Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, setembro 09, 2011

Santayana: qual foi o alvo em 11 de setembro

O Conversa Afiada reproduz texto de Mauro Santayana, extraído do JB:

Nota do colunista: reproduzo abaixo, sem qualquer alteração, o texto do artigo que publiquei, no dia 12 de setembro de 2001, no Correio Braziliense. Ele foi redigido na tarde do dia dos atentados, sob o calor dos fatos. Nada a acrescentar, a não ser as crianças trucidadas no Afeganistão, no Iraque, e, agora,  na Líbia , sem falar nas que morriam antes e continuam a morrer na Faixa de Gaza.

A hora do medo


por Mauro Santayana


Qualquer que tenha sido o grupo terrorista responsável pelo surpreendente ataque contra Nova York , o alvo foi o modelo de sociedade que os Estados Unidos adotaram e pretendem impor ao mundo. O golpe pode ter sido desfechado por palestinos ou curdos, iraquianos ou corsos, líbios ou porto-riquenhos, como pode ter sido obra da direita norte-americana.


Pode significar represália contra a morte de crianças palestinas pelos mísseis israelitas, como pode expressar a vingança dos direitistas internos contra a execução do detonador de Oklahoma.


Um amigo norte-americano me disse, recentemente, que os seus compatriotas se encontram exaustos. Já não se orgulham, como se orgulhavam antes, de seu way of life.

Fortalecida a hegemonia mundial com a derrota do grande adversário, os Estados Unidos só têm sustentado a sua grandeza mediante uma economia fundada na virtualidade eletrônica e na ameaça que representam seus arsenais militares. No interior do país aumenta a pobreza, com a redução real dos salários e o endividamento cada vez maior das famílias norte-americanas. Não há sinais de melhora à vista. Anuncia-se forte recessão mundial, assunto de que tratamos, neste mesmo espaço, na semana passada e ainda não foi encontrado o caminho para enfrentá-la.


Depois da penosa depressão dos anos 30, a grande saída para a economia do país foi a guerra: Pearl Harbour lhes deu o pretexto, mais interno do que externo, para a participação no conflito e essa participação os levou ao comando da economia global. E agora? Já houve quem comparasse a explosão do World Trade Center, símbolo do capitalismo globalizador, ao ataque de dezembro de 1941 à grande base naval da Ásia.


Mas as coisas não são exatamente as mesmas. Em 1941, havia uma guerra em curso, e a Alemanha, tendo rompido o pacto Molotov-Ribbentrop, já estava ocupando grande parte da União Soviética. A Inglaterra sofria os ataques aéreos, desfechados pela Luftwaffe, a França estava ocupada havia mais de um ano, sofrendo, além da presença militar do inimigo, o vexame que representava o governo capitulacionista de Vichy.


Toda a simpatia do ocidente e dos povos submetidos ao Eixo estava com os Estados Unidos e seu grande presidente Franklin Roosevelt.


Hoje não ocorre o mesmo. O presidente dos Estados Unidos, e essa é a conclusão da grande imprensa norte-americana, é um texano bisonho, escolhido em pleito controvertido, que declarou guerra aos interesses do mundo quando rejeitou os compromissos do Protocolo de Kyoto e serve de chacota aos humoristas. Nós, brasileiros, temos ainda outras preocupações com Mr. Bush: ele e seu vice-presidente declararam, recentemente, que os países devedores devem vender suas florestas para pagar a dívida externa. Como não existem mais florestas na África, já sabemos para quem é o recado.


Pode ser que os falcões do Pentágono aproveitem o clima de vingança para optar por uma guerra contra todos, e Blair já fala em solidariedade das democracias, mas, se assim agirem, os Estados Unidos correm imenso risco.


Não é possível, nestas primeiras horas, identificar os responsáveis, ainda que possam surgir numerosas versões no calor dos fatos. Um exame sereno da situação mostra, no entanto, que seria muito difícil, ainda que não improvável, a um grupo de terroristas estrangeiros seqüestrar tantos aviões, sem qualquer suspeita e, mais ainda, atingir o coração do sistema militar, que é o Pentágono. Se o grupo é estrangeiro, é conveniente acreditar em algum tipo de cumplicidade interna.


A verdade poderá assustar mais ainda os dirigentes americanos: nada seria pior do que uma sublevação interna nos tempos modernos. Não seria como a Guerra da Secessão, com os interesses delimitados pela geografia, mas uma explosão de descontentamento difuso. Na Casa Branca não se encontra Abraham Lincoln, habita-a Mr. Bush, o que não é o mesmo.

O mais triste é saber que morreram pessoas inocentes, que nada têm a ver com os donos do mundo. Muitas das vítimas eram apenas turistas que visitavam as grandes e orgulhosas torres. As torres simbolizam, na arquitetura, a petulância dos que pretendem erguer-se à altura dos céus, como pontes erguidas para o absoluto. Outras eram apenas os descuidados e confiantes passageiros dos aviões.


Compraram os seus bilhetes, telefonaram para as famílias, leram os seus jornais e, antes da morte, se assustaram ao ver que voavam entre os grandes edifícios da cidade.


Qualquer que venha a ser a reação dos

Estados Unidos, o mundo mudou, será outro depois das explosões de Nova York e a fragilidade do sistema se tornou evidente.


Não há pessoas invulneráveis à violência de nosso tempo; não há tampouco povos invulneráveis. A mais poderosa das armas é ainda o homem e a sua disposição para a morte, em nome de uma causa, de um dever, ou, simplesmente, de um equívoco.


No fundo, o que está em jogo é a probabilidade ou não de a humanidade vencer esse tempo que, para citar o grande humanista norte-americano Thomas Paine, põe à prova a alma dos homens.


Em Belfast, os protestantes tentam agredir as crianças católicas a caminho das escolas.


No Oriente Médio, os israelitas matam outras crianças, como represália a ataques dos palestinos. Nas cidades norte-americanas, crianças assassinam professores e outras crianças nas escolas e o seu exemplo é seguido no mundo inteiro, até mesmo em nosso país.


O medo é nosso vizinho mais próximo e entra em nossa casa pelos canais de televisão.


O medo em Nova York poderá, ao agravar-se, igualar-se ao medo que se apossou da orgulhosa Cartago, tal como, sucintamente, o descreveu, com merveilleuse désolation, o grande Montaigne:


“Não se ouviam senão gritos pavorosos. Viam-se os moradores saírem de suas casas, atacarem-se uns aos outros, entrematarem-se, como se se tratasse de inimigos que tivessem vindo ocupar a cidade. A isso chamaram terror pânico, em homenagem a Pan…”


Pan é um deus destes tempos, modernos e americanos, of course: os gregos o criaram para cuidar da masturbação e do medo.

*PHA

Nenhum comentário:

Postar um comentário