“É HORA DE O ESTADO ASSUMIR SUAS RESPONSABILIDADES”, DIZ FRANCISCO FOOT HARDMAN SOBRE A COMISSÃO DA VERDADE
Por Maura Voltarelli
A recém-instalada Comissão da Verdade
vem para investigar os crimes cometidos durante a Ditadura Militar no
Brasil e esclarecer o destino de muitas pessoas vítimas de tortura e
demais violações aos direitos humanos, classificados internacionalmente
como “crimes contra a humanidade”. Além de ser uma comissão da
“verdade”, a comissão também é da Memória, o que por si só já garante
espaço para que não só os crimes cometidos como também as diversas ações
de resistência sejam enfim lembradas, discutidas e conhecidas.
Esse conhecimento é necessário para entender o que foi o Estado
brasileiro durante esse período violento da história recente. Episódios
brutais como o da Guerrilha do Araguaia, em que 3 mil soldados foram
enviados para dizimar a vida de 79 militantes, ainda estão sem
investigação. Mais de 60 guerrilheiros foram mortos neste que é
considerado o primeiro movimento que enfrentou o exército durante o
regime militar e muitos corpos ainda estão desaparecidos.
Quando há um compromisso em investigar essas passagens quase
trágicas da história brasileira, é possível entender melhor o estado de
violência no qual vive a sociedade atual e fazer justiça à história e ao
processo de construção da democracia.
“As
coisas ficam muito tempo no limbo, em um esquecimento relativo e, para
os que dizem que já é tarde, eu prefiro o antes tarde do nunca”
Em entrevista ao blog Educação Política, o professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, Francisco Foot Hardman,
fala sobre o atual momento político vivido pelo Brasil com a Comissão
da Verdade e das contradições de um Brasil signatário de acordos
internacionais que condenam a tortura, mas que ainda não investigou seus
próprios crimes. Foot também discute outros movimentos da sociedade
civil que lutam pelo direito à Memoria, fala sobre um mundo que já mede a
felicidade e lembra uma revolucionária que, ao seu modo e no seu tempo,
lutou pelas mesmas causas que, “antes tarde do que nunca”, nós,
brasileiros, seguimos buscando: liberdade e justiça!
Agência Educação Política: O
escracho é um movimento de protesto que ocorre nas ruas, de forma
livre, espontânea e quer denunciar, escrever, fazer ver os nomes dos
torturadores da ditadura no Brasil e em outros países da América Latina
onde ele ocorre. O caráter de extra-oficialidade do escracho convive com
outro movimento, agora de caráter oficial, que também quer resgatar a
memória dos anos de chumbo: a Comissão da Verdade. Como você vê esses
dois movimentos que lutam pelo direito à memória, pelo direito de ver
reconhecida a própria história, seja nas ruas, pela via essencialmente
pública, seja pela via política? Qual a importância de ambos?
Francisco Foot Hardman:
Existe uma relação estreita, temática, entre o “movimento dos escrachos”
e a Comissão da Verdade. A comissão é uma ação, uma iniciativa do
estado brasileiro. Vale lembrar que o projeto da Comissão não é
exclusivo do governo Dilma. Obviamente, há um mérito de efetivamente dar
início às atividades, mas as ações em torno de uma comissão que
investigasse os crimes cometidos durante a Ditadura Militar começou
ainda com o governo Fernando Henrique Cardoso com a Comissão dos
Desaparecidos, depois tivemos a Comissão de Anistia, enfim, são aí quase
duas décadas em que várias ações foram feitas. Outros países já fizeram
a sua Comissão da Verdade como África do Sul, Chile, Argentina,
Uruguai, Peru, entre outros, onde o estado se propõe a fazer uma
investigação livre de qualquer censura sobre crimes contra a humanidade
perpetrados em regimes ditatoriais por agentes do próprio estado. Neste
ponto, surge justamente uma questão que vem sendo colocada a respeito da
necessidade da Comissão investigar os crimes cometidos por militantes
de esquerda. Na minha opinião, não seria bem essa a função da Comissão. O
mais importante é que o estado assuma a responsabilidade e esclareça o
destino dessas pessoas, bem como as condições em que elas foram
eliminadas. Também não acho pertinente a questão que se coloca de que os
familiares de presos políticos deveriam fazer parte da Comissão. O
estado é que tem que se colocar, a Comissão tem que ser da sociedade e
do estado brasileiro. Indiretamente, os familiares vão acabar
participando, como aliás já tem acontecido.
Guerrilheiros do Araguaia
Os agentes de todos os crimes cometidos deveriam ser
responsabilizados, mas aí também entra outro problema com a Lei de
Anistia, que anistiou também os agentes de estado. O Supremo Tribunal
Federal confirmou essa Lei, mas vale lembrar que há neste ponto uma
contradição com as determinações de cortes internacionais e tratados dos
quais inclusive o Brasil é signatário. Se pensarmos que o direito
internacional prevalece sobre as leis nacionais, tem-se então um
problema sério. O próprio Gilson Dipp, coordenador da Comissão da
Verdade recém-instalada, representou o Brasil no julgamento da Corte
Interamericana de Direitos Humanos da OEA sobre a Guerrilha do Araguaia.
O estado brasileiro foi condenado pela Corte e considerado responsável
pelo desaparecimento de 62 pessoas, ocorrido entre 1972 e 1974. A
Comissão precisa resolver essas contradições. Já o escracho é um movimento da sociedade civil,
não tem nada a ver com o Estado, que tem como modelo movimentos do
Uruguai, da Argentina e Chile. No Brasil, ele nasceu a partir de um
outro movimento, o Levante Popular, e as primeiras manifestações
começaram no Rio Grande do Sul (RS). Em geral são jovens que não têm
relação direta, em sua maioria, com os desaparecidos ou os familiares
das vítimas da ditadura, é uma geração posterior, de 20 anos, mas que
vem fazendo esse movimento de protesto. Curiosamente, eles têm também
outras finalidades além de “apontar os agentes da tortura e da
repressão”. Trabalham com sem tetos e populações excluídas das grandes
regiões metropolitanas. Vale lembrar que uma coisa não substitui a
outra, as duas são importantes, tanto os movimentos oficiais quanto os
da sociedade civil. Eles vão se ajudar mutuamente.
O interessante é que a Comissão produz na consciência das
pessoas o desejo de ver esclarecidas essas questões, estimula a atitude
de lembrar e decidir falar em oposição ao movimento contrário que é o do
esquecimento, do silenciamento, alimentado pela enorme resistência das
forças armadas.
AEP: A
Comissão da Verdade vem desencadeando outros movimentos de luta pelo
reconhecimento da própria história em diversos setores da sociedade
brasileira. A USP já quer a sua Comissão para investigar os crimes
cometidos contra estudantes e professores da época, muitos deles
assassinados nos porões da tortura. Há um movimento também junto aos
sindicatos, também para investigar os crimes cometidos contra os
trabalhadores na Ditadura Militar. Um agente do DOPS, Claudio Guerra,
recentemente também decidiu publicar um livro, ‘Memórias de uma guerra
suja’, contando alguns crimes cometidos na ditadura, como o episódio em
que os corpos de desaparecidos políticos teriam sido incinerados em um
forno de uma usina de açúcar. Seria esse um momento político e social
“favorável à verdade”?
Foot: Acho que sim. Meus
colegas historiadores criticam esse conceito de verdade no singular
porque não existira, segundo eles, uma única verdade. O processo de
busca da verdade não é linear, é conflituoso, são diferentes versões e
interesses em jogo, mas o historiador está sempre, de qualquer maneira, a
favor da verdade, perseguindo a verdade, tem-se aí uma conexão com o
jornalista inclusive, com o bom jornalista. Algumas coisas são mais
difíceis de serem esclarecidas por falta de provas, documentos. No caso
da Guerrilha do Araguaia, por exemplo, a investigação para apurar o que
realmente aconteceu não vai ser fácil, a não ser que se encontrem as
ossadas ou outras evidências do tipo que ajudem a elucidar a questão. No
entanto, ainda que seja difícil, há um comprometimento que se instala
com a Comissão e isso é importante. O interessante é justamente que a
Comissão não é apenas uma Comissão da Verdade, é também uma Comissão da
Memória que vai permitir que se fale do assunto. A interpretação será
feita à luz dos documentos, dos indícios disponíveis, esclarecer 100% é
difícil, mas há a recuperação da memória, do direito à memória. Não
podemos esquecer que ainda há um problema de bloqueio de acesso a muitos
documentos da Marinha, da Aeronáutica, o que parece mesmo uma manobra
para evitar o acesso, mas, de qualquer maneira, as pessoas começam a
esboçar ações, é de fato um momento em que a sociedade pode pesquisar e
voltar a esse tipo de indagação: o que aconteceu? As coisas ficam muito
tempo no limbo, em um esquecimento relativo e, para os que dizem que já é
tarde, eu prefiro o “antes tarde do nunca”.
No que diz respeito a fatos tão impressionantes quanto o do
incineramento de cadáveres dos desaparecidos no forno de uma usina de
açúcar, lamentavelmente, são verdade. O Claudio Guerra dá muitos
detalhes do episódio no seu livro, nomes, enfim… Ele vai ser
possivelmente ouvido pela Comissão apesar da Lei de Silêncio da
hierarquia militar que permite ao coronel Ustra, por exemplo, que
acompanhava todas as seções de tortura no DOPS, dizer que não sabia das
torturas. Qualquer agente que resolve falar traz à tona coisas
impressionantes e importantes como fonte histórica.
AEP: A
Comissão da Verdade de certa forma vem para dizer que as versões já
apresentadas e a tentativa de “enterrar” o passado já não funcionam. Na
sociedade atual, não parece ser apenas essas versões tradicionais que
não mais convencem. Um índice muito curioso que vem ganhando espaço
atualmente é o FIB (Felicidade Interna Bruta) que busca medir a
felicidade da população. É interessante ver como no contexto das crises
econômicas, o PIB (Produto Interno Bruto) parece um tanto desacreditado,
as pessoas agora querem medir a felicidade. Mas como medir a
felicidade? Como quantificar, objetivar algo essencialmente subjetivo?
Seria mais um sinal da tendência contemporânea de mercantilizar tudo e,
ao mesmo tempo, da falência dos nossos tradicionais índices que não
respondem mais ao que quer, ao que deseja a humanidade?
Foot: De um lado, nos países
capitalistas, a economia funciona basicamente a partir do PIB (Produto
Interno Bruto). De outro, esse índice começou a ser questionado. Quem
começou essa história do FIB (Felicidade Interna Bruta) foi o Butão.
Curiosamente, um país budista, que prega justamente que a felicidade
seja associada ao desprendimento das coisas materiais, a um modelo de
vida mais espiritual e baseado na meditação, é que começou a pensar em
medir a felicidade. Aparentemente, não existe no país miséria extrema e
desigualdade social, assim podemos entender essa criação do FIB também
como um reconhecimento de que as estatísticas como hoje estão são
limitadas, apenas descrevem certos índices, números, mas não dão conta
de uma série de questões, como a desigualdade social, por exemplo. A
ideia de poder imaginar que a felicidade é algo que pode ser mensurado é
bastante complicada, mas parece fazer uma espécie de contraponto a
esses modelos já consagrados. O desafio é pensar em quais seriam os
critérios. As necessidades básicas preenchidas, alimentação, moradia,
mas aí também aparece o lazer e, mais delicado ainda, o inefável que
permanece fora de qualquer medida: o amor, o afeto. De qualquer forma, o
FIB mostra as limitações da ciência econômica, tomada de forma muito
rígida, exata. A história dos marxismos neste ponto é complicadíssima. O
bem estar de todos, o ideal de felicidade comum. O problema é que como a
própria Rosa Luxemburgo advertiu tudo se transformou em uma simples
ditadura do partido e não mais do operariado. Nos países que se disseram
socialistas houve avanços inegáveis, mas eles ainda têm e terão muitas
demandas.
“O mundo é tão belo, com todo o seu horror, e seria ainda mais belo se não houvesse nele os fracos e covardes”.
AEP: Já que falamos aqui em Rosa Luxemburgo, gostaria de pedir que comentasse esse pensamento dela: “Então
cuide de permanecer sendo um ser humano. Ser humano é o mais importante
de tudo. E isso significa: ser firme, claro e alegre, sim, alegre
apesar de tudo e de todos, pois choramingar é ocupação para os fracos.
Ser humano significa atirar com alegria sua vida inteira “na grande
balança do destino” se for preciso, mas ao mesmo tempo se alegrar a cada
dia claro, a cada bela nuvem, ah, eu não sei dar uma receita de como
ser humano, eu só sei como se pode sê-lo [...] O mundo é tão belo, com
todo o seu horror, e seria ainda mais belo se não houvesse nele os
fracos e covardes”. Rosa Luxemburgo em carta a Mathilde Wurm, 28 de dezembro de 1916, enquanto estava presa na fortaleza de Wronke na Posnânia.
Foot: Podemos localizar na
Rosa, algo que inclusive eu acho muito verdadeiro, esse humanismo mais
radical, que parece hoje um tanto fora de moda. Um humanismo visceral
realmente baseado na ideia de que a humanidade pode ter um destino de
transformação que passa pelo esclarecimento, pelo conhecimento, pela
solidariedade, pelo desejo de mudança, ou seja, o humano significa
justamente o não conformismo com as condições que nos são dadas,
impostas, ou de que somos herdeiros, na nossa cultura, sociedade,
economia. A Rosa tem essa questão da inconformidade muito viva, ela
tinha isso de acreditar nos movimentos, na capacidade que as pessoas
tinham de se mobilizar. É libertária, nisso ela se aproxima um pouco
mais dos anarquistas, embora ela achasse que tinha que existir uma
organização sim, tanto que depois ela própria fundou a liga
Espartaquista inspirada em Espártaco, o escravo romano que liderou uma
revolta contra o sistema escravista que praticamente sustentava a
economia romana. Antes, ela era do Partido Social Democrata, do qual foi
expulsa por, entre outras coisas, não concordar com a entrada da
Alemanha na guerra. Essa ideia de ligação com a vida, com as coisas, é
também a ideia do socialismo que, de alguma maneira, buscava restituir a
relação do homem com a natureza. Rosa foi uma mulher de força muito
grande, pessoa fantástica, pena que foi morta de forma tão violenta. Do
ponto de vista político ela perdeu, diria que não só ela. Ocorreu uma
revolução, era um processo revolucionário que, se não tivesse sido
abortado, poderia ter levado a uma transformação, ao surgimento de um
novo estado socialista que talvez tivesse dado um outro curso ao
socialismo europeu. Infelizmente, como disse, esse processo foi abortado
e a própria história tal como se deu preparou os governos autoritários
que se seguiram, os movimentos fascistas, por exemplo. Aqui é importante
separar as ideias da Rosa e dos outros revolucionários, que sobrevivem
até hoje sem dúvida, e a realidade política dos movimentos.
Politicamente Rosa foi derrotada, mas ideologicamente ela sobreviveu à
violência a que foi submetida.
*Educaçãopolítica