Comprar maconha para fumar não é crime. Eis a sentença!
Proceso Número: xxxxxxxxxxxxx
Autor: Justiça Pública
Réu: F.S.C
Tráfico de maconha. Desclassificação para uso próprio
pelo Ministério Público após a instrução. Inexistência de crime. Comprar e
portar maconha para uso próprio não configura crime. Inexistência de tipicidade
e inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei n° 11.343/06. Matéria em Repercussão
Geral do STF. Só pode ser punido pelo tráfico quem o pratica. A Constituição
Federal não pode ser ferida pela “guerra às drogas”. Absolvição do acusado.
A representante do
Ministério Público nesta Comarca ofereceu Denúncia contra F.S.C, qualificado
nos autos, sob alegação da prática do crime previsto na Lei n° 11.343/2006,
artigo 33, caput. Consta da Denúncia que a polícia civil estaria recebendo
denúncias anônimas acerca do comércio de drogas no Bairro da Mansão, nesta
cidade, e um policial civil acompanhado de funcionário público municipal
realizaram ronda no local; que por volta das 16 h, nas proximidades da Igreja
Assembleia de Deus, o policial abordou o denunciado, que se encontrava em
atitude suspeita, tendo sido encontrado em seu poder vinte trouxas da erva
maconha prontas para serem comercializadas. Ao final da audiência de instrução
e julgamento, a ilustre representante do Ministério Público, diferente daquela
que ofereceu a Denúncia, requereu a desclassificação do delito e condenação do
denunciado nas penas previstas para o crime do artigo 28 da mesma lei.
É o
Relatório. Decido.
De fato, após a oitiva das testemunhas e do
acusado, alternativa não resta senão desconsiderar a acusação da prática do
crime de tráfico de maconha. A prova testemunhal se resumiu ao depoimento dos
mesmos agentes que efetuaram a prisão do acusado, que observaram não ter lhe
visto vendendo maconha e que nunca ouviram falar a respeito. O acusado, de sua
vez, assumiu ser usuário e que teria comprado a maconha para seu uso próprio,
bem como informou que é serralheiro autônomo, possui todas as ferramentas do
seu ofício e que não necessita do tráfico para sua sobrevivência.
O que se discute, portanto, afastado o crime de
tráfico, é se o acusado, de fato, ao portar maconha para seu próprio consumo,
cometeu algum crime passível de punição, ou seja, comprar e portar maconha para
consumo próprio é crime? Pergunta-se!
Pois bem, ainda na vigência da Lei n° 6368/76, a
então Juíza de Direito Maria Lúcia Karam, em sentença histórica, absolveu
acusada da prática do crime previsto no artigo 16 da referida lei, flagrada com
pequena quantidade de maconha e cocaína para uso próprio, sob argumento da “falta de tipicidade penal”.
Na sentença, observou a ilustre juíza:
“É comum ouvir afirmações de que a impunidade da
posse de drogas para uso pessoal incentivaria a disseminação de tais
substâncias. Entretanto, uma análise mais racional revela que tal afirmativa
não parte de dados concretos, sendo mera suposição, suposição que também seria
possível fazer num sentido oposto, pois não é razoável pensar que a ameaça de
punição pode, não só ser inócua no sentido de evitar o consumo, como até
funcionar como uma atração a mais, notadamente entre os jovens e adolescentes,
setor onde o problema é especialmente preocupante.
Também não há dados concretos que demonstrem que
a punição do consumidor tenha alguma consequência relevante no combate ao
tráfico. A simples observação dos processos que tramitam na Justiça Criminal
permite afirmar que é raríssimo encontrar casos em que a prisão do consumidor leva
à identificação do fornecedor.
Se o consumidor pode vir a ser um traficante,
deverá ser punido no momento que assim se tornar, pois aí sim estará deixando a
esfera individual para atingir a bens jurídicos alheios, devendo a punição
alcançar qualquer conduta que encerre a destinação da droga a terceiros, pouco
importando se o fornecimento se dá a título oneroso ou gratuito, em grande ou
pequena quantidade.” [1]
Nesta mesma linha, agora na vigência da Lei n°
11.343/06, em 31.03.2008, a 6ª Câmara Criminal do TJSP, avançou e aprofundou o
debate para declarar a inconstitucionalidade do artigo 28 da referida lei.
“O artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é
inconstitucional. A criminalização primária do porte de entorpecentes para uso
próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há
tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da
alteridade, afronta os princípios da igualdade, da inviolabilidade da
intimidade e da vida privada e do respeito à diferença, corolário do princípio
da dignidade, albergados pela Constituição Federal e por tratados
internacionais de Direitos Humanos ratificados pelo Brasil” (TJ/SP, Sexta
Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 993.07.126537-3, Rel. José Henrique
Torres, j. 31.03.2008)
Seguindo em frente, em 31 de janeiro de 2012, o
Juiz Rubens Casara, da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, também absolveu
sumariamente o acusado da prática do crime previsto no artigo 28 da lei n°
11.343/06, respaldando-se no disposto no artigo 397, III, do Código de Processo
Penal Brasileiro, ou seja, “o fato
narrado não constitui crime”.
Lê-se na sentença do ilustre Juiz:
“Por força do princípio da ofensividade (nullum
crimen sine iniuria), não existe crime sem ofensa ao bem jurídico em nome do
qual a norma penal foi criada. No caso em exame, a conduta de P. não colocou em
risco real e concreto o bem jurídico – saúde pública – que se afirma protegido
pela norma penal incriminadora. De igual sorte, não se pode reconhecer a
existência de crime sem que o resultado da conduta do agente se mostre capaz de
afetar terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Note-se que a conduta do
réu toca apenas bens jurídicos individuais.” [2]
Por fim, como consequência deste debate, a
arguição da inconstitucionalidade aportou no STF, que lhe deu status de
“Repercussão Geral”. Sendo assim, portanto, a discussão atual acerca da
inconstitucionalidade do artigo 28, da Lei n° 11.343/06 afeta o Supremo
Tribunal Federal, que não deve demorar na apreciação do caso. [3]
No despacho que reconheceu a Repercussão Geral,
no Recurso Extraordinário 63659-SP, observou o ilustre Ministro Gilmar Mendes:
“No caso, a
controvérsia constitucional cinge-se a determinar se o preceito constitucional
invocado autoriza o legislador infraconstitucional a tipificar penalmente o uso
de drogas para consumo pessoal.
Trata-se de discussão
que alcança, certamente, grande número de interessados, sendo necessária a
manifestação desta Corte para a pacificação da matéria.
Portanto, revela-se
tema com manifesta relevância social e jurídica, que ultrapassa os interesses
subjetivos da causa. Nesse sentido, entendo configurada a repercussão geral da
matéria Constitucional.” [4]
Enquanto o STF não se manifesta, resta-nos, aos
que defendem a inconstitucionalidade, enfrentar o debate o oferecer, mesmo em
sentenças, elementos para a compreensão da magnitude do problema e busca de
soluções.
Assim, não se quer defender ou fazer apologia ao
uso de drogas ilícitas ou, muito menos, desconhecer os danos que a dependência
química tem causado aos jovens das camadas mais pobres desse país. De outro
lado, em vista da realidade que nos salta aos olhos no dia a dia forense, bem
como no contato com entidades, oficiais e civis, que atuam com jovens
dependentes, a exemplo do Creas, CRAS e associações de moradores, não há mais
como defender a punição como solução para o problema da dependência química de
jovens pobres e excluídos.
Não são esses jovens, chega-se à conclusão,
“clientes” do sistema punitivo ou penitenciário, mas “clientes” em potencial,
mesmo que retardatários, de políticas públicas para, primeiro, evitar que se
tornem dependentes químicos e, depois, cuidar deles para que resgatem sua
autoestima e lhe sejam oferecidas as oportunidades sociais que lhe foram
negadas desde a mais tenra infância.
Em consequência dessa política desastrosa e
equivocada no tratamento ao tráfico, a chamada “guerra às drogas”, o Brasil
tinha em dezembro de 2011, segundo dados do Ministério da Justiça, 514.582
presos e 125.744 por motivo do crime de tráfico de entorpecentes, ou seja,
24,43% da população carcerária. Significa dizer, portanto, que um quarto dos
presos do sistema penitenciário não cometeu crimes com violência à pessoa ou ao
patrimônio. Ainda segundo os dados do Ministério da Justiça, o sistema possui 306.497
vagas, mas o contingente preso é de 514.582. Em consequência de tudo isso –
pobreza, exclusão, falta de oportunidades, prisões desnecessárias, excesso de
presos e precariedade do sistema – o índice de reincidência é de mais de 70%,
ou seja, de cada dez presos submetidos às mais precárias condições de
cumprimento da pena em regime fechado, sete deles voltam a delinquir.
Assim, a solução punitiva e a política de “guerra
às drogas” não tem se mostrado eficientes para reduzir o tráfico ou o número de
dependentes, visto que tomando-se por parâmetro as apreensões, a produção e o
consumo crescem em níveis galopantes. Da mesma forma, o sistema não tem se
mostrado eficiente na recuperação de quem prende. Muito ao contrário, egressos
do sistema são estereotipados e, se não eram incluídos antes no mercado de
trabalho, pior agora na condição de ex-presidiário.
Em que pese tudo isso, a vontade e supremacia da
Constituição devem permanecer como o norte e o esteio do ordenamento jurídico.
Neste dilema – combate ao tráfico e respeito à Constituição – é papel de todos
que lidam com o Direito buscarem soluções diferentes da simples condenação e
encarceramento de milhares de jovens que muitas vezes vendem pequenas
quantidades para manter a própria dependência ou que se tornam traficantes de
verdade por falta de alternativas e oportunidades sociais.
Por fim, nesses caminhos até então trilhados, a
efetividade do projeto constitucional de construção de uma sociedade livre,
justa e solidária, sem pobreza, marginalização e desigualdade, fundada na
cidadania e dignidade da pessoa humana, parece não ter mais sentido e não ser
mais a vontade da própria Constituição. Os que lidam com o Direito e que lhe
veem sentido, no entanto, não podem aceitar
pacificamente este fato. É preciso efetivar e fazer acontecer a vontade da
Constituição. Não temos alternativa e nada justifica o esquecimento do projeto
constitucional brasileiro, resultado de um processo histórico concretizado na
Constituinte de 1987/88.
Pois bem, além desses aspectos reais, políticos e
sociais, para os quais o juiz não pode fechar os olhos, em termos técnicos
jurídicos, são fortemente consistentes os argumentos expendidos nos julgados da
6ª Câmara Criminal de São Paulo e do Juiz Rubens Casara, ou seja, a violação dos
preceitos constitucionais da inviolabilidade da vida privada das pessoas e
ausência de tipicidade da conduta.
De outro lado, o argumento de que o usuário
fortalece o tráfico e que, por isso mesmo, deve ser punido, é frágil e
inconsistente, seja em face de argumentos jurídicos ou lógicos. Ora, em
primeiro, ninguém poderá ser punido por crime que não cometeu, ou seja, só quem
comete o crime de tráfico pode ser punido pela própria conduta; em segundo, a
condição de usuário é subjetiva e diz respeito apenas a quem usa, encerrando-se
as consequências do ato no próprio usuário.
Por fim, no caso em apreço, trata-se de um jovem
usuário de maconha, residente nesta cidade, trabalhador autônomo e com uma
única ocorrência registrada no sistema policial: preso por porte de maconha.
Ora, o acusado confessou ser usuário, mas é pessoa que trabalha, tem endereço
certo e nunca cometeu crime com violência contra a pessoa ou contra o
patrimônio de quem quer que seja. Sendo assim, qual o bem jurídico que ofende
ao comprar quantidade de maconha para seu uso próprio? Qual o prejuízo que
causa à saúde pública ao fumar seu cigarro de maconha em sua própria
residência? Finalmente, qual o crime que cometeu para ser punido?
Isto posto, em face da atipicidade da conduta
e inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei n° 11.343/06, exercendo o controle difuso da
constitucionalidade, também em face do disposto no artigo 6º da Lei Estadual nº
10.845/07, Lei de Organização e Divisão Judiciária da Bahia (“os juízes togados poderão, no exercício do
controle difuso de constitucionalidade, negar aplicação às leis que entenderem
manifestamente inconstitucionais.”), com fundamento no artigo 397, III, do
Código de Processo Penal, ABSOLVO o
acusado para determinar o arquivamento dos presentes autos.
Sem
custas e sem honorários. Transitada em julgado, arquive-se.
Conceição
do Coité, 17 de maio de 2012
Bel.
Gerivaldo Alves Neiva
Juiz
de Direito