Os Abutres contra a Copa do Mundo
Futebol Passarinho
A realização da Copa do Mundo no Brasil despertou uma grotesca procissão – cada vez mais enfadonha – de abutres e coveiros do Brasil em todas as frentes e latitudes. Erguendo uma verdadeira cortina de fumaça com seus incensórios e turíbulos para dominar a pauta e a percepção do momento, este variegado cortejo reúne de tudo.
Direto do blog da boitempo por Por Flávio Aguiar.*
Conduzindo a custódia, vêm os que querem
derrubar ou derrotar o governo. São de dentro e de fora do país,
liderados neste pelos arautos da velha mídia, e lá pelos cardeais da
City londrina, The Economist e Financial Times, ladeados por bispos e
arcebispos como El País, El Mercurio, et alii. Em suas orações às vezes
suplicantes, às vezes raivosas, alimentam a crendice de que a Copa pode
ajudar a reeleger ou deseleger Dilma Rousseff em outubro. Esta ortodoxia
se baseia em outra superstição, a de que nosso povo é despreparado para
a democracia porque vota com os pés ou o estômago – não com a cabeça ou
o coração. (Os mais ricos, pelo menos, têm o privilégio de votar com os
bolsos e as bolsas).
Esta superstição tem uma variante à
extrema-esquerda, qual seja, a de que as massas são sempre
despreparadas, e que precisam de uma vanguarda lúcida para iluminar-lhes
o caminho. O governo é o Anti-Cristo que deve ser eliminado, para que a
verdadeira luz possa chegar aos fiéis. Então, dá-lhe foguetório e até
louvação dos coquetéis molotovs dos black blocs, além das pedradas,
sejam contra vitrines bancárias ou a Embaixada do Brasil em Berlim.
Mas há também o coro dos sacristãos.
Dispersos pelo mundo inteiro, no nosso país ou pontificando na mídia
europeia, nunca se viram tantos doutos intérpretes do Brasil. Qualquer
jeguelhé joga suas jeguelhadas sobre a nossa “cultura da corrupção”, o
nosso incurável pendor para a “violência”, para depender de “favores”, a
nossa crônica “homofobia”, o nosso empedernido “machismo”, a nossa
proverbial incompatibilidade com o “moderno”, o nosso sempiterno
“racismo”, a nossa tara da “escravidão”, nossa inamovível “pobreza”,
“falta de cultura”, “falta de projeção mundial”, onde se ajuntam nossa
incapacidade para ganhar um prêmio Nobel, nossa música que “não têm o
mesmo alcance mundial da salsa ou do reggae” (sic), e por aí se vai.
Conforme o ângulo de onde fala o distinto se multiplicam os pronomes
“nós” (a propósito, nós quem, cara-pálida?) ou o substantivo plural e
coletivizado “os brasileiros”. Não se trata de negar que aquelas mazelas
existam em nosso país. Mas as marteladas são tais que deixam a
conotação de que ele é a cloaca do mundo, e que elas são nosso
patrimônio exclusivo.
Assim, um país de 200 milhões de
habitantes, oito mil quilômetros de comprido por oito mil de largo, com
uma das economias mais complexas e uma cultura das mais ricas do mundo,
se vê reduzido a uns poucos lugares-comuns, repetidos ad nauseam como se
fossem grandes originalidades, descobertas, quando na verdade
simplesmente invertem disforicamente a perspectiva dos outros lugares
comuns – os eufóricos – da cordialidade, índole pacífica, democracia
racial, etc. etc. etc. Estas ou estes vestais do templo jornalístico
acham que estão inventando, em seu laboratório, o “verdadeiro” Brasil,
quando de fato fazem parte simplesmente do ciclo que a medicina antiga
chamava de “maníaco-depressivo”. Tenho, inclusive a certeza de que
aqueles defeitos de nosso “caráter” desaparecerão de muitos dos
discursos como por encanto em novembro, caso alguma oposição vença em
outubro.
E no passar da procissão sobem aos céus –
ou descem aos infernos – as comparações absurdas, como as do momento
atual com a ditadura de 1970; ou as inverdades marteladas, como a de que
é a Copa que está roubando dinheiro da educação e da saúde (ao invés do
superávit primário e da queda da CPMF); levantam-se os estandartes
oportunistas anti-Copa, juntando-se a reivindicações legítimas em campos
como educação, saúde, etc., ajudando a esvaziá-las, em troca de quinze
letras ou quinze segundos de fama nas manchetes ou telas nacionais e
internacionais.
Fica difícil discernir o real para além
deste fumacê de crendices. Mas num raro momento em que consegui me
desligar desta atmosfera asfixiante, por uma nesga da cortina tive uma
visão deslumbrante (já que para estes sacerdotes do caos devo ser um
destes caiporas, que pensa com os pés, embora eu tenha sido goleiro, ao
invés do cérebro e do miocárdio). De repente, num estalo de Vieira, vi
que no dia 13 de julho, em pleno Maracanã, alguém vai erguer a taça aos
céus, renovando mais uma vez a sua consagração, oficiada por Bellini
naquele 29 de junho de 1958, no estádio Rasunda, em Estocolmo, na
Suécia.
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Como acontecia na época, ouvi tudo pelo
rádio e vi em fotos no dia seguinte e somente algum tempo depois pude
assistir nos cinemas a missa gloriosa daquela partida e daquele
verdadeiro gestus brechtiano, stanilavskiano, da sagração da Jules
Rimet. De fato, foi ali que o caneco ficou sendo nosso, realidade apenas
confirmada em 1970. Naquele momento houve uma verdadeira
transubstanciação (como na missa católica). Foi ali num gesto que
começou prosaico (“mostra a taça, Bellini, pra que a gente consiga fazer
uma foto melhor”, pediram os jornalistas) e se transformou no gestus
teatral que transformou a Taça Jules Rimet ou do Mundo no imortal Caneco
do Brasil. Dali pra frente, em qualquer arena, em qualquer parte do
mundo, da várzea mais pobre ao estádio mais suntuoso, espraiou-se o
gesto de erguer a taça da vitória. Foi ali, naquele gestus, que a taça
se transfigurou em cálice, cheio de sangue, suor e lágrimas, o sangue e o
suor que se dão dentro das quatro linhas, e as lágrimas da vitória ou
da derrota, como as que foram derramadas em 29 de junho de 1958, em
Rasunda, ou em 16 de julho de 1950, no Maracanã.
Isto porque o futebol tem algo de muito
parecido com a situação de dois amantes. Por mais história anterior que
haja, condições de vida e condicionamentos anteriores, labirintos
percorridos ou expectativas de caminhos futuros, oposições familiares ou
cumplicidade de amigos, egos e superegos a equilibrar e a vencer, etc.,
etc., etc., sempre há o momento em que os amantes estão frente a
frente, fechados no círculo sagrado do imortal gestus amoroso, tenha
este círculo o formato que tiver: cama, tapete, sofá, esquina, degrau de
escada, chuveiro, não importa.
No futebol há a mesma magia da presença
de um espaço do sagrado. Por mais distâncias geográficas, sociais,
políticas, culturais e outras que os times oficiantes percorram, por
mais cartolas que haja, tudo se fecha naqueles momentos “dentro das
quatro linhas” em que os oficiantes – jogadores, técnicos, bancos de
reservas, massagistas, etc., torcidas e até gandulas, juízes e
bandeirinhas, vão se medir e oficiar o sagrado rito da vitória, derrota
ou empate.
A transubstanciação simbólica se confirma
pela mudança de gênero e de registro linguísticos, que nada tem a ver
com machismo, sexo ou preconceito: a taça aristocrática passou a ser o
caneco popular. Aliás, se a gente olhar bem, dá para ver que a forma
exterior daquela Jules Rimet tinha menos a ver com uma genérica caneca
do que com um caneco – definido como uma “caneca alta e estreita”
(Houaiss). Daí pra frente, não importava o formato do troféu: o vencedor
“levava o caneco pra casa”. E ainda leva. E vai levar, pelos séculos
dos séculos, amém.
Flávio Aguiar.*
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
*http://meublogdepolitica.wordpress.com/2014/06/02/os-abutres-contra-a-copa-do-mundo/
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