Garrincha, verdades e mentiras (RUY CASTRO)
30 anos após sua morte, Garrincha ainda não descansou
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RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA
COLUNISTA DA FOLHA
Trinta anos após sua morte, certos mitos sobre Garrincha continuam mais difíceis de matar do que Rasputin. O de que ele chamava seus marcadores de "João", por exemplo --significando que não queria nem saber quem eram, porque iria driblá-los do mesmo jeito. Garrincha nunca disse isso.
A história foi inventada por seu amigo, o jornalista Sandro Moreyra, em 1957, para mostrá-lo como um gênio ingênuo e intuitivo. Garrincha a detestava, porque os adversários, que não queriam ser chamados de "João", redobravam a violência contra ele.
Que Garrincha era um gênio intuitivo do futebol, não há dúvida. Mas não tinha nada do ingênuo, quase débil, com que algumas histórias o pintavam. Ao contrário, era até muito esperto a respeito do que o interessava --mulheres e birita, a princípio nesta ordem--, e não havia concentração que o prendesse. Nos seus primeiros dez anos de carreira, 1953-1962, Garrincha conseguiu conciliar tudo isso com o futebol. Dali em diante, a vida lhe apresentou a conta.
Acervo-2.set.1958/Arquivo do Estado | ||
Ao lado de Mazzola (à direita), Garrincha escuta música na concentração da seleção em 1958 |
Outro mito é o de que, às vésperas do Brasil x URSS na Copa-1958, na Suécia, os três jogadores mais influentes da seleção --Bellini, Didi e Nilton Santos-- foram ao técnico Vicente Feola e exigiram sua escalação na ponta direita, com a consequente barração de Joel, do Flamengo, então titular. Em 1995, isso me foi desmentido pelos quatro jogadores (Bellini, Didi, Nilton Santos e Joel), pelo preparador físico daquela seleção, Paulo Amaral, e por outros membros da delegação.
Perguntei a Nilton Santos por que, durante tantos anos, ele confirmara uma história que sabia não ser verdadeira. Ele admitiu: "Era o que as pessoas queriam ouvir". No futuro, em entrevistas, contaria a versão correta: a de que Joel se contundira ante a Inglaterra, e a entrada de Garrincha aconteceria de qualquer maneira. Note-se que, até o jogo com a URSS, Garrincha ainda não era o Garrincha da lenda, e Joel, também grande atleta, era uma escolha normal para a ponta.
Outro mito, este agora bastante atenuado, mas ferocíssimo na época, refere-se à participação de Elza Soares na vida de Garrincha. Para os desinformados, ela ajudou a destruí-lo. A verdade é o contrário: sem Elza, Garrincha teria ido muito mais cedo para o buraco. Quando ela o conheceu (em fins de 1961, e não em meados de 1962, durante a Copa do Chile, como até hoje se escreve), Elza estava em seu apogeu como estrela do samba, do rádio e do disco. E ninguém imaginava que Garrincha, logo depois de vencer aquela Copa praticamente sozinho, logo deixaria de ser Garrincha.
Ninguém, em termos. Os médicos e preparadores do Botafogo sabiam que Garrincha, com o joelho cronicamente em pandarecos (e agravado pela bebida), estava no limite. Mas ele não se permitia ser operado --só confiava nas rezadeiras de sua cidade, Pau Grande. O que Garrincha fez na Copa foi um milagre. Mas, assim que voltou do Chile, os problemas se agravaram.
Mesmo jogando pouquíssimas partidas, levou o Botafogo ao título de bicampeão carioca --e, assim que o torneio acabou, com sua exibição arrasadora nos 3x0 ante o Flamengo, ele nunca mais foi o mesmo. Marque o dia: 15 de dezembro de 1962 --ali terminou o verdadeiro Garrincha.
Um outro Garrincha --gordo, inchado, bebendo às claras ou às escondidas, incapaz de repetir seus dribles e arranques pela direita-- continuou se arrastando pelos campos, vestindo camisas ilustres (do próprio Botafogo, do Corinthians, do Flamengo, do Olaria e da seleção) por mais inacreditáveis dez anos --até o famoso Jogo da Gratidão, organizado por Elza Soares. Foi sua despedida oficial, a 19 de dezembro de 1973, com um Maracanã inundado de amor.
Naquela noite, um time formado por Felix, Carlos Alberto, Brito, Piazza e Everaldo; Clodoaldo, Rivellino e Paulo César; Garrincha, Jairzinho e Pelé --praticamente a seleção de 1970 com Garrincha-- entrou em campo para enfrentar uma seleção de estrangeiros que atuavam no Brasil, estrelada por Pedro Rocha, Forlan, Reyes e outros.
Isto é Garrincha
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Garrincha dribla Mel Hopkins, de País de Gales, pelas quartas de final da Copa do Mundo de 1958, na Suécia
Numa das várias preliminares, cantores e artistas, como Chico Buarque, Jorge Ben, Wilson Simonal, Paulinho da Viola, Miele, Sergio Chapelin, Francisco Cuoco e outras celebridades também se enfrentaram. Pelas borboletas do estádio, passaram 131.555 pessoas e, com exceção de uma pessoa --o ditador Garrastazu Medici--, todos pagaram para entrar, inclusive os jornalistas. Era o dinheiro que garantiria o futuro de Garrincha.
Da renda de quase 1 milhão e 400 mil cruzeiros (US$ 230 mil de 1973, uma nota), cerca de 500 mil cruzeiros saíram do cofre do Maracanã direto para cadernetas de poupança em nome de suas oito filhas oficiais e um apartamento ou casinha para cada uma. Este era um dos objetivos do jogo. Com os descontos da Receita e outros, sobraram-lhe mais de 700 mil cruzeiros para fazer o que quisesse --e que ele, naturalmente, torrou logo, sem saber como.
Daí o último e maior mito a ser derrubado sobre Garrincha: o de que ninguém o ajudou --o que, no fim da vida, ele declarou em entrevistas para a televisão, que ainda hoje são reprisadas. Mas a verdade é que Garrincha foi muito ajudado, e em várias etapas de sua vida.
Entre seus maiores benfeitores, estavam o banqueiro José Luiz Magalhães Lins, do então poderosíssimo Banco Nacional; o empresário Alfredo Monteverde, dono do Ponto Frio; o Instituto Brasileiro do Café (IBC) e a Legião Brasileira de Assistência (LBA), que lhe deram empregos generosos, aos quais ele não correspondeu; e seus ex-colegas do futebol, agrupados na Agap (Associação de Garantia ao Atleta Profissional), que não se cansaram de recolhê-lo em coma alcoólico na rua e interná-lo em clínicas de "desintoxicação" --das quais era criminosamente liberado dois ou três dias depois de dar entrada.
O alcoolismo matou Garrincha há 30 anos --e continua a matá-lo até hoje, a cada uma de suas vítimas que o Brasil deixa de assistir.
RUY CASTRO é autor de "Estrela Solitária -- Um Brasileiro Chamado Garrincha" (1995), Companhia das Letras, atualmente na 16ª reimpressão
Quando a tristeza não tem fim...
A Copa que não comemorei - Roma, 1970
Por ELZA SOARES
ALÉM DE TER SIDO um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.
Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música, e qual é o operário que não se revolta?
Fomos para Roma, e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.
Estávamos trancados dentro de um apartamento, e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.
Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.
Imagine o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa casa.
Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.
Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.
Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.
Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma --então fomos para Portugal por um tempo.
Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo --mas quem queria camisa da seleção naquela altura?
"Obrigado o..., cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil", ele disse.
Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.
Quando eu canto "Meu Guri", canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de "my life".
*GalOppidio
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