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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, setembro 17, 2011

Por que as dívidas dos países europeus interessam aos Brics

Durante uma semana de caos nos mercados de valores europeus, acumularam-se vários sinais de uma possível intervenção dos países emergentes na Europa. Tudo começou com uma informação confidencial do "Financial Times" na segunda-feira (12), indicando que o presidente do fundo soberano chinês China Investment Corp (CIC) e altos funcionários de Pequim haviam estado na Itália na semana passada. Depois, na terça-feira, o jornal brasileiro "Valor Econômico" evocou a possibilidade de uma intervenção do gigante sul-americano, enquanto o ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciava que seus homólogos dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) se reuniriam no dia 22 em Washington, à margem de uma reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI), para discutir a ajuda que poderão dar à Europa.
Qual o interesse econômico dos Brics?
A tempestade que atravessam atualmente os países membros da zona do euro preocupa todos os continentes, incluindo América e Ásia. A crise de 2008 e o efeito dominó da queda do banco Lehman Brothers marcaram os espíritos. Nenhum país quer que tal cenário se repita: a União Europeia, principal parceiro comercial da China, é um mercado crucial para suas exportações. Ora, se uma recessão europeia afetasse a China, esta também repercutiria na Índia e no Brasil, que têm laços econômicos muito estreitos com a China. Pequim é, por exemplo, o maior parceiro econômico do Brasil, com US$ 56,2 bilhões de trocas bilaterais em 2010.
Para esses países emergentes, investir nos títulos da dívida europeia também é um meio de diversificar suas aplicações. A China possui as maiores reservas cambiais do mundo: US$ 3,2 trilhões. A Rússia dispõe de US$ 514 bilhões, o Brasil de mais de US$ 350 bilhões e a Índia, mais de US$ 320 bilhões. Esses fundos são essencialmente investidos em bônus do Tesouro americano, de onde o interesse atual em variar suas posições dando apoio à moeda única europeia.
O objetivo é principalmente monetário: ao apoiar o euro diante do dólar e investir suas reservas cambiais, os Brics buscam evitar uma alta exagerada de suas respectivas moedas. "Enquanto a China compra dívida em euros, visa na verdade as taxas de câmbio", escreve o analista e financista Cullen Roche no blog Pragmatic Capitalism. "Trata-se de uma tentativa de manter o euro forte, o que favorece as relações comerciais [da China] com a Europa."
Enfim, os Brics ainda dependem amplamente dos investimentos dos países de desenvolvimento mais antigo: na Índia, por exemplo, os investimentos diretos estrangeiros (IDE) dos países-membros da UE representam mais de 20% dos IDE. Se uma crise mundial provocasse uma retirada desses investidores, causaria pânico em nível nacional.
O objetivo também é político?
Enquanto não vemos surgir uma resposta concertada do tipo G20 para a crise de liquidez da zona do euro, como depois da queda do Lehman Brothers em 2008, a reunião dos Brics na próxima semana em Washington pode dar a impressão de que foi dada uma resposta coletiva. O "Valor Econômico" resume assim os benefícios políticos para os Brics de uma tal intervenção: "Aparecer publicamente como contribuintes diretos para a estabilização dos mercados e mostrar a que ponto o equilíbrio da economia mundial mudou".
De seu lado, Pequim tem um interesse bem particular em consolidar seus investimentos na Europa, formulado na quarta-feira pelo primeiro-ministro Wen Jiabao: "Espero que os dirigentes europeus encarem com coragem sua relação com a China". Concretamente, a China espera que a UE, em troca de compras de títulos em euros, lhe conceda o estatuto de economia de mercado, antes do reconhecimento previsto pela Organização Mundial do Comércio em 2016. Essa posição permitiria, com efeito, suspender as últimas restrições sobre os investimentos e as exportações chinesas na UE.
Dificuldades a superar
Os Brics não são um grupo de países homogêneo: entre o modelo econômico russo e o indiano existe um abismo. A política monetária chinesa com seu iuane subvalorizado é, aliás, uma fonte de atritos recorrentes para seus parceiros. As exportações chinesas baratas também dizimaram o setor manufatureiro brasileiro e o têxtil da África do Sul. Os Brics ainda não conseguiram agir com um mesmo elã. Eles foram notadamente incapazes de se entender para apresentar um candidato comum para suceder a Dominique Strauss-Kahn na chefia do FMI.
Parece que o Brasil é o país mais motivado para ajudar a Europa. A China já investiu dezenas de bilhões de dólares em títulos das dívidas grega, portuguesa e espanhola, e impõe diversas condições para um novo envolvimento. A Índia, cujos 20% dos créditos são constituídos de obrigações europeias, deseja manter essa proporção, indicou na quarta-feira um responsável indiano à agência Reuters. Déli considera com ceticismo uma resposta centrada somente nos Brics e preferiria uma intervenção maior do FMI, analisa o "Financial Times". A Rússia, por sua vez, mostrou-se muito cética, e autoridades indicaram à AFP na quarta-feira que as demandas de compras de títulos em euros seriam estudadas caso a caso.
Pois esses países devem convencer sua opinião pública da racionalidade desses investimentos. O fundo chinês CIC foi particularmente criticado por ter investido maciçamente em Wall Street antes de 2008, em títulos que despencaram. A China está, portanto, em busca de investimentos seguros. Assim como o Brasil, cujo diretor de política monetária do Banco Central, Aldo Mendes, esfriou o entusiasmo do ministro da Fazenda Mantega, indicando na terça-feira que "o objetivo principal de nossa política de investimento é a segurança".
Quais são os cenários possíveis?
A opção mais provável é que os Brics entrem em acordo para comprar uma quantidade mínima de títulos em euros, com grande esforço de comunicação. O objetivo seria demonstrar um apoio simbólico, e até injetar otimismo no mercado europeu moribundo. Para o "Valor Econômico", o investimento poderia ser ainda mais moderado e envolver as dívidas de países mais seguros, principalmente Alemanha e Grã-Bretanha.
A reunião que se realizará no dia 22 será em todo caso observada com grande interesse. O apoio dos Brics à dívida dos países europeus é um "desenvolvimento interessante", indicou na quarta-feira a diretora-geral do FMI, Christine Lagarde, ao jornal italiano "La Stampa". "Mas se eles se limitarem a comprar títulos considerados seguros por todos, como os alemães ou britânicos, não assumirão muitos riscos. Minha esperança é que se ocorrerem intervenções desse gênero elas sejam grandes e não se limitem aos títulos seguros de alguns países."
Mathilde Gérard
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
No Le Monde Diplomatique
*comtextolivre

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