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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 21, 2014

Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade

Žižek: 2 anos de prisão de Assange:




Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade
Nós nos lembramos dos aniversários de eventos importantes de nossa época: 11 de setembro (não apenas o ataque às Torres Gêmeas em 2001, mas o golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973), o Dia D etc. Talvez outra data deva ser adicionada a esta lista: 19 de junho.
A maioria de nós gostaria de dar um passeio durante o dia para tomar uma lufada de ar fresco. Deve haver uma boa razão para aqueles que não podem fazê-lo – talvez eles tenham um trabalho que os impede (mineiros, mergulhadores), ou uma estranha doença que faz com que a exposição à luz solar seja um perigo mortal. Mesmo prisioneiros têm a sua hora diária de caminhada ao ar fresco.
Faz dois anos desde que Julian Assange foi privado deste direito: ele está confinado permanentemente ao apartamento que abriga a embaixada equatoriana em Londres. Se sair, seria preso imediatamente. O que Assange fez para merecer isso? De certa forma, pode-se entender as autoridades: Assange e seus colegas denunciantes [whistleblowers] são frequentemente acusados de serem traidores, mas são algo muito pior (aos olhos das autoridades).
Assange se autodesignou um “espião do povo”. “Espionagem para o povo” não é uma traição simples (o que significa que ele ele atuaria como um agente duplo, vendendo nossos segredos para o inimigo); é algo muito mais radical. Ela mina o próprio princípio da espionagem, o princípio de sigilo, uma vez que seu objetivo é fazer com que os segredos se tornem públicos. Pessoas que ajudam o WikiLeaks não são mais denunciantes anônimos que denunciam as práticas ilegais de empresas privadas (bancos e empresas de tabaco e petróleo) para as autoridades públicas; eles denunciam ao público em geral essas próprias autoridades públicas.
Nós realmente não soubemos de nada através do WikiLeaks que não suspeitássemos — mas uma coisa é suspeitar de modo geral e outra ter dados concretos. É um pouco como saber que um parceiro sexual está nos traindo. Pode-se aceitar o conhecimento abstrato disso, mas a dor surge quando se conhecem os detalhes picantes, quando se tem fotos do que eles estavam fazendo.
Quando confrontado com tais fatos, cada cidadão decente dos EUA não deveria se sentir profundamente envergonhado? Até agora, a atitude do cidadão médio foi um desmentido hipócrita: preferimos ignorar o trabalho sujo feito por agências secretas. A partir de agora, não podemos fingir que não sabemos.
Não é o suficiente ver o WikiLeaks como um fenômeno anti-americano. Estados como China e Rússia são muito mais opressivos do que os EUA. Basta imaginar o que teria acontecido com alguém como Chelsea Manning em um tribunal chinês. Com toda a probabilidade, não haveria julgamento público; ela iria simplesmente desaparecer.
Os EUA não tratam os prisioneiros da mesma maneira brutal – por causa de sua prioridade tecnológica, eles simplesmente não precisam da abordagem abertamente brutal (e estão mais do que prontos a aplicá-la quando necessário). Mas é por isso que os EUA são uma ameaça ainda mais perigosa para a nossa liberdade do que a China: as medidas de controle não são percebidas como tal, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.
Em um país como a China, as limitações da liberdade são claras para todos, sem ilusões. Nos Estados Unidos, no entanto, as liberdades formais são garantidas, de modo que a maioria das pessoas vive sem nem sequer estar conscientes do quanto são controladas por mecanismos estatais.
Em maio de 2002, foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham anexado um chip de computador capaz de transmitir sinais elementares diretamente no cérebro de um rato – o que permite aos cientistas controlar os movimentos do rato por meio de um mecanismo parecido com um controle remoto de um carro de brinquedo. Pela primeira vez, o livre-arbítrio de um animal vivo foi tomado por uma máquina externa.
Talvez aí resida a diferença entre os cidadãos chineses e nós, cidadãos livres em países liberais ocidentais: os ratos humanos chineses são pelo menos conscientes de que são controlados, enquanto nós somos os ratos estúpidos passeando em torno do conhecimento de como nossos movimentos são monitorados.
O WikiLeaks está perseguindo um sonho impossível? Definitivamente não, e a prova é que o mundo já mudou desde suas revelações.
Não ficamos apenas cientes de muita coisa das atividades ilegais dos EUA e de outras grandes potências. O WikiLeaks tem conseguido muito mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em que vivem. Algo que até agora nós tolerávamos silenciosamente tornou-se problemático.
É por isso que Assange foi acusado de causar tanto mal. No entanto, não há violência no que o WikiLeaks está fazendo. Nós todos já vimos a cena clássica dos desenhos animados: o personagem chega a um precipício, mas continua correndo, ignorando o fato de que não há chão sob seus pés; ele começa a cair apenas quando olha para baixo e percebe o abismo. O WikiLeaks está lembrando aqueles que estão no poder de que devem olhar para baixo.
A reação de muitas pessoas que sofreram lavagem cerebral da mídia sobre as revelações do WikiLeaks pode ser resumido nos versos memoráveis da música final do filme de Altman “Nashville”: “Você pode dizer que eu não sou livre, mas isso não me preocupa”. O WikiLeaks faz com que nos preocupemos. E, infelizmente, muitas pessoas não gostam disso.
*RenéAmaral

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