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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, junho 02, 2014

Os Abutres contra a Copa do Mundo


Futebol Passarinho

A realização da Copa do Mundo no Brasil despertou uma grotesca procissão – cada vez mais enfadonha – de abutres e coveiros do Brasil em todas as frentes e latitudes. Erguendo uma verdadeira cortina de fumaça com seus incensórios e turíbulos para dominar a pauta e a percepção do momento, este variegado cortejo reúne de tudo.

Direto do blog da boitempo por Por Flávio Aguiar.*

Protestos contra a Copa do Mundo
Conduzindo a custódia, vêm os que querem derrubar ou derrotar o governo. São de dentro e de fora do país, liderados neste pelos arautos da velha mídia, e lá pelos cardeais da City londrina, The Economist e Financial Times, ladeados por bispos e arcebispos como El País, El Mercurio, et alii. Em suas orações às vezes suplicantes, às vezes raivosas, alimentam a crendice de que a Copa pode ajudar a reeleger ou deseleger Dilma Rousseff em outubro. Esta ortodoxia se baseia em outra superstição, a de que nosso povo é despreparado para a democracia porque vota com os pés ou o estômago – não com a cabeça ou o coração. (Os mais ricos, pelo menos, têm o privilégio de votar com os bolsos e as bolsas).
Esta superstição tem uma variante à extrema-esquerda, qual seja, a de que as massas são sempre despreparadas, e que precisam de uma vanguarda lúcida para iluminar-lhes o caminho. O governo é o Anti-Cristo que deve ser eliminado, para que a verdadeira luz possa chegar aos fiéis. Então, dá-lhe foguetório e até louvação dos coquetéis molotovs dos black blocs, além das pedradas, sejam contra vitrines bancárias ou a Embaixada do Brasil em Berlim.
Mas há também o coro dos sacristãos. Dispersos pelo mundo inteiro, no nosso país ou pontificando na mídia europeia, nunca se viram tantos doutos intérpretes do Brasil. Qualquer jeguelhé joga suas jeguelhadas sobre a nossa “cultura da corrupção”, o nosso incurável pendor para a “violência”, para depender de “favores”, a nossa crônica “homofobia”, o nosso empedernido “machismo”, a nossa proverbial incompatibilidade com o “moderno”, o nosso sempiterno “racismo”, a nossa tara da “escravidão”, nossa inamovível “pobreza”, “falta de cultura”, “falta de projeção mundial”, onde se ajuntam nossa incapacidade para ganhar um prêmio Nobel, nossa música que “não têm o mesmo alcance mundial da salsa ou do reggae” (sic), e por aí se vai. Conforme o ângulo de onde fala o distinto se multiplicam os pronomes “nós” (a propósito, nós quem, cara-pálida?) ou o substantivo plural e coletivizado “os brasileiros”. Não se trata de negar que aquelas mazelas existam em nosso país. Mas as marteladas são tais que deixam a conotação de que ele é a cloaca do mundo, e que elas são nosso patrimônio exclusivo.
Assim, um país de 200 milhões de habitantes, oito mil quilômetros de comprido por oito mil de largo, com uma das economias mais complexas e uma cultura das mais ricas do mundo, se vê reduzido a uns poucos lugares-comuns, repetidos ad nauseam como se fossem grandes originalidades, descobertas, quando na verdade simplesmente invertem disforicamente a perspectiva dos outros lugares comuns – os eufóricos – da cordialidade, índole pacífica, democracia racial, etc. etc. etc. Estas ou estes vestais do templo jornalístico acham que estão inventando, em seu laboratório, o “verdadeiro” Brasil, quando de fato fazem parte simplesmente do ciclo que a medicina antiga chamava de “maníaco-depressivo”. Tenho, inclusive a certeza de que aqueles defeitos de nosso “caráter” desaparecerão de muitos dos discursos como por encanto em novembro, caso alguma oposição vença em outubro.
E no passar da procissão sobem aos céus – ou descem aos infernos – as comparações absurdas, como as do momento atual com a ditadura de 1970; ou as inverdades marteladas, como a de que é a Copa que está roubando dinheiro da educação e da saúde (ao invés do superávit primário e da queda da CPMF); levantam-se os estandartes oportunistas anti-Copa, juntando-se a reivindicações legítimas em campos como educação, saúde, etc., ajudando a esvaziá-las, em troca de quinze letras ou quinze segundos de fama nas manchetes ou telas nacionais e internacionais.
Fica difícil discernir o real para além deste fumacê de crendices. Mas num raro momento em que consegui me desligar desta atmosfera asfixiante, por uma nesga da cortina tive uma visão deslumbrante (já que para estes sacerdotes do caos devo ser um destes caiporas, que pensa com os pés, embora eu tenha sido goleiro, ao invés do cérebro e do miocárdio). De repente, num estalo de Vieira, vi que no dia 13 de julho, em pleno Maracanã, alguém vai erguer a taça aos céus, renovando mais uma vez a sua consagração, oficiada por Bellini naquele 29 de junho de 1958, no estádio Rasunda, em Estocolmo, na Suécia.

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Como acontecia na época, ouvi tudo pelo rádio e vi em fotos no dia seguinte e somente algum tempo depois pude assistir nos cinemas a missa gloriosa daquela partida e daquele verdadeiro gestus brechtiano, stanilavskiano, da sagração da Jules Rimet. De fato, foi ali que o caneco ficou sendo nosso, realidade apenas confirmada em 1970. Naquele momento houve uma verdadeira transubstanciação (como na missa católica). Foi ali num gesto que começou prosaico (“mostra a taça, Bellini, pra que a gente consiga fazer uma foto melhor”, pediram os jornalistas) e se transformou no gestus teatral que transformou a Taça Jules Rimet ou do Mundo no imortal Caneco do Brasil. Dali pra frente, em qualquer arena, em qualquer parte do mundo, da várzea mais pobre ao estádio mais suntuoso, espraiou-se o gesto de erguer a taça da vitória. Foi ali, naquele gestus, que a taça se transfigurou em cálice, cheio de sangue, suor e lágrimas, o sangue e o suor que se dão dentro das quatro linhas, e as lágrimas da vitória ou da derrota, como as que foram derramadas em 29 de junho de 1958, em Rasunda, ou em 16 de julho de 1950, no Maracanã.
Isto porque o futebol tem algo de muito parecido com a situação de dois amantes. Por mais história anterior que haja, condições de vida e condicionamentos anteriores, labirintos percorridos ou expectativas de caminhos futuros, oposições familiares ou cumplicidade de amigos, egos e superegos a equilibrar e a vencer, etc., etc., etc., sempre há o momento em que os amantes estão frente a frente, fechados no círculo sagrado do imortal gestus amoroso, tenha este círculo o formato que tiver: cama, tapete, sofá, esquina, degrau de escada, chuveiro, não importa.
No futebol há a mesma magia da presença de um espaço do sagrado. Por mais distâncias geográficas, sociais, políticas, culturais e outras que os times oficiantes percorram, por mais cartolas que haja, tudo se fecha naqueles momentos “dentro das quatro linhas” em que os oficiantes – jogadores, técnicos, bancos de reservas, massagistas, etc., torcidas e até gandulas, juízes e bandeirinhas, vão se medir e oficiar o sagrado rito da vitória, derrota ou empate.
A transubstanciação simbólica se confirma pela mudança de gênero e de registro linguísticos, que nada tem a ver com machismo, sexo ou preconceito: a taça aristocrática passou a ser o caneco popular. Aliás, se a gente olhar bem, dá para ver que a forma exterior daquela Jules Rimet tinha menos a ver com uma genérica caneca do que com um caneco – definido como uma “caneca alta e estreita” (Houaiss). Daí pra frente, não importava o formato do troféu: o vencedor “levava o caneco pra casa”. E ainda leva. E vai levar, pelos séculos dos séculos, amém.
Flávio Aguiar.*
Nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel. Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
*http://meublogdepolitica.wordpress.com/2014/06/02/os-abutres-contra-a-copa-do-mundo/

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