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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, junho 14, 2014

50 verdades sobre Ernesto "Che" Guevara


Che em Moscou, 1965
Por Salim Lamrani no Opera Mundi

Continuando com a série de artigos sobre os 55 anos anos da Revolução Cubana, 50 verdades sobre o “guerrilheiro heróico” Ernesto "Che" Guevara, que perdura na memória coletiva como símbolo da resistência à opressão.

1. Ernesto Guevara nasce no dia 14 de junho de 1928 em Rosário, na Argentina, no seio de uma família de cinco filhos. Seus pais, Ernesto Guevara y Lynch e Celia de la Serna, fazem parte da classe acomodada e aristocrática.

2. Aos dois anos de idade, o jovem Guevara sofre sua primeira crise de asma, doença que o acompanharia toda a vida e forjaria sua força de vontade à toda prova. Sua família se instala em Córdoba e depois em Alta Gracia, onde o clima lhe é mais favorável. Guevara passaria 17 anos de sua vida lá, até 1947.

3. Leitor ávido, Guevara devora os livros desde muito novo e se apaixona por filosofia, particularmente a social.

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4. Em 1948, começa a faculdade de medicina na Universidade de Buenos Aires. Ele se formaria em 1953.

5. Em 1950, Guevara realiza sua primeira viagem de moto pelo norte da Argentina e visita as regiões mais pobres do país. Percorre um total de 4500 km e a miséria que atinge seu povo o impressiona muito. A respeito, escreve: “Não me nutro das mesmas formas que os turistas [...]. A alma [do povo] está refletida nos doentes dos hospitais.”

6. Um ano mais tarde, percorre a costa atlântica da América do Sul a bordo de um navio petroleiro da companhia nacional argentina que o recruta como médico da equipe.

7. De janeiro a julho de 1952, aos 24 anos, Guevara realiza sua primeira viagem internacional de moto, com seu amigo Alberto Granado. Visitam o Chile, o Peru a Colômbia e a Venezuela. Em maio de 1952, em Lima, Guevara conhece o doutor Hugo Pesce, dirigente do Partido Comunista do Peru e discípulo de José Carlos Mariátegui, que trabalha em um leprosário. Este encontro, assim como os meses que passariam na instituição médica, se revelariam decisivos e orientariam seu futuro destino de luta a favor dos oprimidos. Durante esta viagem, Guevara descobre a miséria e a exploração dos povos latino-americanos, particularmente perpetrada pelas multinacionais estadunidenses.

8. Em julho de 1953, depois de se formar médico, Guevara realiza uma nova viagem pela América Latina com seu amigo Carlos Ferrer. Na Bolívia, descobre o processo radical lançado pelo Movimento Nacionalista Revolucionário em 1952.

9. No dia 24 de dezembro de 1953 chega à Guatemala, governada então pelo presidente reformador Jacobo Arbenz. Estaria nove meses vivendo lá em condições economicamente difíceis.

10. Na Guatemala, Guevara faz amizade com Antonio “Ñico” López, exilado cubano que havia participado do ataque ao quartel Moncada comandado por Fidel Castro no dia 26 de julho de 1953. López seria quem daria o apelido “Che” a Guevara, em referência à intervenção tipicamente argentina usada pelo jovem médico.

11. Guevara chega à Guatemala com um pensamento político bem definido, como mostra uma carta que escreve para sua tia Beatriz no dia 10 de dezembro de 1953. “Tive a oportunidade de passar pelos domínios da United Fruit, me convencendo uma vez mais do terríveis que são esses polvos. Jurei a uma imagem do velho e pranteado camarada Stálin não descansar até ver aniquilados esses polvos capitalistas. Na Guatemala, me aperfeiçoarei e conseguirei o que me falta para ser um revolucionário autêntico... Seu sobrinho, o da saúde de ferro, do estômago vazio e da reluzente fé no porvir socialista.”

12. Guevara assiste ao golpe de Estado organizado pela CIA e pelo coronel Castillo Armas em junho de 1954, que bombardeiam a capital. Integra as brigadas juvenis comunistas que organizam a resistência e pedem em vão armas ao governo. O Estado Maior do Exército apoia o golpista e exige a saída de Arbenz, que é deposto em julho de 1954.

13. Guevara conta as lições do golpe de Estado contra Arbenz em uma carta a sua mãe: “A traição continua sendo patriotismo do Exército, e uma vez mais se prova o aforismo que indica a liquidação do Exército como o verdadeiro princípio da democracia.”

14. Depois de se refugiar na embaixada da Argentina, consegue, em setembro de 1954, um salvo-conduto para ir ao México, onde viveria por dois anos. Trabalha como fotógrafo e médico e consegue sobreviver a duras penas. Pouco depois de sua chegada, volta a se encontrar com seu amigo cubano López, que o convida a se juntar a outros sobreviventes de Moncada.

15. Em 1955, Guevara conhece Raúl Castro, recém saído da prisão, com quem faz amizade. Pouco depois, ele o apresenta a Fidel Castro. Castro se lembra: “O Che era daqueles por quem todo mundo sentia imediatamente afeto, por causa de sua simplicidade, seu caráter, sua naturalidade, seu espírito de camaradagem, sua personalidade, sua originalidade. Não precisamos de muito tempo para entrarmos em acordo e o aceitarmos em nossa expedição [...]. Quando nos encontramos com Che, ele já era revolucionário formado; além disso, tinha um grande talento, uma grande inteligência, uma grande capacidade teórica”. Fidel Castro também se impressiona com o caráter do argentino: “O Che tinha asma. Ali estava em Popocatépetl, um vulcão que fica nas imediações do México, e todos os finais de semana ele subia o Popocatépetl. Preparava seu equipamento – a montanha é alta, 5482 metros, de neves perpétuas -, começava a subida, fazia um esforço enorme e não chegava ao topo. A asma era um obstáculo às suas tentativas. Na semana seguinte tentava de novo subir o “Popo” – como ele dizia – e não conseguia. Nunca chegava ao topo, e nunca chegou ao cume do Popocatépetl. Mas voltava a tentar de novo, e teria passado a vida toda tentando subir o Popocatépetl, fazia um esforço heroico, ainda que nunca chegasse ao cume. Vê-se o caráter. Dá uma ideia da fortaleza espiritual, de sua constância.”

16. A personalidade de Fidel também assombra Guevara. Em uma carta a seus pais, escreve: “Fiz amizade com Raúl Castro, o irmão mais novo de Fidel. Ele me apresentou ao chefe do Movimento quando já estavam planejando invadir Cuba. [...] Conversei com Fidel uma noite inteira. Ao amanhecer, já era o médico de sua futura expedição […]. Fidel me impressionou como um homem extraordinário [...]. Tinha uma fé excepcional [...]. Compartilhei de seu otimismo”. Che pede então a Fidel Castro que lhe permita ir lutar na Argentina, uma vez que a Revolução triunfe em Cuba.

17. No dia 2 de dezembro de 1956, Guevara desembarca em Cuba com os revolucionários liderados por Fidel Castro. O Exército já os espera e consegue dispersá-los.

18. Guevara se distingue desde o início por sua audácia e sua capacidade para  liderar. Fidel Castro lembra dos primeiros momentos: “Sobreveio o primeiro combate vitorioso e Che foi soldado já de nossa tropa, e, ao mesmo tempo, era ainda o médico; sobreveio o segundo combate vitorioso e o Che já não era apenas soldado, senão foi o mais distinto dentre os soldados nesse combate, realizando pela primeira vez uma daquelas proezas singulares que o caracterizavam em todas as ações [...]. Essa era uma de suas características essenciais: a disposição imediata, instantânea, de se oferecer para realizar a missão mais perigosa. E aquilo, naturalmente, despertava admiração, a dupla admiração, àquele companheiro que lutava junto a nós, que não tinha nascido nessa terra, que era um homem de ideias profundas, que era um homem em cuja mente borbulhavam sonhos de luta em outras partes do continente e que, no entanto, tinha aquele altruísmo, aquele desinteresse, aquela disposição para fazer sempre o mais difícil, para arriscar sua vida constantemente.”

19. Fidel Castro decide nomeá-lo comandante em julho de 1957, e Guevara toma a frente da segunda Coluna chamada “Coluna n° 4” para enganar o inimigo sobre o número de guerrilheiros. Guevara é o primeiro a conseguir essa patente, muito antes de Raúl Castro.

20. Implacável com os traidores, os assassinos, os ladrões e os estupradores, aos quais aplica a pena capital, Guevara se mostra, por outro lado, generoso com os soldados feridos. Guevara relata um episódio a esse respeito: “Quando tomamos de assalto o primeiro caminhão, encontramos dois soldados mortos e um ferido que, em sua agonia, parecia seguir lutando. Foi finalizado sem que lhe dessem a possibilidade de se render, coisa que não poderia fazer porque estava meio inconsciente. Este ato de vandalismo foi realizado por um combatente cuja família foi aniquilada pelo Exército de Batista. Reprovei violentamente seu ato sem perceber que o outro soldado ferido me escutava. Tinha se escondido debaixo das mantas e tinha ficado na plataforma do caminhão sem se mover. Ao ouvir isso e as desculpas que deu nosso companheiro, o soldado inimigo se apresentou e pediu que não lhe matassem; uma bala tinha fraturado sua perna e ele tinha ficado na lateral do caminho enquanto os combates continuavam nos outros dois caminhões. Cada vez que passava um combatente a seu lado, o homem gritava: “Não me matem, não me matem, o Che disse que não matariam os presos!”

21. Em 1958, Fidel Castro decide nomear Che o chefe da Escola Militar recém-criada para formar os futuros guerrilheiros, com a finalidade de protegê-lo de seu caráter demasiadamente temerário: “Che era um soldado insuperável; Che era um chefe insuperável; Che era, do ponto de vista militar, um homem extraordinariamente capaz, extraordinariamente valente, extraordinariamente agressivo. Se, como guerrilheiro, tinha um calcanhar de Aquiles, esse calcanhar era sua excessiva agressividade, seu absoluto desprezo pelo perigo.”

22. Em junho de 1958, Guevara forma a Coluna n°8 com os novos recrutas para fazer frente à ofensiva final lançada por Batista um mês antes, mandando 10 mil soldados à Sierra Maestra para esmagar a guerrilha.

23. No dia 31 de agosto de 1958, depois do fracasso militar da ditadura, Fidel Castro lança a contraofensiva com a finalidade de estender a guerrilha a todo o país e ordena a Che e a Camilo Cienfuegos que se dirijam à capital. O périplo de mais de 500 km faz a tropa enfrentar um teste difícil, acossada pelas inclemências da natureza e pelo Exército governamental. Em uma carta a Fidel Castro, Cienfuegos conta os sofrimentos padecidos durante a odisseia: em 31 dias de caminhada, somente comem onze vezes, entre outras coisas, uma “égua crua sem sal”. “Somente os insultos e as ameaças de todo tipo faziam com que essa massa esgotada avançasse.”

24. Na região de Villa Clara, Che cria o “Pelotão Suicida”, integrado pelos guerrilheiros experientes, encarregados das missões mais difíceis: “O ‘Pelotão Suicida’ era um exemplo da moral revolucionária e era composto apenas de voluntários selecionados. No entanto, cada vez que um homem morria – e isso acontecia a cada combate – no momento de designar o novo aspirante, os que não foram selecionados se doíam até os prantos. Era curioso ver os jovens guerreiros [...] mostrando sua juventude, deixando correr algumas lágrimas por não ter a honra de estar na linha de frente da morte.” 

25. No dia 28 de dezembro de 1958, Guevara lança o ataque contra a cidade de Santa Clara, último bastião do regime antes de Havana, reforçado por tropas dez vezes superiores em número aos guerrilheiros, que não superavam os 300 homens. A batalha termina com a captura do trem blindado que veio da capital com reforços. Não obstante, os rebeldes pagam um preço alto. Guevara dá seu testemunho a respeito: “Lembro de um episódio que era revelador do espírito de nossa força nesses dias finais. Eu tinha repreendido um soldado que estava dormindo no combate e me respondeu que o tinha desarmado porque ele tinha perdido um tiro. Respondi com meu tom seco habitual: ‘Arrume outro fuzil e vá desarmado para a linha de frente... se for capaz de fazê-lo’. Em Santa Clara, enquanto eu estava reconfortando os feridos, um moribundo me tocou a mão e me disse: “Lembra-se de mim, Comandante? O senhor me mandou conseguir uma arma em Remedio...aqui está’. Tratava-se do [mesmo] combatente [...], feliz de ter demonstrado sua valentia. Assim é o nosso Exército Rebelde.”

26. Ao se inteirar da queda de Santa Clara sob as mãos dos rebeldes, Batista decide fugir na noite de 1 de janeiro de 1959 para a República Dominicana. Fidel Castro ordena a Che e a Cienfuegos que se dirijam a Havana e tomem o controle dos quartéis de Columbia e La Cabaña.

27. Durante os primeiros meses de 1959, Guevara se encarrega dos tribunais revolucionários que julgam os crimes cometidos durante a ditadura militar. Cerca de 1000 pessoas passam pela “justiça expeditiva” e cerca de 500 são fuziladas. A título de comparação, durante a “Depuração Francesa”, depois da Segunda Guerra Mundial, cerca de um milhão de pessoas foram detidas e cerca de 100 mil foram condenadas. Houve 10 mil execuções, 9 mil delas extrajudiciais.

28. Em fevereiro de 1959, o presidente Manuel Urrutia declara Ernesto Guevara cidadão cubano pelos serviços prestados à nação.

29. Guevara desempenha um papel chave na criação do Instituto Nacional de Reforma Agrária e na elaboração da Lei de Reforma Agrária promulgada em maio de 1959. Segundo ele, “o guerrilheiro é, fundamentalmente, e, antes de mais nada, um revolucionário agrário. Interpreta os desejos da grande massa camponesa de ser dona da terra, dona dos meios de produção, de seus animais, de tudo aquilo pelo que lutou durante anos.”

30. Em 1959, Guevara é nomeado Ministro da Indústria e depois presidente do Banco Nacional e assina as notas com seu apelido “Che”, para mostrar seu desprezo pelo dinheiro e pelas riquezas materiais. Põe em curso a nacionalização dos setores estratégicos da economia do país.

31. Em 1960, durante o Primeiro Congresso Latino-Americano de Juventudes, Guevara desenvolve o conceito de “novo homem socialista”, que privilegia o interesse geral sobre as aspirações pessoais. Insiste na importância do trabalho voluntário, uma “escola criadora de consciência”, e dá exemplo todos os finais de semana trabalhando voluntariamente nas fábricas, nos canaviais e nos portos. Também realiza uma turnê pelo bloco socialista e pela China e assina numerosos acordos comerciais.

32. Feroz detrator da coexistência elaborada pelos Estados Unidos e pela União Soviética, depois da crise de outubro de 1962, Guevara multiplica a ajuda aos movimentos revolucionários na América Latina e no mundo em nome da solidariedade internacionalista. Seu sonho é desatar uma guerra insurrecional na Argentina.
33. Em 1964, Che renuncia aos seus cargos no governo revolucionário para reiniciar a luta armada na América do Sul. Como as condições não estavam dadas, Fidel Castro lhe propõe ir ao Congo, na África, onde a CIA tinha assassinado Patrice Lumumba três anos antes. Situado no centro da África, fazendo fronteira com nove países, o Congo poderia ser o foco revolucionário que se expandiria para todo o continente.

34. Em 1965, Guevara escreve a famosa carta de despedida a Fidel Castro, na qual renuncia definitivamente a seus cargos e à nacionalidade cubana e declara sua vontade de fazer a revolução em outras terras. A carta se tornaria pública em outubro de 1965, no primeiro congresso do Partido Comunista de Cuba.

35. Em abril de 1965, Guevara chega a Tanzânia, dando retaguarda aos revolucionários congolenses. A presença do líder argentino no campo de batalha suscita a preocupação dos chefes da rebelião congolesa pelas implicações internacionais. Da mesma forma, enquanto aqueles passavam a maior parte do tempos [na cidade de] Dar es Salaam, na Tanzânia, Guevara lhes recorda com sua presença que um chefe deve estar entre seus homens na linha de frente. A experiência congolesa, que duraria nove meses, seria um “fracasso”, segundo Che, por causa de lutas internas, da falta de disciplina entre os rebeldes, e da decisão unilateral da Tanzânia de deixar de  abastecer os rebeldes. Em uma carta ao presidente Julius Nyerere, Guevara expressa sua incompreensão e seu desgosto: “Cuba deu ajuda sujeita à aprovação da Tanzânia, esta aceitou e a ajuda foi efetiva. Sem condições ou limite de tempo. Compreendemos as dificuldades da Tanzânia hoje, mas não estamos de acordo com suas abordagens. Cuba não volta atrás em seus compromissos nem pode aceitar uma fuga vergonhosa deixando o irmão na desgraça à mercê dos mercenários.”

36. Depois de uma estadia em Praga, Guevara volta secretamente a Cuba, de onde decide ir para a Bolívia, então sob o jugo da ditadura do general René Barrientos. O objetivo é lançar um movimento insurrecional que se expandiria por toda a América do Sul.

37. No dia 7 de novembro de 1966, Guevara começa a escrever seu diário da Bolívia. Um total de 47 combatentes, entre eles 16 cubanos, compõe o Exército de Libertação Nacional da Bolívia e ocupam uma área montanhosa no sudeste do país, perto do rio Ñancahuazú.

38. Em março de 1967, a prisão dos dois desertores alerta o regime militar, que solicita ajuda dos Estados Unidos para capturar Guevara e seus homens. No mesmo mês, começam os combates entre a guerrilha e o Exército boliviano, o qual inflige severas baixas a tropa de rebeldes.

39. No dia 20 de abril de 1967, o Exército prende Regis Debray e Ciro Bustos, dois membros da rede de apoio à guerrilha. Ambos são submetidos à tortura e fornecem informações que permitem ao regime localizar os revolucionários.

40. Mario Monje, secretário-geral do Partido Comunista da Bolívia, em vez de dar à tropa a ajuda logística e humana prevista, abandona Guevara e os guerrilheiros à própria sorte.

41. Longe de se se dar por vencido, Guevara lança sua famosa “Mensagem aos povos do mundo” e chama os revolucionários a “criarem dois, três, muitos Vietnãs”.

42. Em agosto de 1967, o Exército aniquila a coluna n°2 e Guevara fica só com duas dezenas de combatentes a frente da coluna n°1.

43. No dia 7 de outubro de 1967, Guevara está perto de La Higuera com 16 combatentes e escreve sua última reflexão em seu diário, depois de “onze meses” de luta.

44. No dia 8 de outubro de 1967, o Exército surpreende a tropa na Quebrada del Churo. Para permitir que os feridos escapem, Che decide enfrentar o Exército com os poucos homens válidos. Depois de várias horas de combate, Guevara, ferido em uma perna, é capturado pelo Exército, que o leva a uma escola em La Higuera. Somente cinco guerrilheiros sobreviveriam e conseguiriam se refugiar no Chile. 

45. No dia 9 de outubro, o ditador Barrientos, seguindo as ordens da CIA, ordena a execução de Che. O coronel boliviano Miguel Ayoroa, que participou da captura de Che, dá seu testemunho: “Um dos homens da CIA era Félix Rodríguez, um cubano exilado que entrou na escolinha gritando “Você sabe quem eu sou?”. Che o olhou com asco e respondeu. “Sim, um traidor”, e cuspiu na cara dele.
46. Félix Rodríguez contaria mais tarde: “Mandei [ao sargento] Terán que efetuasse a ordem. Disse que deveria disparar sob seu pescoço já que assim poderíamos provar que tinha sido morto em combate. Terán pediu um fuzil e entrou na sala com dois soldados. Quando escutei os disparou anotei no meu caderno 1:10 pm, 9 de outubro de 1967.”

47. O sargento Mario Terán relataria sua experiência em 1977 à revista francesa Paris-Match: “Hesitei 40 minutos antes de executar a ordem. Fui falar com o coronel Pérez com a esperança de que ele a tivesse anulado. Mas o coronel ficou furioso. Assim é que eu fui. Esse foi o pior momento de minha vida. Quando cheguei, Che estava sentado em um banco. Ao me ver, disse: ‘O senhor veio me matar’. Eu me senti coibido e baixei a cabeça sem responder. Então, me perguntou: ‘O que os outros disseram?’. Respondi que não tinham dito nada e ele disse: ‘Eram um valentes!’. Eu não me atrevi a disparar. Nesse momento, vi Che grande, muito grande, enorme. Seus olhos brilhavam imensamente. Sentia que vinha para cima de mim e, quando me olhou fixamente, senti uma tontura. Pensei que, com um movimento rápido, Che poderia tirar a minha arma. ‘Fique tranquilo – me disse – e aponte bem! Vai matar um homem!’. Então, dei um passo para trás, até o limiar da porta, fechei os olhos e disparei a primeira rajada. Che, com as pernas destroçadas, caiu no chão, se contorceu e começou a jorrar muitíssimo sangue. Eu recuperei o ânimo e disparei a segunda rajada, que o atingiu em um braço, no ombro e no coração. Já estava morto.”

48. Em 1997, os restos de Che e de seus companheiros de luta são levados para Cuba, onde descansam no Memorial Ernesto Guevara, na cidade de Santa Clara.

49. Dotado de grande inteligência, Guevara deixou muitos escritos e uma filosofia política chamada guevarismo. Segundo Fidel Castro, “Che era um homem de pensamento profundo, de inteligência visionária, um homem de profunda cultura. Isso é, reunia em sua pessoa o homem de ideias e o homem de ação [...]. O pensamento político e revolucionário de Che terá um valor permanente no processo revolucionário da América Latina.”

50. Guevara fica na memória coletiva dos povos como o defensor dos oprimidos, que se indignou com as injustiças, o símbolo do desinteresse e o homem que pegou em armas em nome do interesse superior dos condenados da terra.


Salim Lamrani é Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos, é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos.
*solidarios

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