Por Felipe Prestes
A população brasileira está mais tolerante com atitudes arbitrárias da
polícia e com suspensão de direitos a acusados e condenados. É o que
indica a “Pesquisa nacional, por amostragem domiciliar, sobre atitudes,
normas culturais, e valores em relação a violação de direitos humanos e
violência”, lançada na última quarta-feira (6), pelo Núcleo de Estudos
da Violência da USP. As causas destas mudanças de opinião não aparecem
na pesquisa, mas especialistas apontam que a sensação de medo, em parte
turbinada pelos meios de comunicação, podem ser o principal fator.
Foram feitas entrevistas, em 2010, com 4025 pessoas, a partir de 16
anos, em 11 capitais brasileiras. Boa parte das perguntas também foram
feitas em 1999, o que permite a comparação e mostra menos brasileiros se
importando com direitos de suspeitos, acusados e condenados. Uma das
questões, por exemplo, perguntava se um policial pode “invadir uma
casa”, “atirar em um suspeito”, “agredir um suspeito” e “atirar em um
suspeito armado”. A maioria das pessoas continua discordando totalmente
nas três primeiras sentenças, mas houve grande queda dos que discordam.
Em 1999, 78,4% discordavam totalmente sobre invadir uma casa; em 2010, o
número caiu para 63,8%. Na primeira pesquisa, 87,9% discordavam
totalmente sobre atirar em um suspeito; o que caiu para 68,6%. Em 1999,
88,7% eram totalmente contra a polícia agredir um suspeito; número que
caiu para 67,9%; e 45,4% eram contra atirar em um suspeito armado, o que
caiu para 38%. Outra questão era se um policial poderia bater em um
preso que tentara fugir. Em 1999, 61,5% discordavam totalmente, número
que caiu para apenas 34,8%.
Mudanças também em dados relacionados à Justiça. Embora a grande
maioria, quase 80%, se oponha à tortura, quando perguntados se a Justiça
deve aceitar provas obtidas por tortura, apenas 52,5% discordaram
totalmente e 18,1% discordaram em parte. Em 1999, 71,2% discordavam
totalmente e 5,5% discordavam em parte. Pode-se dizer neste caso, e em
outras questões, que não aumentou o número de pessoas que concordam com a
suspensão de direitos, mas que elas já não têm a mesma firmeza na
defesa deles. Na afirmação “nenhum crime justifica pena de morte”, por
exemplo, caíram 5% os que concordavam totalmente; número exato do que
aumentou os que “concordam em parte”. Ou seja: não aumentou o número de
pessoas a favor da pena de morte, apenas as pessoas contrárias à pena
capital já não têm a mesma certeza.
Sobre penas, a pesquisa também fez perguntas que não haviam sido feitas
em 1999, o que não permite a comparação mas, ainda assim, reforça a
tendência que mostramos acima. A pesquisa sugeriu penas para
determinados tipos de crime como “sequestro”, “estupro”, “corrupção”,
entre outros. Na grande maioria dos crimes, mais da metade dos
brasileiros optou pelas três penas não previstas pela Constituição que
constavam entre as opções: pena de morte, prisão perpétua e prisão com
trabalhos forçados. Além disto, mais de 60% dos entrevistados acredita
que o Judiciário “se preocupa demais com os direitos dos acusados”.
Preocupação com segurança é um dos fatores, diz senador
Para o presidente da Comissão de Direitos Humanos do Senado, Paulo Paim
(PT-RS), os dados são motivados pela preocupação dos brasileiros com
segurança. “Qualquer pesquisa que se realize hoje sobre as prioridades
dos cidadãos, as pessoas vão dizer que se preocupam com três coisas:
educação, saúde e segurança. Com este medo permanente as pessoas
defendem medidas mais radicais e não percebem que violência gera cada
vez mais violência. Não surpreende os dados da pesquisa e não tenho
dúvida de que para crimes hediondos vai se apoiar cada vez mais a pena
de morte. A tendência das pessoas é achar que isto vai resolver, mas não
vai. Temos que investir em educação, informação, saúde e distribuição
de renda”, conclui o senador.
“Basicamente, acho que é a cultura do medo que vai aumentando o
aceitamento de repressão – e esvaziando o direito de defesa”, afirma
Marcelo Semer, juiz de direito e ex-presidente da Associação Juízes para
a Democracia. O magistrado alerta para o fato de que, muitas vezes, o
apoio à repressão policial é abstrato e a opinião muda quando se
presencia uma cena de violência. “As pessoas podem achar, abstratamente,
que aceitam mais a violência policial, mas se comovem quando a veem.
Lembre-se que foi a exposição das cenas da violência policial na Favela
Naval (em Diadema-SP), transmitida pela TV, que galvanizou apoio à
criação do crime de tortura”, diz.
Meios de comunicação têm relação com resultado da pesquisa, acredita professor da USP
O sociólogo, jornalista e professor de Comunicação da USP, Laurindo Leal
Filho, acredita que os programas policialescos da televisão têm
influência sobre o resultado da pesquisa. “A gente não tem estes dados,
mas dá para intuir que têm uma relação muito próxima. Estes programas
sempre existiram na televisão brasileira, mas de dez anos para cá,
aumentou o número significativamente. Só em Salvador, no horário de
almoço, há programas assim em três emissoras diferentes”, exemplifica.
Laurindo analisa que a apresentação de crimes sem contextualização gera
uma banalização da violência. “Isto cria um clima de banalização da
violência. A violência passa a se tornar rotineira, porque é apresentada
como rotineira, sem causa, sem consequências”, afirma. Além disto, o
pesquisador destaca que há uma figura padrão do apresentador destes
programas – que geralmente exalta a violência como forma de reprimir a
violência.
Os próprios jornalistas nestes programas também costumam atropelar os
direitos das pessoas, com auxílio, muitas vezes, das autoridades
públicas. “O jornalista age como justiceiro. Age como polícia e Justiça.
Acompanha a ação policial, interroga, julga”, diz o professor.
“A imprensa joga com isso com frequência e não são apenas os ‘programas
policialescos’. O sensacionalismo do Jornal Nacional, por exemplo, com
as matéria de crime é atroz. De uma maneira geral, a imprensa perdeu os
pudores de estimular a sensação de medo. Quando o pânico é instaurado,
qualquer solução para resolvê-lo parece razoável”, afirma Marcelo Semer.
O senador Paulo Paim, por sua vez, critica programas que usam a
violência como forma de lucrar, mas ressalta que não se pode “ir na
linha da censura”. Para ele, é preciso trabalhar no sentido de difundir
opiniões contrárias, que propaguem a não-violência. “Temos que mudar a
cultura das pessoas. Mostrar que a violência permanente nos meios de
comunicação não soma nada. Temos que trabalhar a cultura da paz, da
não-violência, da solidariedade”.
“Há um nítido esvaziamento da ideia de defesa”, afirma juiz
Para Marcelo Semer, não há apenas a difusão da ideia de que o crime
precisa ser combatido de forma violenta, mas também uma minimização do
direito de defesa. “Há um nítido esvaziamento da ideia de defesa, que
passa por um certo moralismo do senso comum, também estimulado pelos
meios de comunicação”, diz.
Os exemplos que Semer dá estão na ordem do dia, como o desrespeito do
direito ao silêncio que tem se observado na CPI do Cachoeira. “O direito
ao silêncio é tratado como se fosse uma malcriação; o sigilo da
intimidade como a proteção do ilícito (‘quem não deve não teme’), a
escolha de um advogado como um ilícito. Há nitidamente a criação, por
parte da imprensa, e também dos políticos que passam a definir suas
políticas por ‘pesquisas de opinião’, de um novo macarthismo: a todo
momento queremos expor nomes e listas de quem não cumpre suas funções ou
tem processos, ou foi ‘citado’ em inquéritos e aí por diante. Somos
levados a acreditar que isso vai nos salvar de algo, mas apenas nos
enreda ainda mais na cultura da perseguição, delação e preconceito”,
opina.
Semer ressalta que o comportamento dos juízes, em geral, não embarca
nesta onda. “Felizmente, o papel do juiz, neste campo, é
contramajoritário. Não se julga direito penal por pesquisa de opinião. E
a democracia não é apenas o governo da maioria, mas, sobretudo, o
respeito aos direitos individuais, mesmo contra a vontade da maioria.
Espanta-me quando a sociedade passa a aceitar tais restrições à defesa;
mas apavora mesmo quando os operadores do direito começam a se convencer
disso”, diz.