Além
de 2014 e a reeleição de Dilma, está em curso outra batalha: a conexão
(ou não) do PT com uma nova geração de militantes por um Brasil mais
justo.
Jean Tible (*)
Desencontro
Existe
um – surpreendente? – desencontro entre as mobilizações recentes (as
jornadas de junho que prosseguem de várias formas e intensidades) e o
Partido dos Trabalhadores.
Algumas
posições-ações petistas causam surpresa (apesar de não representarem o
PT como um todo): torcida – explícita ou não – pelo fim das
manifestações; avaliação que estas acabaram; flerte com as perigosas
vias da criminalização das “ações violentas” (de manifestantes, não das
polícias).
São posturas petistas contra natura,
já que o PT nasce e vem desse mesmo lugar, das resistências, ruas,
locais de trabalho, bairros, periferias, campo. O PT como criação
“inédita”, por mesclar democracia e diversidade internas com uma nova
forma de ocupar posições institucionais. Um partido-movimento; que vem
perdendo fôlego.
Passados onze anos de governo
federal – e inúmeras conquistas sociais e políticas –, um diagnóstico
compartilhado por muitos militantes e dirigentes manifesta a imperiosa
necessidade de transformação do partido. As manifestações são justamente
uma oportunidade inédita – uma dádiva – para o PT pensar as “lacunas
que persistem na reflexão partidária” (Convocatória do V Congresso).
Reflexão
e ação. Em várias intervenções, Dilma, Lula e Rui Falcão declararam sua
“abertura” aos protestos e às reivindicações das ruas-redes. Apesar dos
cinco pactos propostos pela Presidenta (e da vinda dos médicos
cubanos), tal abertura ainda permanece, infelizmente, antes de tudo
retórica.
Direito de lutar e manifestar
Talvez
o principal desencontro se dê na falta de indignação frente às prisões
arbitrárias de manifestantes que... manifestavam. Isso vai contra
qualquer Estado democrático de direito e ocorreu em muitas cidades
brasileiras, em vários momentos. Surgem, além disso, inúmeros relatos de
perseguições cotidianas a vários militantes (e a suspeitíssima morte da
atriz e diretora de teatro Gleise Dutra Nana, após um incêndio em sua
casa em Duque de Caxias). Nenhuma fala contundente, nenhuma ação. Mesmo
se esses fatos inadmissíveis são produto dos governos estaduais e suas
polícias, várias intervenções desastrosas do Ministro da Justiça indicam
um – implícito? – apoio à repressão suave em curso: “inteligência”
contra “lideranças”, endurecimento da legislação.
Perdeu-se
aí uma possibilidade de articulação entre lutas contra injustiças.
Faltou uma posição mais contundente do PT pelo Estado democrático de
direito, isto é contra a prisão arbitrária dos jovens (agora soltos,
salvo um, o morador de rua Rafael Braga Vieira, não por acaso negro e
pobre, condenado a cinco anos de prisão por carregar um frasco de
desinfetante e outro de água sanitária, instrumentos de trabalho, na
manifestação de 20 de junho), sem direito à fiança e com acusações
frágeis para dizer o mínimo. Ademais, a crítica às condições carcerárias
não se fez ouvir com força antes das injustas prisões dos petistas.
Teria outra posição colocado os jovens manifestantes ao lado da revolta
petista contra os arbítrios da AP470 e as prisões dos seus antigos
dirigentes?
Quando a trágica morte do
cinegrafista Santiago Ilídio Andrade vem se somar à dezena de mortes já
ocorridas desde o início dos protestos (inclusive uma, do camelô Tasman
Accioly fugindo das bombas da polícia no dia em que Santiago foi
atingido), isso se reforça. O terrível acidente – e dramático erro –
leva a um linchamento. A violência policial parece ser vista como
natural. Assim como as balas de borracha. O que deve ser debatido é, ao
contrário, o uso de máscaras por parte alguns manifestantes e leis
contra o “terrorismo”. Acabaram encontrando-se, surpreendentemente, do
mesmo lado PIG, muitos blogueiros progressistas e setores do PT...
Algo
mudou no país. O recorrente se tornou insuportável. Amarildo.
Amarildos. Douglas. E muitos outros. Revoltas contra o continuum
escravocrata do nosso país. No entanto, ao invés de pautar de forma
contundente uma reforma das polícias (incluindo a desmilitarização da
PM, projeto da esquerda derrotado na Constituinte de 1988 e novamente
nos anos 1990), de provocar um debate nacional, o PT praticamente
silencia. Essa reforma e uma nova política de drogas (incluindo a
legalização da maconha e outras medidas visando separar seu consumo do
crime organizado) são fundamentais para enfrentarmos o extermínio da
juventude negra, assim como o atual encarceramento em massa.
Uma
agenda de esquerda caminharia, a meu ver, rumo à afirmação de um
Direito à luta e à manifestação. Nunca mais Pinheirinho, Tekoha Guaviry e
muitos outros, incluindo o assassinato de um índio por semana desde
2003 (dados do Cimi).
Algumas propostas já estão
em pauta no Senado, por iniciativa de Lindbergh Farias (proibição das
balas de borrachas e desmilitarização da polícia). Uma regulamentação
das armas menos letais como um todo (balas de borracha, bombas de efeito
moral, gás lacrimogêneo, etc.) poderia ser um bom começo. Temos bons
exemplos ao Sul, na Argentina (armas menos letais) e no Uruguai
(maconha).
Democracia, representação e participação
Parece-me
que a única forma de aprofundar o processo de transformação em curso no
Brasil está na conexão do partido com um fértil fenômeno que envolve a
realização de assembleias horizontais e a ocupação de espaços públicos,
legislativos – e até shoppings! – e à política (mais horizontal,
distribuída) que anuncia uma nova geração, aqui e pelo mundo. Menos
representação e mais participação.
Trata-se de
uma oportunidade de se repensar a participação popular e as dinâmicas
sociedade-estado. Em que pese a importância, histórica e atual, da
democracia participativa do modo petista de governar, esta não é mais
suficiente.
O Orçamento Participativo teve um
papel fundamental no difícil contexto dos anos 1990 para todas as
esquerdas e buscava – numa das perspectivas mais radicais (Raul Pont) –
colocar em xeque a “representação burguesa” a nível local (vereadores).
Um esboço de soviet contemporâneo.
Hannah Arendt
celebrava os conselhos como o “tesouro perdido da tradição
revolucionária”, mas o fazia somente no sentido político e não econômico
(este sendo inquestionável?). Paradoxalmente, o PT foi se aproximando
de uma perspectiva “liberal” de participação. Temos o exemplo da
Islândia (apesar das fortes especificidades desse país), onde uma
revolta popular, seguida de um plebiscito, mudou a política econômica e
depois a constituição com ampla participação dos cidadãos, inclusive
pelas redes sociais. No programa do Partido X, criado a partir do 15M
espanhol (indignados), aparece com destaque a ideia de uma democracia
econômica.
Abre-se hoje o desafio de pensar o
modelo produtivo e a participação neste campo. A abertura das planilhas,
das companhias privadas de ônibus à geração e distribuição de energia.
Criar novos espaços, tais como a reivindicação histórica da CUT em
participar do Conselho de Política Monetária. Transparência (acesso aos
dados) e participação na Petrobras, Eletrobrás e BNDES. As lutas abrindo
os debates. Como foi decidida Belo Monte? Quais os investimentos na
Amazônia? E as condições trabalhistas nas grandes obras? Que controle
das empresas, públicas e privadas? Por que não temos uma política de
esporte amador digna desse nome? Uma Copa e Olímpiadas participativas
não teriam permitido as remoções em seu nome (Copa rebelde!).
A
participação mais do que a representação envolve também pensar em
mecanismos onde os usuários – da saúde, educação, transporte... – possam
ter maior protagonismo, inclusive no controle social e – por que não? –
gestão. Gestão das questões públicas para que se tornem realmente
públicas, ou melhor, comuns...
Novos
personagens. Desejo de mudar a política. Em ato, na prática. A abertura
das planilhas do transporte metropolitano privado e outras somente são
possíveis com mobilizações na rua. Isso vale também para as reformas
“estruturais”, lei de mídia, reformas política, urbana, tributária ou
agrária. Ou para aprovar, enfim, o Marco Civil da Internet, a reforma da
polícia ou uma nova lei de drogas. Menos apelos (genéricos) às
“grandes” reformas e mais ações concretas que apontam para essas
mudanças que desejamos. Junho (que continua) permite pensar em novas
formas de articulação entre lutas (ruas, redes e instituições). Onde o
governo não tem “correlação de forças” para mudar certas políticas, o PT
deve abrir os debates, mobilizar e ajudar a alterar a tal correlação de
forças....
Além de 2014 e a reeleição de Dilma,
está em curso outra batalha: a conexão (ou não) do PT com uma nova
geração de militantes por um Brasil mais justo e livre e com sua
potência democrática. 2014 pode ser “vencido” sem isso, o próximo
período não. Tal desafio pede um partido vivo, isto é em contato com as
lutas e aberto às transformações das novas vanguardas que surgem. Um
diálogo entre um ator incontornável para uma democracia real no Brasil
(o PT) e novas expressões de radical politização. Um partido
participando das ocupações em curso. Ocupa PT?!
(*) Jean Tible é professor de relações internacionais do Centro Universitário Fundação Santo André
*GilsonSampaio