A farsa na morte de Marighella
"Eu
vi os policiais colocando o corpo no banco de trás do carro", revela o
fotógrafo que registrou a imagem do guerrilheiro executado. Essa
testemunha desmancha a versão dos militares para esconder como foi
abatido o inimigo número 1 da ditadura
Alan Rodrigues, na IstoÉ
MENTIRA E VERDADE
A
primeira foto é a da versão oficial que o fotógrafo Sérgio Jorge foi
obrigado a registrar. A segunda é uma nova reprodução feita por ele: um
modelo foi usado para mostrar como estava Marighella antes da encenação policial
A
primeira foto acima, à esquerda, correu o mundo depois da noite de 4 de
novembro de 1969. Ela era vista como prova da iminente vitória do
governo contra a oposição armada à ditadura militar brasileira. Carlos
Marighella, 58 anos, o terrorista mais caçado do País, líder da Ação
Libertadora Nacional (ALN), organização responsável por dezenas de
assaltos a bancos e explosões de bombas, estava morto. Amigo de Fidel
Castro, celebrado pela Europa como principal comandante da guerra
revolucionária na América do Sul, Marighella tinha levado quatro tiros
numa emboscada policial na alameda Casa Branca, no bairro dos Jardins,
em São Paulo. Segundo a versão dos militares, o guerrilheiro fora
atraído para um “ponto” com religiosos dominicanos simpatizantes da ALN e
trocara tiros com os agentes que varejavam o local do encontro. Um
conceituado fotógrafo da revista “Manchete”, Sérgio Vital Tafner Jorge,
então com 33 anos, fez o clique da câmara rolleiflex que registrou
Marighella estirado no banco traseiro do fusca dos dominicanos. Barriga à
mostra, calça aberta, dois filetes de sangue escorrendo pelo rosto.
“Foi
tudo uma farsa”, revela agora à ISTOÉ Sérgio Jorge, que está com 75
anos. “Eu vi os policiais colocando o Marighella no banco de trás do
carro”. Naquela noite, Jorge estava no Estádio do Pacaembu à espera dos
melhores ângulos de um Corinthians x Santos quando ficou sabendo da
morte do guerrilheiro. Ele abandonou o estádio antes mesmo de a notícia
ser confirmada pelos alto-falantes do Pacaembu e recebida com um urro de
comemoração pela torcida. Acompanhado de outros quatro fotógrafos,
Jorge chegou à alameda Casa Branca pouco depois das 20 horas. O que ele
viu ali – e foi proibido de documentar – era diferente do que aparece na
famosa foto estampada depois nas páginas da “Manchete” e em dezenas de
outras publicações. Jorge está decidido a contar para a Comissão da
Verdade, que o governo federal vai instalar no próximo mês, a armação
que testemunhou. Já foi pensando nisso que, no mês passado, com a ajuda
de um amigo que serviu de modelo e um fusquinha emprestado, Jorge
procurou reproduzir numa nova foto exatamente o que presenciou no dia 4
de novembro de 1969. O resultado é a segunda cena da página anteior, à
direita: o amigo de Jorge, representando Marighella, ocupa o banco da
frente do carro, numa posição distinta daquela que a polícia fez questão
de espalhar. Eram os anos de chumbo e havia muita coisa para ser
escondida.
NO MESMO CENÁRIO
O fotógrafo Sérgio Jorge volta ao mesmo ponto da alameda Casa Branca para contar a armação que testemunhou
Os
mais famosos retratos da ditadura começam a contar suas verdadeiras
histórias. Sérgio Jorge ganhou coragem de revelar a farsa da morte de
Marighella depois que o fotógrafo-perito Silvaldo Leung Vieira contou,
no dia 5 de janeiro, ao jornal “Folha de S. Paulo” que sua foto do
jornalista Vladimir Herzog morto nas dependências do DOI-Codi, em 1975,
era – como já se sabia – uma encenação criada pelos militares. Vieira
está atrás de uma indenização do Estado brasileiro, pois julga que teve
prejudicada sua carreira de funcionário público. Já Sérgio Jorge quer
apenas acertar contas com o passado. “Vi que tinha chegado a hora de
contar. O Brasil mudou”, diz ele. Durante mais de 40 anos, Jorge remoeu
os fatos daquela noite, que é capaz de reconstituir em detalhes. Ele e
os outros fotógrafos, logo que chegaram à alameda Casa Branca, foram
recebidos aos gritos pelo temido delegado do Dops, Sérgio Paranhos
Fleury, o homem que comandou o cerco a Marighella. “Não quero ouvir um
clique! Todos encostados no muro, com as máquinas no chão!”, ordenou
Fleury. Ninguém ousou desobedecer. “Era uma loucura, ficamos vendo tudo
aquilo acontecer sem poder registrar nada”, diz Jorge. Marighella estava
no banco da frente, com uma perna para dentro do carro e outra para
fora, os dois braços caídos e quase nada de sangue na roupa. Três
policiais retiraram o corpo do fusca (veja reconstituição acima) e o
deitaram na calçada. Abriram a calça de Marighella e revistaram seus
bolsos. Tentaram, então, recolocá-lo no banco de trás. “Mas não
conseguiam e foi preciso que um dos policiais desse a volta no automóvel
e puxasse o corpo para dentro.” A ação durou cerca de 40 minutos até
que os fotógrafos foram autorizados a fotografar. Chegando perto do
carro, Sérgio Jorge pôde ver que havia uma pasta atrás do banco
dianteiro e, sobre o assento de trás, uma peruca e uma capa.
Na
presença de Sérgio Jorge e dos demais fotógrafos, os policiais, sem
nenhum constrangimento, encenavam um número que viria a se tornar
corriqueiro naqueles tempos: o teatro do confronto entre guerrilheiros
urbanos e as forças da repressão. A ditadura no Brasil deixou um saldo
macabro de 475 adversários mortos, 163 deles ainda desaparecidos. Foi a
partir de 1969, o ano da morte de Marighella, que o regime militar
ingressou em seu período mais duro e a eliminação de inimigos passou a
ser regra. As execuções de militantes de esquerda, sem chance de prisão,
tornaram-se tão comuns quanto os laudos fantasiosos de inquéritos
policiais destinados apenas a escamotear uma política oficial de
extermínio. No caso de Carlos Marighella, o esclarecimento de sua morte é
especialmente problemático, pois existem pelo menos três versões
conflitantes para ela. Primeiro há a versão dos militares, segundo a
qual ele foi varado por uma rajada de metralhadora quando, do banco de
trás do fusca dos dominicanos, reagiu a tiros a uma ordem de prisão do
delegado Fleury. A perícia, entretanto, acabou concluindo que não saíra
um tiro sequer da arma de Marighella. Desse modo, a tese da polícia
parece não ser mais que um esforço para esconder a provável execução
sumária do guerrilheiro, além de uma tentativa de driblar uma
complicação extra do episódio: a suspeita de que, naquela noite, foi o
fogo amigo que matou também uma jovem policial e um dentista alemão que
casualmente passava pelo local no momento do tiroteio (outro delegado,
um desafeto de Fleury, acabou baleado na virilha). A segunda versão é a
dos dois frades dominicanos que a polícia usou como isca para
Marighella. Em seu julgamento, os religiosos sustentaram que o
guerrilheiro foi executado no meio da rua, longe do fusca em que eles
estavam. Por fim, o Grupo Tortura Nunca Mais, em 1996, adotou as
conclusões de um laudo em que legistas garantem que Marighella foi morto
com um tiro no peito à queima-roupa, que seccionou-lhe a aorta, e
alvejado ainda por outros três disparos.
O CASO VLADO
O fotógrafo-perito que registrou a encenação do suposto suicídio de Vladimir Herzog também reconheceu a montagem
Carlos
Marighella era autor do “Manual do Guerrilheiro Urbano”, um confuso
texto de 50 páginas que jovens esquerdistas de todo o mundo liam como
uma bíblia. Figura principal dos cartazes amarelos que a ditadura
espalhava com retratos de terroristas, vinha sendo caçado pelo Dops e
monitorado pela máquina de informações dos Estados Unidos. Um ano antes
de sua morte, o consulado americano em São Paulo já informara seu
governo sobre as relações de Marighella com os dominicanos. Agora, o
depoimento exclusivo de Sérgio Jorge à ISTOÉ – e que ele se dispõe a
prestar também à Comissão da Verdade, instituída pelo governo para
esclarecer as mortes ocorridas durante a ditadura – poderá jogar uma
nova luz sobre os fatos, embora ainda seja difícil fazer conjecturas
sobre as intenções específicas dos policiais que transferiram o corpo de
Marighella para o banco de trás do carro.
Sérgio
Jorge foi o primeiro fotógrafo do País a ganhar o Prêmio Esso de
Jornalismo. Ele conta que, quando chegou à redação da “Manchete” com a
foto do cadáver de Marighella, teve o cuidado de relatar a seu chefe a
armação que tinha visto. Ouviu como resposta que a versão de Fleury
seria a definitiva e, sempre avesso à política, resolveu se calar. “Todo
mundo me dizia para não me meter com essas coisas que era muito
perigoso”, diz ele. O caso só voltou a perturbá-lo cinco anos atrás, no
momento em que começou a selecionar fotografias para um livro em seu
arquivo pessoal, com mais de 60 mil imagens. As fotos de Marighella não
estão com ele: foram parar num arquivo da revista “Manchete”,
recentemente leiloado. “Dos fotógrafos que estavam comigo naquele dia,
só eu estou vivo. Cheguei à conclusão de que não posso levar para o
túmulo a história verdadeira”, diz Sérgio Jorge. “Sempre tive muito
medo, mas com a Comissão da Verdade acho que chegou a hora.”
COMBATE
Há mais de quatro décadas, Simas denunciou a farsa
Nilmário
Miranda, um dos representantes da comissão do Ministério da Justiça
que, em 1996, responsabilizou o Estado brasileiro pela morte de
Marighella, considera importante o depoimento de Sérgio Jorge. “Isso vai
ajudar a Comissão da Verdade a regatar os fatos históricos”, diz ele.
“Ao invés de suicídios, assassinatos cruéis. Ao invés de fugas da
prisão, desaparecimentos forçados. Ao invés de tiroteios simulados,
execuções à queima-roupa.” O advogado de presos políticos Mário Simas,
que foi a primeira voz a afrontar a versão oficial da morte de
Marighella, quando fazia a defesa dos frades dominicanos, espera que o
depoimento de Jorge possa, finalmente, contribuir para o esclarecimento
do caso. “No processo, lancei dez dúvidas sobre a versão oficial que
nunca foram respondidas pelo Estado”, diz ele. Simas, que presidiu a
Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, não tem dúvidas
sobre o modo de ação da polícia: “O delegado Fleury era um caçador sem
escrúpulos, que não respeitava nada para chegar a seus objetivos.”
Aos
86 anos, a mulher de Marighella, Clara Charf, se espanta ao saber das
revelações de Sérgio Jorge. Ela estranha que seu marido, que não sabia
dirigir, estivesse ocupando o banco do motorista do fusca. Mas acredita
que este depoimento possa enterrar de vez a versão “mentirosa” da
polícia. “É um impulso muito grande para a revisão da história”, diz
ela. É uma expectativa idêntica à do ex-militante Otávio Ângelo,
certamente um dos últimos companheiros que viram Marighella vivo. Membro
do Grupo Tático Armado da ALN, Otávio Ângelo estava no derradeiro
“ponto” que Marighella cumpriu no fim da tarde do dia 4 de novembro de
1969, antes de ir para a alameda Casa Branca. Eles se encontraram no
bairro do Tatuapé, na zona leste de São Paulo e, segundo Otávio Ângelo,
Marighella se mostrava muito preocupado com a segurança da organização
por causa da prisão de vários militantes. “Ele parecia nervoso,
apreensivo”, relembra. “Falava que estávamos no cerco e que, se não
conseguíssemos sair desse cerco, não sobreviveríamos.” A previsão de
Marighella, como se vê, acabaria cumprida em poucas horas.
*GilsonSampaio
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