No dia 24 de março, o Brasil apoiou a resolução do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que instituiu um Relator Especial para investigar a situação no Irã. Esse tipo de relator sobre um país específico, do ponto de vista simbólico, representa o nível mais alto de questionamento sobre o estado dos direitos humanos. Para se ter uma ideia, apenas oito países estão sujeitos a esse tipo de escrutínio.
Se excluirmos o Haiti, cuja inclusão se deve sobretudo aos efeitos de catástrofes naturais e contou com o apoio do próprio governo de Porto Príncipe, todos os demais (Camboja, Mianmar, Somália etc.) foram palco de tragédias humanitárias graves. São em geral países muito pobres, ditos de menor desenvolvimento relativo, em que o Estado, seja por incapacidade (Burundi, Haiti), seja em razão de sistemas políticos autocráticos (Coreia do Norte, Myanmar), não atende minimamente às necessidades dos seus cidadãos.
Mesmo países, certa ou erradamente, considerados pelas potências ocidentais como ditaduras (Cuba, China e Líbia, antes dos últimos acontecimentos) ou que passaram a ser qualificados como tais recentemente (Egito e Tunísia, antes da Revolução do Jasmim) não fazem parte dessa lista infamante. Noto, a propósito, que um recente artigo publicado no Herald Tribune dava conta da opinião de um ex-diplomata norte-americano sediado em Teerã de que haveria no Irã mais elementos de democracia do que no Egito de Mubarak, então apontado como exemplo de líder árabe moderado. Que eu me recorde, o Irã é o único país que poderia ser classificado como uma potência média que está sujeita a esse tipo de escrutínio. Não procedem explicações que procuram minimizar a importância da decisão com comparações do tipo: “O Brasil também recebe relatores” ou “não houve condenação”.
Não há como comparar os relatores temáticos que têm visitado o Brasil com a figura de um relator especial por país. Na semiologia política do Conselho de Direitos Humanos e de sua antecessora, a Comissão, a nomeação de um relator especial (ressalvados os casos de desastres naturais ou situações pós-guerras civis, em que o próprio país pede ou aceita o relator) é o que pode haver de mais grave. Se não se trata de uma condenação explícita, implica, na prática, colocar o país no banco dos réus. Quando fui ministro do presidente Itamar Franco, viajei a Cuba com uma carta do nosso chefe de Estado, a qual, além de referir-se à ratificação do Tratado de Tlatelolco, sugeria que Cuba fizesse algum gesto na área de direitos humanos.
Cuba admitiu convidar o Alto Comissário das Nações Unidas para o tema, mas recusou-se terminantemente a receber o relator especial sobre o país. Conto isso não para justificar a atitude de Havana, mas para ilustrar a reação que desperta a figura do relator especial. Não cabe assim diminuir a importância do voto da semana passada. Pode-se concordar ou não com ele, mas dizer que não afetará as nossas relações com Teerã ou a percepção que se tem da nossa postura internacional é tapar o sol com a peneira.
Nos últimos meses e anos, o Brasil participou de várias ações ou empreendeu gestões que resultaram na libertação de pessoas detidas pelo governo iraniano, tanto estrangeiros quanto nacionais daquele país. É difícil determinar qual o peso exato que nossas démarches tiveram em situações como a da norte-americana Sarah Shroud ou do cineasta Abbas Kiarostami. No primeiro caso, a jovem alpinista veio nos agradecer em pessoa. Em outros casos, como a da francesa Clotilde Reiss, não hesito em afirmar que a ação brasileira foi absolutamente determinante. Mesmo no triste caso da mulher ameaçada de apedrejamento, Sakineh Ashtiani, os apelos do nosso presidente, seguidos de várias gestões no meu nível junto ao ministro do Exterior iraniano e ao próprio presidente Ahmadinejad, certamente contribuíram para que aquela pena bárbara não tenha se concretizado.
Poderia mencionar outros, como o do grupo de bahais, cuja condenação à morte parecia iminente. Evidentemente, tais ações só puderam ser tomadas e só tiveram efeito porque havia um certo grau de confiança na relação entre Brasília e Teerã, grau de confiança que não impediu que o presidente Lula tenha demonstrado ao presidente iraniano o absurdo de suas declarações que negavam a existência do Holocausto ou que propugnavam pela eliminação do Estado de Israel. Parece-me muito improvável que o governo brasileiro se sinta à vontade para esse tipo de démarche depois do voto do dia 24. Ou caso se sinta, que os nossos pedidos venham a ser atendidos. Muito menos terá o Brasil condições de participar de um esforço de mediação como o que empreendemos com a Turquia, em busca de uma solução pacífica e negociada para a questão do programa nuclear iraniano (o que, certamente, fará a alegria daqueles que desejam ver o Brasil pequeno e sem projeção internacional). Oxalá eu esteja errado.
Celso Amorim
*cartacapital
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