Num país de intocáveis, falar em regime de direito é uma grosseira piada de mau gosto
Sanguessugado do Pedro Porfírio
Procurador Roberto Gurgel deve explicações sobre o aborto do inquérito da PF na CPI onde foi acusado
O delegado da Polícia Federal Raul Alexandre Marques Sousa disse que a apuração da “Operação Vegas” parou no momento em que apareceram as conversas com parlamentares com prerrogativa de foro,como o senador Demóstenes Torres (sem partido, ex-DEM-GO). O caso foi remetido ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel, em meados de 2009. Mas a mulher dele, a subprocuradora Cláudia Sampaio Marques, avaliou que não havia indícios suficientes para que a apuração contra essas autoridades continuasse no Supremo Tribunal Federal (STF).
Roberto Gurgel e Demóstenes Torres: sem comentários
A
existência de intocáveis não pega bem num regime em que todos deveriam
ser absolutamente iguais, como está escrito no caput do artigo 5º da
Constituição Federal: “todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza”.
No entanto, infelizmente,
são exatamente os ministros nomeados guardiões constitucionais os
primeiros a virar as costas para o dogma da igualdade entre os cidadãos
numa terrível demonstração de o regime de direito está por um triz.
O
poder do intocável fazer só o que a seu juízo cabe ou é conveniente
situa-se acima do bem e do mal, num ritual de fazer inveja a abusos
recentes, ainda frescos em nossa memória ferida.
No
presente, essa faculdade arbitrária soa como consagração da mais cínica
hipocrisia institucional, mostrando com todas as letras, mortas e
vivas, o triunfo perverso do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”,
como se à sociedade queda não restasse outra atitude senão resignar-se.
Faço
essas patéticas constatações tomado da maior tristeza. É inevitável que
uma sensação de impotência total irradie-se em meu cérebro atormentado,
com forte tendência a produzir a doença degenerativa da desilusão
irreversível.
A que ponto chegamos. Ninguém de
sã consciência poderia imaginar que um coral afinado oferecesse suas
vozes para a blindagem do procurador geral da República, Roberto Gurgel,
e de sua esposa, a sub-procuradora geral Cláudia Sampaio Marques,
citados em português escorreito pelo delegado Raul Alexandre Marques
Sousa, que a esta altura já deve estar com a cabeça à prêmio.
O
policial contou aos parlamentares da CPI do Cachoeira que já em 2009,
isto é, há três anos, havia detectado através de escuta autorizada
conversas cúmplices entre o contraventor e corruptor e seu mais graduado
títere, um senador da República festejado por todos como um mosqueteiro
da ética, e mais dois deputados menos cotados.
Por
que a investigação pilhara três congressistas na folha de pagamento do
delinquente, ele teve que levar o apurado ao conhecimento da cúpula
judiciária. E aí levou um tremendo chega pra lá, um “não se fala mais
nisso”, um bota a viola no saco, e a sua “Operação Vegas” entrou para o
arquivo morto, conforme ordens superiores, isto é, determinação por
ofício da subprocuradora geral, para quem não havia indícios suficientes
para que sugerisse ao marido, procurador geral, pedir a abertura de
investigação contra esses parlamentares no Supremo Tribunal Federal
(STF).
Questionamento de nepotismo à parte - os
intocáveis estão acima desses pecados – o procurador geral parece que
amarelou ao saber que Cachoeira e Demóstenes Torres queriam sua cabeça
ou agiu sob outro tipo de condicionamento. Tudo pode ter acontecido de
inexplicável, porque a maior parte das revelações de agora remonta a
investigação d’outrora. O certo é que o delegado ficou na maior saia
justa e recolheu-se à sua insignificância diante do casal todo poderoso.
Com
a palavra diante da CPI, Raul Alexandre Marques Sousa soltou o grito
que estava parado no ar e deu o serviço. Todo o mal que a super
organização criminosa de ramificações várias esteve fazendo até estes
dias poderia ter sido estancado há três anos, reduzindo
consideravelmente o prejuízo financeiro e moral, e impedindo que o capo
tivesse agido com tanta desenvoltura no ano eleitoral de 2010 e nos anos
subsequentes em que consolidou o império criminoso mais diversificado
de que se tem notícia nestas paragens.
Até aos
mais aparvalhados parece claro que o meu conterrâneo Roberto Monteiro
Gurgel Santos deve uma explicação aos súditos no mesmo local em que sua
atitude insustentável foi revelada, sob pena de oferecer os insumos
daninhos para a pizza da CPI que ainda vai ter que ganhar
credibilidade entre os cidadãos.
Comparecer a
uma CPI, aliás, não pode ser entendido como um reconhecimento de que o
convocado já deve alguma coisa no cartório. Se assim fosse, não carecia
nem mesmo a tomada de depoimentos.
Mas esse
episódio oferece também o corpo de delito de uma manobra de baixo
calão. À primeira reação diante das declarações cristalinas do delegado,
o procurador saiu-se com a primária alegação de que está sendo minado
por “pessoas que morrem de medo do julgamento do mensalão”.
Eu
não sabia que esse delegado que pôs o procurador nas cordas tinha rabo
preso com esse processo espetaculoso que se arrasta por sete anos, num
banho-maria novelesco.
Seria uma obra da mais
sofisticada conspiração se os réus do processo citado tivessem induzido o
delegado a revelar na CPI o que a cúpula do Ministério Público e da
Polícia Federal já sabia de cor e salteado.
Em
sua esfarrapada defesa, o Roberto Monteiro Gurgel Santos recorre à
cortina de fumaça que, segundo as más línguas, seria o mesmo ardil dos
mensalistas, ao incrementarem a CPI do Cachoeira.
O depoimento do policial seria, por assim dizer, uma jogada ensaiada,
com a finalidade de enfraquecer o procurador que acusará os indiciados,
todos ligados à chamada base governista, cujas peripécias lhes valeram
condenações antecipadas por uma opinião pública que, a ser coerente, não
pode admitir que o procurador se exima de explicar a ordem infausta
também numa CPI. Isto porque, lembre-se, ele e a sua sub deram motivos
diferentes para o expediente que livrou a cara dos políticos e do
delinquente que agora estão no pelourinho sem saber o que vão dizer em
casa.
No mínimo, causa espanto que marido e
mulher, ou seja, procurador geral e subprocuradora, não se entendam
sobre as razões que levaram a trancar o inquérito a sete chaves. Ela
alegou que não havia elementos suficientes para acolher as conclusões da
“Operação Vegas”; ele saiu-se com uma desculpa que deve entrar para o
folclore político: o aborto aconteceu por razões estratégicas, disse e
repetiu ante os olhos incrédulos dos ainda não idiotas.
Como
reclamava o velho Tancredo, não se pode agredir os fatos. Se os chefes
da Procuradoria Geral da República que frustraram uma criteriosa
investigação não se sentirem obrigados sequer a prestar os
esclarecimentos devidos, achincalhando no nascedouro a CPI híbrida, com
que autoridade eles podem assumir a acusação nesse que já se define como
o mais espetaculoso julgamento da nova República?
Nesse
caso, vamos e venhamos, o procurador entrará em campo já contundido e
será inevitavelmente questionado não apenas pelo erro de 2009, mas,
principalmente, pela blindagem de que tenta se revestir como se, em indo
lá na CPI, pudesse cair em maus lençóis.
Sua
não ida à comissão parlamentar onde foi acusado terá efeitos desastrosos
para toda a instituição do Ministério Público Federal, onde existe uma
esmagadora maioria de procuradores competentes, honestos, eficientes e
admirados pela opinião pública.
E esse desastre,
que inflará a bolha dos intocáveis, afetará maldosamente o que o os
ingênuos acreditam ser um regime democrático de direito.
*GilsonSampaio