pela ditadura.
No Convento Sainte-Marie de La Tourette, perto de Lyon, para onde se mudou em 1973, o dominicano esperava encontrar um porto seguro e retomar os estudos de teologia. No meio da natureza, no alto de uma colina, Tito encontrou o silêncio, mas não a tranquilidade. Em 10 de setembro de 1974, o corpo do frade foi visto por um camponês, pendendo de uma árvore, numa área inóspita, às margens do rio Saône, perto de Villefranche-sur-Saône. Tito foi enterrado no cemitério do convento. Seu corpo voltou ao Brasil em 1983. Hoje, repousa em Fortaleza.
Ele preferiu a morte a conviver com a tortura e com seus torturadores que o atormentavam onde quer que fosse. O filósofo Jean Améry, amigo de Primo Levi, dizia que quem foi submetido à tortura “fica incapaz de sentir-se em casa neste mundo. O ultraje do aniquilamento é indelével. A confiança no mundo que a tortura apaga é irrecuperável”.
Segundo a Anistia Internacional, apesar de 147 países terem ratificado a Convenção contra a tortura, adotada pela ONU em 1984, a organização detectou casos específicos de tortura em 98 países, do total de 198 países existentes no planeta.
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Leneide Duarte-Plon é jornalista, em Paris 
*observatoriodaimprensa
*FlaviaLeitão

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