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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, março 28, 2012

Luiz Cláudio escracha
os militares de pijama






SUL 21 -     Luiz Cláudio Cunha

Rio e Porto Alegre: as duas caras da ditadura


Neste fim de semana, o Brasil verá as duas caras da maior tragédia política do país: a mais longa ditadura de sua história.


Na quinta-feira (29), no Rio de Janeiro, a face da mentira, a cargo dos nostálgicos do regime de força, vai se mostrar na sede do Clube Militar, na avenida Rio Branco, no centro da cidade, para festejar o 48° aniversário do que chamam de “Revolução Democrática e Redentora de 31 de Março de 1964”, a chamada ‘contrarrevolução’ que evitou a ‘comunização’ do país.


A partir de sexta-feira (30), em Porto Alegre, a face da verdade, escancarada por entidades e militantes de direitos humanos, será exibida pelos que vão recordar a cara mais perversa do golpe de 1964, o movimento civil-militar que derrubou o presidente João Goulart e mergulhou o país numa treva de 21 anos marcada por violência, prisões, tortura, desaparecimentos forçados, cassações de mandatos políticos, exílio, censura e medo.


O 5° Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça, promovido pela Assembleia Legislativa gaúcha e pelo Movimento de Direitos Humanos e Justiça, vai discutir as consequências da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA, as obrigações ainda não cumpridas para adequar a lei brasileira à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade, como tortura e desaparecimento, e o alcance da Comissão da Verdade, criada mas ainda não instalada no Brasil.


O advento da Comissão da Verdade é o pano de fundo da inquietação militar, principalmente de setores militares mais antigos, já na reserva e com suas digitais nos crimes mais violentos da época da ditadura. Parlamentares, juristas, jornalistas e entidades de direitos humanos do Cone Sul e da Europa vão participar do encontro de Porto Alegre, que termina no domingo, 1° de abril, dia universal da mentira, com uma visita à desativada Ilha do Presídio, no meio do rio Guaíba, antigo centro de torturas e tormentos para dissidentes políticos presos pelo DOPS.


O Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça em março em Porto Alegre é a sequência de reuniões semelhantes ocorridas em outros países do Cone Sul, sempre na data de seus respectivos golpes de Estado. O primeiro aconteceu em Buenos Aires (golpe de 24 de março de 1976), seguido pelos de Montevidéu (golpe em 27 de junho de 1973) e de Santiago do Chile (golpe em 11 de setembro de 1973).


A primeira mesa de Porto Alegre, na sexta-feira, fará um paralelo entre os casos da guerrilha do Araguaia e do desaparecimento do casal uruguaio Gelman, sequestrado em Buenos Aires em 1976 por comandos da ditadura de Montevidéu. Nora do mais famoso poeta vivo argentino Juan Gelman, Maria Cláudia Garcia Gelman foi presa grávida, deu à luz na prisão, foi torturada, morta e desaparecida. O bebê, Macarena, foi criado por um casal de policiais da repressão uruguaia e só veio a ser identificada em 2000, aos 24 anos. Macarena Gelman fará parte da mesa de debates na Assembléia gaúcha, nesta sexta-feira.


A neta e o avô entraram com um processo contra o Uruguai, na Corte de Direitos Humanos da OEA, que condenou o país pelo sequestro. O Brasil foi condenado também na OEA por não cumprir a determinação de investigar a repressão no Araguaia e a punição aos responsáveis por sequestros, torturas e desaparecimentos.


Ao contrário do Uruguai, o Brasil rejeita a condenação e recusa o cumprimento das decisões legais da Corte Interamericana, usando o argumento da controversa Lei da Anistia de 1979, concedida pelo próprio regime militar para beneficiar os agentes de seu aparato repressivo, e a conivente chancela do Supremo Tribunal Federal, que revalidou a auto-anistia da ditadura em 2010.


Na quarta-feira (21) da semana passada, o presidente uruguaio José Mujica reconheceu formalmente a responsabilidade do Estado e pediu desculpas públicas à família, numa solenidade em que inaugurou uma placa na sede do antigo Serviço de Informação de Defesa (SID), responsável pelos crimes da ditadura, que vigorou entre 1973 e 1985.


Mal comparando, é como se a presidente Dilma Rousseff, como Mujica também uma ex-guerrilheira e vítima de torturas no regime militar, inaugurasse uma placa parecida na sede do DOI-CODI da rua Tutoia, em São Paulo, o maior centro da repressão militar do país nos anos de chumbo do Governo Médici.


É possível imaginar, assim, a pequenez institucional do gigantesco Brasil diante da grandeza política do pequeno Uruguai.


A simples ameaça de uma Comissão da Verdade no Brasil, o último país no mundo a adotar a medida, provocou tensão na área militar. Os clubes militares das três armas publicaram um manifesto em seus sites, antes do Carnaval, e os ataques à futura comissão viraram cinza na quarta-feira em que as cuícas silenciaram, diante da dura voz de comando da presidente Dilma.


Inconformados, militares da reserva se reaglutinaram em torno de um novo manifesto, ainda mais ameaçador, atacando a autoridade da presidente e de seu ministro da Defesa, Celso Amorim. A ultima contagem dos rebelados informava uma lista de adesões com 126 oficiais-generais da reserva (entre generais, almirantes e brigadeiros), 786 coronéis e 202 tenentes-coronéis.


A reação empolgada da direita militar, saudosista do golpe, provocou uma reação contrária nas ruas. Na mesma quinta-feira em que o Clube Militar realizará sua acintosa reunião festiva, contrariando ordem expressa da presidente Dilma Rousseff, um ato de apoio à Comissão da Verdade será realizado na tradicional Cinelândia, no centro do Rio, bem próximo ao clube dos nostálgicos de 1964.


Os manifestantes, bem humorados, prometem comparecer vestidos de pijama, como os militares da reserva que tentam, agora, voltar à linha de frente da cena política defendendo o regime de força que sustentaram por duas décadas. Na terça-feira, em várias capitais, grupos de estudantes fizeram manifestações pontuais indicando o local de endereço de vários militares e policiais, apontados como torturadores do regime e até hoje impunes.


A exacerbação do debate em torno de quem defende ou critica a Comissão da Verdade pode ser um elemento positivo para tirar a questão dos gabinetes ainda tímidos do poder e ganhar o calor das ruas e da mobilização popular. É a única maneira de tratar, com o devido respeito, uma questão que o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal ainda temem colocar em pauta.


O encontro latinoamericano de Porto Alegre mostra que esta não é uma questão exclusivamente doméstica do Brasil, mas uma demanda internacional para quem reverencia a justiça, a memória e a história.


A verdade, ao contrário da mentira, não se fantasia com pijamas.

*PHA

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