O dia em que a Europa encarou a Troika
Alexis
Tsipras, do Syriza, grande novidade nas eleições gregas. Partidos que
se identificam com "indignados" tiveram votação expressiva em 6/5
Em
quatro países, eleitores rejeitam ditadura das finanças, apoiam
partidos rebeldes e sugerem: amadurecem possibilidades de uma nova
política
Por Antonio Martins
Desde
domingo, o novo presidente francês – François Hollande, do Partido
Socialista – está nas manchetes. Pergunta-se como este homem de
aparência tímida venceu o arrogante Nicolas Sarkozy, seu antecessor; que
terá levado os eleitores a escolher um projeto dado há tanto tempo como
morto; até onde poderá chegar o chefe de governo, em sua promessa de
questionar as políticas impostas pela
Troika1. Mas quase não se fala do quadro mais geral.
A
vitória de Hollande foi apenas um dos feitos de um dia histórico. Em
quatro países – França, Grécia, Itália e Alemanha – os eleitores
participaram de distintas eleições, mas enviaram três mensagens muito
semelhantes, que têm potência para sacudir um continente em crise.
1.
Eles já não aceitam que seus governos adotem, como se fossem as únicas
possíveis, as medidas de cortes de direitos e serviços públicos ditadas
pela
oligarquia financeira.
2.
Para alcançar mudança, eles estão dispostos a sacudir sistemas de
partidos estabelecidos há décadas, e a optar por organizações e grupos
antes tidos como outsiders sem futuro.
3.
Esta disposição pode favorecer projetos que expressam, no terreno
institucional, algo muito semelhante ao que propõem, nas ruas, grupos
como os Indignados e o Occupy.
A curto prazo, o resultado eleitoral
francês é o mais capaz de abalar a atual ordem europeia (leia
nossa análise
a respeito) mas ele foi, também, o menos surpreendente. Uma série de
motivos levou o eleitorado a confiar nos socialistas. Sua experiência
anterior no governo (François
Mitterandgovernou
o país entre 1982 e 1995) é mista – diferente de outros partidos
social-democratas europeus, marcados pelo abandono de seu próprio
projeto e pela rendição às lógicas “de mercado”. Os setores à esquerda
(em especial os que
apoiaram
Jean-Luc Mélenchon no primeiro turno) votaram e trabalharam ativamente
por Hollande, na disputa final. O candidato vitorioso apresentou um
programa claro (ainda que tímido) de ruptura com as políticas hoje
praticadas na Europa.
De mesmo sentido, porém muito mais profunda, foi a reviravolta na Grécia.
O eleitorado massacrou os dois partidos (Nova Democracia, de
centro-direita e Pasok, “socialista”) que aceitaram aplicar, no país, as
medidas exigidas pela Troika. Desde 1974, revezavam-se no
poder. Há apenas três anos, quando eram rivais, obtiveram 77,4% dos
votos. Agora, juntos, ficaram reduzidos a 32%. Não conseguirão formar um governo e o país irá provavelmente a novas eleições, em junho.
Como grande surpresa, emergiu a
Syriza,
que significa Coalizão da Esquerda Radical. Articulada formalmente
apenas em 2004, tinha, até as eleições parlamentares de 2009, apenas
4,6% dos votos. Passou agora a 16,75% – à frente do Pasok e apenas 150
mil votos atrás da Nova Democracia. É uma aliança entre pequenas
organizações partidárias e coletivos de cidadãos autônomos. Sua origem
está associadas ao movimento altermundista: remonta a 2001, quando um
grupo de movimentos gregos articulou-se para participar dos protestos
contra o G-8, em Florença, e do I Fórum Social Europeu.
Nos
últimos anos, soube abrir-se a setores que vão muito além do que sugere
seu nome. Toda sua campanha foi baseada na denúncia das políticas de
“austeridade” e dos acordos de “resgate” firmados entre o e Troika (“não
são a salvação, mas a tragédia”, afirmou Alexis Tsipras, um engenheiro
de 37 anos que lidera o movimento). Marginalizada pela mídia, esta
postura conquistou o eleitorado. Não se exclui sequer a hipótese de o
Syriza crescer ainda mais e formar um governo de esquerda. Se nenhum
partido for capaz de montar uma coalizão majoritária no Parlamento, nos
próximos dias, haverá eleições suplementares em junho e, então, parte do
eleitorado poderá aderir a uma proposta até há pouco considerada
inviável.
Um terceiro tremor de grandes proporções pode estar se armando na própria
Alemanha
– de onde a chanceler Angela Merkel comanda a adoção das políticas
favoráveis à oligarquia financeira. Também no domingo, a coalizão de
Merkel foi derrotada no pequeno estado nórdico de Schleswig Holstein,
tradicionalmente conservador e fronteiriço à Dinamarca. A derrota
segue-se a dois insucessos da chanceler (em Berlim e no Sarre) nos
últimos meses. Poderá assumir dimensões muito mais dramáticas caso se
repita no próximo domingo (13/5), quando irá às urnas o mais populoso
estado germânico, a Westfália-Renânia do Norte.
Até
no pacato Scleswig, de apenas 2,8 milhões de habitantes e fortemente
influenciado pela vida rural, houve novidades relevantes. Embora maior
força individual, o partido de Merkel (CDU, União Democrática Cristã)
obteve a mais baixa votação desde 1950 (30,5%). Seu aliado na coalizão
que governa o país (o FDP, de postura expressamente neoliberal)
despencou de 14,9% para 8,2% de apoios. Entre os grupos emergentes está o
Partido Pirata,
que, além de se opor aos cortes de direitos, defende a livre circulação
de conhecimento e a democracia direta. Ele passou de 1,8% para 8,2% e
participará pela primeira vez do Parlamento (o Partido de Esquerda
tradicional caiu de 6% para 2,8%).
A oposição à
“austeridade” e o inconformismo com o sistema político tradicional
manifestaram-se, finalmente, na Itália – onde houve, entre domingo e
ontem, eleições em quase mil prefeituras. O bloco de direita que
governou o país na era Berlusconi desagregou-se e foi vastamente
derrotado. Em 17 das maiores cidades que foram às urnas, candidatos de
centro-esquerda estão à frente, contra apenas 8, em que lideram partidos
da antiga base de apoio do cavaliere (em muitas localidades, a
disputa será resolvida no segundo turno). Haverá mudanças de governo em
Parma, Verona e outras cidades importantes.
Mas
as maiores surpresas foram, também aqui, as formações
não-convencionais. Em Palermo (Sicília), venceu Antonio Di Pietro, da
Itália dos Valores. Antigo magistrado conhecido por sua luta contra a
corrupção nos anos 1980, ele caracterizou-se mais recentemente por se
opor de modo resoluto, no Parlamento, às medidas de “ajuste” exigidas
pela Troika. Ainda mais inesperado foi o despontar de uma
organização inteiramente nova, o Movimento Cinco Estrelas – que
ultrapassou os 10% do eleitorado e superou o centro-direita em cidades
importantes como Gênova e Parma.
Beppe Grillo “o Michael Moore italiano”
Liderado por
Giuseppe (Beppe) Grillo, um ator cômico e
blogueiro popular (algo como “o Michael Moore italiano”, segundo
The Guardian) e
formado há apenas dois anos, o Cinco Estrelas defende a liberdade na
internet e a democracia direta. Seu nome é alusão a cinco princípios:
Água Livre (desprivatizada), Ambiente, Transporte, Conectividade e
Crescimento. Num post publicado logo ontem (7/5), logo após a divulgação
dos resultados eleitorais na França e Grécia, Grillo frisou: “São uma
clara resposta ao Banco Central Europeu. A política estra prevalecendo
sobre as finanças. Há uma tentativa de repostular a democracia. O
castelo de cartas está caindo. (…) É preciso deixar claro que os povos
são donos de seu destino – não os bancos , os
spreads, as agências de avaliação de risco”.
Ainda
não é possível enxergar com clareza as consequências imediatas do voto
rebelde de domingo. As forças que defendem a oligarquia financeira
tentarão neutralizar os resultados. Por seu peso, o grande foco de
atenções é a França – e a mídia conservadora terá papel de destaque no
esforço para evitar que François Hollande leve adiante suas intenções.
Um
texto
publicado nesta terça (8/5), pela agência Reuters, dá a senha. Ele
sugere que o novo presidente renuncie a suas promessas de reativar e
reforçar os serviços públicos. Para não desgastar-se, poderia usar, como
pretexto, a revisão que o Tribunal de Contas faz, anualmente, sobre as
contas nacionais. Deveria alegar que números muito desfavoráveis o
impedem de realizar o que propôs. Esta é, segue o texto, a única
alternativa para “evitar o baque dos mercados financeiros”, que não
aceitarão “déficits recorrentes e dívida crescente”.
Como
o sucesso de tal manobra é incerto, outra hipótese é uma rápida
retomada das tensões financeiras que agitaram a Europa em 2011. Foi o
que se viu nos dois primeiros dias após o voto de protesto de domingo.
Na terça, o euro caiu abaixo de 1,30 dólares pela primeira vez em quatro
meses. As bolsas de Frankfurt, Londres e Paris sofreram perdas
importantes. O nervosismo acentuou-se depois que Alex Tsipras, líder da
coalizão de esquerda grega
afirmou, em completa sintonia com o resultado eleitoral em seu país: “O veredito popular é claro: o acordo [com a
Troika] é nulo”.
Muito
mais importante que os prognósticos de curto prazo é, porém, uma
mudança de ânimo, que se esboça entre as sociedades. Ao contrário do que
vinha ocorrendo nos dois últimos anos, os eleitores não se limitaram a
aproveitar as eleições para afastar o governo no poder – e dar vitória a
seu
adversário tradicional.
Eles
sinalizaram, com seu voto em favor de propostas antes inusitadas, que
podem entrar em sintonia com as ruas – onde se gritava, no ano passado,
“nem políticos, nem banqueiros”. Esta atitude abre, por sua vez, caminho para um passo complementar. Movimentos como o dos indignados,
que até agora desprezavam o espaço institucional, podem abrir-se para
ele, ao perceberem que há espaço e audiência para suas propostas. Neste
caso, surgiria uma dinâmica de alimentação recíproca. A força crescente
das manifestações fortaleceria grupos políticos como os que sobressaíram
no domingo; e estes ajudariam as ruas a formular, além de protestos,
alternativas concretas para novas relações sociais.
A série de manifestações que começa em diversas partes do mundo, neste 12 de Maio, pode ser o primeiro teste desta hipótese.
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1. Compõem a
Troika a
Comissão Europeia, o Banco Central Europeu (BCE) e o Fundo Monetário
Internacional (FMI). Desde 2009, as três instituições têm agido em
conjunto para pressionar os Estados a adotar políticas que, diante da
crise, penalizam as sociedades, preservam os privilégios do mundo
financeiro-corporativo e esvaziam a democracia, transformando-a num
regime de fachada. O nome é referência aos grupos de três burocratas que
dirigiram a União Soviética em distintas ocasiões, a partir de 1954.
*GilsonSampaio