Não é exagero dizer que a maconha (Cannabis sativa) está entre as mais antigas plantas cultivadas pelo homem e entre os mais úteis e antigos remédios conhecidos. Há mais de cinco mil anos, de leste a oeste da estepe asiática, mais ao sul, da antiga Mesopotâmia até a Índia, assim como no norte da África, a Cannabis já era cultivada para suprir as mais diferentes necessidades.
Os mais antigos escritos da Humanidade vieram da Mesopotâmia, ali foram encontrados tabletes de argila de mais de quatro mil anos, pertencentes à Biblioteca Sagrada do Rei Assurbanipal, os quais continham milenares receitas de “poções mágicas” compiladas por sacerdotes sumérios contra as mais diversas doenças. Em um desses livros, chamado “Quando o Cérebro do Homem Tem Fogo” encontram-se receitas para curar males do cérebro e da mente. Algumas incluem maconha e serviam para febres e dor de cabeça, e outras tratavam males com estranhas denominações, tais como “Mão de Fantasma na Têmpora”. Estes são, provavelmente, os mais antigos registros de fármacos de que se tem notícia.
O segundo pergaminho mais antigo do Egito, de 3.000 aC, trás o uso da maconha para facilitar o trabalho de parto, como antisséptico e como ingrediente de remédio para os olhos. Na mais antiga farmacopeia Chinesa, compilada a partir de tradições milenares, a maconha aparece para o tratamento de problemas associados a menstruação, dor reumática, malária, constipação e falta de concentração. Os pioneiros da cirurgia chinesa também usavam maconha misturada ao vinho como anestésico. Na Índia, a planta sagrada do Hinduísmo, preferida de Shiva, era usada para finalidades medicinais e existenciais: contra dores, espasmos e convulsões do tétano e da epilepsia ou para o “aumento da coragem, do regozijo e da libido”.
Na Pérsia, a Cannabis também era reconhecida como planta sagrada e medicinal e, assim como na Índia e na China, sabia-se que seu uso abusivo por período prolongado faz com que perca suas funções benéficas e tenha alguns de seus efeitos invertidos. Apesar de seu uso milenar por xamãs, curandeiros, sacerdotes e pessoas comuns no mundo oriental, a Europa antiga e medieval não conhecia os efeitos medicinais e psicoativos da maconha, embora a fibra da planta fosse imprescindível para as atividades de construção civil, tecelagem e navegação. Isto se dava por conta do ambiente frio e úmido que não favorecia a produção da resina protetora da planta, onde são encontradas as substancias que possuem propriedades farmacológicas – os chamados canabinóides.
Foi apenas no final do século XIX, quando da ocupação da Índia pelo Império Britânico, que um médico Irlandês, William Brooke O'Shaughnessy (1809-1889), descobriu tais propriedades. Naquela época, os europeus padeciam com sintomas severos de doenças infecciosas como o tétano e a cólera, para os quais desconheciam tratamento. Na índia, entretanto, O'Shaughnessy ficou extremamente impressionado com os efeitos da maconha. Em especial, chamou-lhe a atenção as propriedades de alivio multi-sintomático, capazes de reduzir dores severas, febre, inflamação, náuseas, vômitos, tremores, espasmos e convulsões. O conjunto dos efeitos era extraordinário por esses serem carreados em uma única planta e de forma tão eficiente. Além disso, cabe destacar que a maconha é, quase certamente, o primeiro composto anticonvulsivante descoberto pelo homem.
Ao voltar para a Inglaterra, O'Shaughnessy realizou estudos para sistematizar o uso medicinal da planta no ocidente onde, de forma arrebatadora, a maconha passou a ser um dos mais importantes componentes de toda a indústria farmacêutica. Assim, desde o fim do século XIX até meados da década de 1930, xaropes a base de maconha eram usados para tratar delirium tremens (abstinência de álcool), dores severas (enxaqueca, dor de dente, nevralgia, câncer, etc), artrite, reumatismos, gota, epilepsia, cólicas menstruais, TPM, depressão, náuseas, febre, resfriado e muitos outros males.
Em 1937, entretanto, após uma absurda campanha difamadora, o uso medicinal da maconha foi inviabilizado pelo Governo Federal norte americano que, na falta de evidencias científicas contra seu uso, fez valer o poder da Receita Federal para impor requisitos impraticáveis e taxas impagáveis aos médicos que quisessem continuar receitando-a. Jamais houve qualquer reunião de médicos e cientistas que decidiram que a maconha era mais prejudicial que outras drogas e, portanto, deveria ser proibida. As motivações foram políticas e econômicos de diversas matizes, mas nenhuma tinha relação com possíveis problemas causados pelo abuso – que são relativamente moderados se comparados aos do álcool, por exemplo.
A partir de 1940, a maconha ganhou status de substancia proscrita em todo o mundo. Em consequência, toda a pesquisa em torno de suas propriedades medicinais foi radicalmente dificultada, sobretudo nos Estados Unidos. Em Israel, no entanto, uma visão mais pragmática permitiu que as pesquisas prosseguissem, de modo que, na década de 60, o grupo de Rafael Mechoulan isolou o THC, principal componente psicoativo da maconha.
Até o final da década de 80, não se sabia exatamente como a maconha produzia seus efeitos. Dizia-se, sob influencia dos estigmas criados, que seus princípios ativos causavam desorganização aleatória da função neuronal. Entretanto, descobriu-se que o cérebro possui receptores nos quais os componentes da maconha se ligam especificamente. Receptores funcionam como fechaduras da ignição, sendo que as “chaves” são substâncias que a ele se ligam para modular o funcionamento dos neurônios. Mais tarde, o mesmo grupo israelense isolou as “chaves” produzidas pelo próprio cérebro – os chamados endocanabinóides.
Hoje em dia sabe-se que os endocanabinóides normalmente protegem o cérebro contra ativação descontrolada e regulam funções fundamentais para a integração do equilíbrio orgânico e mental, incluindo percepção sensorial, atenção, cognição, emoções, sensação de dor, inflamações, resposta imune, metabolismo, apetite, ciclo celular, interação social, entre outras funções vitais.
A maconha possui quase cem variedades de canabinóides que imitam os endocanabinóides do nosso cérebro, juntos estes componentes possuem mais de 20 propriedades farmacológicas comprovadas. Estimulam o apetite, a percepção lúdica dos sentidos, a afetividade, a sensualidade e a sexualidade; inibem dores severas, náuseas e vômitos; inibem a formação e a proliferação de tumores benignos e malignos, protegem os neurônios da toxicidade causada por excesso de ativação ou por reações inflamatórias neuro-degenerativas (como Alzheimer); inibem convulsões e espasmos e reduzem a febre. Sua ação neuroprotetora e inibitória da ativação neuronal caótica, trás muita esperança para formas severas de epilepsia e autismo.
A capacidade de inibir metástases e até causar a regressão de câncer é um fato extraordinário desconhecido pela sociedade e escandalosamente negligenciado pelas autoridades. Óleos produzidos diretamente da planta, princípios isolados, ou mesmo material vegetal in natura, todos são recursos válidos no tratamento dos diversos males mencionados acima.
Não há porque ter medo ou preconceitos. As contraindicações e efeitos colaterais estão sempre associados à fase de desenvolvimento do paciente e à concentração dos componentes. Plantas com excesso de THC e pouco canabidiol, por exemplo, podem causar ansiedade e estados paranóides, que podem desencadear surtos em pessoas com tendência familiar à esquizofrenia ou na fase pró-drômica da doença (menos de 1% da população). De uma forma geral, este perfil de composição também é inadequado ao uso por gestantes, crianças e jovens em crescimento. Porém, em um contexto regulamentado, onde diversas linhagens padronizadas de plantas, com diferentes concentrações de canabinóides, podem ser produzidas, a relação custo-benefício para inúmeros casos, envolvendo os mais severos sofrimentos, é simplesmente revolucionária.
*Artigo publicado na revista de Consulex de Consultoria Jurídica em Abril de 2014-
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