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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, fevereiro 27, 2012

As liberdades de Cuba

O assunto “Cuba” andou frequentando o DR nas últimas semanas, não apenas em função da visita da Presidenta Dilma à ilha caribenha – e o tucanato de plantão espichou as orelhas, vendo no fato uma oportunidade de formulações críticas à postura do Estado Brasileiro -, mas também porque a visita provocou, por parte da grande mídia, muitas reportagens, todas, invariavelmente, contrárias ao regime cubano e todas, invariavelmente, deixando de observar o saudável princípio do contraditório que recomenda, na busca de uma hipotética verdade, a audição das duas partes envolvidas. Aqui no site, é claro, os artigos que trataram do assunto enfocaram esses distintos pontos de vista.

 

Como não me manifestei então, faço-o agora, movido não apenas pelo desejo da não omissão, mas também pelo fascínio do tema, que integra minha visão do mundo desde o tempo de jovem, quando os guerrilheiros de Sierra Maestra derrubaram o governo de Fulgencio Batista, então amparado pelos Estados Unidos, em uma época em que se fazia de muitos países da América Latina – Cuba, principalmente – um grande quintal americano, um quintal sujo pelas atividades mafiosas, pela corrupção generalizada, e pela desavergonhada exploração do povo cubano por uma elite que fazia o jogo do imperialismo. Esses não são termos usados ao acaso, não são chavões de que me valho para retratar a situação de então. Qualquer ida aos livros mostra que a política do “big stick” do Roosevelt do início do século XX veio tendo desdobramentos e materializações em intervenções militares nos países considerados “focos desestabilizadores” ou na sustentação de governos corruptos que representavam seus interesses políticos e/ou econômicos (caso da Cuba de então).

 

Maiores justificativas não poderia haver para a Revolução Cubana que então se efetivou, com franco apoio popular. E a animosidade em relação aos americanos, se já tinha esses antecedentes históricos, mais profunda se tornou após a malograda tentativa da invasão por refugiados e mercenários (treinados e contratados pela CIA) na Baía de Porcos.

 

De lá para cá, é preciso entender a história da ilha e das opções ideológicas e estratégicas do governo fidelista a partir da correlação de forças que rachava o planeta na chamada guerra fria. Os aliados cubanos não poderiam ser outros senão os que representavam, à época, a negação do capitalismo explorador que a ilha experimentara de perto e não queria ver revivido.

 

Do jovem idealista que via a Revolução cubana como uma marca da liberdade, até o homem maduro de hoje, fui acompanhando a distância o que acontecia na ilha, nem sempre amparado por notícias confiáveis, até que resolvi, em 2004, ir a Cuba. O regime já estava passando por sérios problemas decorrentes do isolamento submetido pelos americanos, o bloqueio, agora sem o contraponto aliado do mundo socialista que havia ruído. Mas eu queria ver de perto o que acontecia e, de alguma forma, resgatar uma história que me tinha sido tão cara nos tempos da juventude.

 

Claro que foi uma viagem no tempo, como se costuma dizer ao mencionar os velhos carros americanos deixados na ilha pela elite em fuga e a ausência de aparatos tecnológicos e de conforto que a realidade da ilha não permitia. Encontrei, aqui e ali, alguns sinais de que o sistema socialista não poderia resistir imutável por muito tempo, seja porque os jovens ansiavam por um outro descortino do mundo, seja porque os próprios setores governamentais, principalmente através do turismo, percebiam que a abertura era uma questão de sobrevivência.

Mas tive oportunidade de ver – sem qualquer dificuldade – que, também como componente daquela “parada no tempo” (se pensarmos nos valores do “progresso tecnológico” de hoje), havia aspectos realmente dignos de destaque positivo: os cubanos não possuíam mendigos nem crianças abandonadas pelas ruas, e disso se orgulhavam: os cubanos não morreriam desassistidos pelas autoridades de saúde, pois tinham um sistema de referência mundial; os cubanos não tinham analfabetos (foi interessante perceber que os jovens adolescentes, em sua maioria, liam muito: quase todos conheciam, por ler, obras clássicas consagradas, como o Dom Quixote); os cubanos tinham uma saudável educação do corpo; a droga e a prostituição, se existiam, eram absolutamente pouco significativas, se comparadas com os “padrões” ocidentais.

 

Voltei com duas convicções. A primeira, de que, seria inevitável a abertura cubana, lenta e gradual, não por causa da perversa pressão norte-americana, que se mostrou inócua durante mais de 50 anos , mesmo diante de uma pequena ilha a uma hora de Miami e com uma base inimiga em seu território, mas porque os tempos imporiam, infelizmente, tais mudanças. Cuidadosas mudanças, para não permitir a volta ao regime de quintal e a presença de espiões, agentes e sabotadores ávidos por um festim desestabilizador... A segunda convicção é a de que, se, após a distensão, Cuba souber manter as suas grandes conquistas sociais, sem paralelo em qualquer ponto da América Latina – e poderá, dado o grau de politização do seu povo - certamente se transformará, logo nas primeiras décadas deste século, no país mais exitoso de todo o complexo latino-americano.

As liberdades de ir e vir e de expressar-se são, sim, viscerais e importantes. Mas são relativas e não são as únicas. Um país que mantém mendigos, miseráveis e analfabetos, por exemplo, não lhes permite tais liberdades. Um país que comercializa a saúde e a educação, por exemplo, desconsidera muitas outras liberdades, tão ou mais relevantes para a dignidade humana.

 

Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.rdades, tão ou mais relevantes para a dignidade humana.Direto da Redação

*Oterrordonordeste

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