Hermenêutica
A arte de interpretar o sentido da palavra do autor
Josué Cândido da Silva*
Especial para a Página 3 Pedagogia & Comunicação
Hermenêutica remete ao deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses
É comum ouvirmos os jovens se queixando da falta de compreensão dos pais e os pais, por sua vez, dizerem que não entendem seus filhos. Se problemas de compreensão surgem até mesmo entre pessoas de uma mesma família, o que dizer de pessoas afastadas de nós por centenas ou milhares de anos? Como podemos ter certeza de que estamos interpretando Platão ou uma passagem do Evangelho segundo a intenção de seu autor? Tais problemas constituem o objeto de investigação da hermenêutica.
O termo "hermenêutica" remete ao deus grego Hermes, o mensageiro dos deuses, aquele que traz notícias. O hermeneuta seria aquele que tanto transmite quanto interpreta uma mensagem, já que não é possível separar uma coisa da outra. Por conseguinte, hermenêutica seria a arte de interpretar o sentido da palavra do autor, principalmente de textos clássicos.
Para o filósofo Wilhelm Dilthey (1833-1911) a pergunta fundamental da hermenêutica é: "como é possível o compreender?" Ou seja, o que me torna capaz de compreender o que outra pessoa disse ou "quis dizer"? No caso das ciências da natureza, a interpretação do cientista é algo a ser anulado para deixar os fatos falarem por si mesmos, de modo a garantir a objetividade do conhecimento. Nas ciências humanas, ocorre o processo inverso, é justamente a vivência do sujeito que permite atribuir uma significação aos acontecimentos.
Compreendendo a mim e aos outros
Cada um de nós atribui um significado às nossas vivências construindo a nossa biografia individual, que é o que permite que eu me reconheça quando olho as fotos de minha infância, por exemplo. É também a minha biografia individual que permite que eu estabeleça uma conexão entre a vivência individual e a existência coletiva, o que possibilita que eu compreenda os outros da mesma forma com que compreendo e interpreto as minhas próprias vivências.
Por exemplo, que se estivesse no lugar de outra pessoa em uma determinada situação teria feito isto ou aquilo. Ao observar o modo de agir de alguém, eu posso compreender não só o que ele está fazendo, mas também o sentido possível de sua ação, isto é, o que o sujeito pretende ao realizar tal ação. Da mesma forma, quando observo a expressão de alguém, posso inferir se ela está triste, preocupada etc.
Além do agir e da expressividade, a linguagem constitui o principal meio para se compreenderem as manifestações vitais. É através dela que as vivências se exteriorizam permitindo que se tornem comuns, constituindo nosso mundo cultural. As vivências são, portanto, o que possibilita nossa compreensão mútua, que nem sempre está isenta de mal-entendidos.
Validade da interpretação
Como as pessoas interpretam os eventos segundo suas vivências, estas nem sempre correspondem as de outras gerações ou culturas, levando aos erros de interpretação. O problema está, portanto, em estabelecer parâmetros para saber quais interpretações são válidas e quais não são. Sem tais parâmetros, poderíamos acabar achando que qualquer interpretação sobre um fato social ou histórico seria igualmente válida.
Um outro complicador nessa questão é que, ao contrário das ciências naturais em que há a possibilidade de se repetir um experimento, nas ciências humanas não há como "provar" que a interpretação é correta. Não se pode, por exemplo, consultar os que já estão mortos para saber se concordam com a nossa interpretação, ou mesmo garantir que um entrevistado esteja dizendo a verdade ao falar sobre suas memórias ou experiências.
Um parâmetro sugerido pelo filósofo Jürgen Habermas para garantir a objetividade de uma interpretação seria, além do uso de métodos reconhecidos pela comunidade de historiadores ou cientistas sociais, a justificativa do intérprete por ter escolhido essa hipótese e não aquela, além da explicitação dos pressupostos dos quais partiu.
"Círculo virtuoso"
Nas ciências humanas assim como nos diálogos cotidianos permanece sempre aberta a possibilidade de demonstrar argumentativamente as razões para se compreender algo desta ou daquela maneira. Através da crítica de outros estudiosos, podemos melhorar nossa compreensão do objeto e reconstruir a teoria em um processo contínuo.
Tal processo foi denominado por Dilthey de "circulo virtuoso" em que partimos de uma compreensão provisória do objeto, confrontamos os dados com a compreensão que tínhamos dele e alargamos nossa compreensão.
Isso tudo permite que nós, seres humanos, possamos compreender melhor a nossa arte, história, cultura e sociedade e se não resolve o problema da comunicação entre pais e filhos, ou entre povos de diferentes culturas, pelo menos nos permite entender porque isso acontece.
*Josué Cândido da Silva é professor de filosofia da Universidade Estadual de Santa Cruz em Ilhéus (BA).
*aartedoslivrespensadores