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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, setembro 22, 2011

A humilhação de Barack Obama



Robert Grenier, Al-Jazeera, Qatar
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Robert Grenier, hoje aposentado, serviu por 27 anos como analista do Serviço Secreto da CIA. De 2004 a 2006, dirigiu, na Agência, o Centro de Contraterrorismo.
Mais cedo ou mais tarde, acontecerá. Talvez aconteça pouco antes do primeiro encontro de chefes de estado em New York. Talvez aconteça pouco antes do primeiro encontro de coxia com Binyamin Netanyahu. Ou, também, pode acontecer como reação cumulativa, depois de uma série de encontros embaraçosos com outros chefes de estado. Mas acontecerá.
O Primeiro Ministro israelense Netanyahu (foto) rejeitou sem qualquer escrúpulo o discurso do Presidente Barack Obama
Em algum momento dessa semana, durante a visita à Assembleia Geral da ONU, para a abertura dos trabalhos, o presidente Obama há de sentir um impulso, um irresistível desejo. Vai decidir levantar-se, livrar-se das correias que o manipulam e da onipresente burocracia que tenta ditar-lhe cada movimento e submeter até sua dignidade pessoal e, então, ele dirá “Basta”.
Em abril de 1995, o presidente Clinton recebeu a então primeira-ministra do Paquistão Benazir Bhutto. As relações EUA-Paquistão estavam em queda livre. Poucos anos antes, os EUA haviam começado a aplicar sanções autorizadas pela então chamada “Emenda Pressler”, segundo a qual o Paquistão teria de ser punido com suspensão total de qualquer ajuda e impedido de fazer negócios de compra e venda de equipamentos militares, se se constatasse que buscava construir capacidade nuclear. O primeiro presidente Bush descobrira a coisa, e, naquele momento, os laços entre os dois países estavam sendo progressivamente cortados.
No cerne do crescente mal-estar entre as duas nações estava o cancelamento da venda de 28 jatos F-16. Os paquistaneses sabiam, desde quando assinaram o compromisso de compra, que o negócio poderia ser cancelado, se se invocasse a Emenda Pressler. Então, havendo a lei, e o presidente Bush já tendo declarado a culpa dos Paquistaneses, já nem se cogitava de entregar os aviões. Mas havia outra dificuldade.
Os paquistaneses já haviam pago enorme quantidade de dinheiro, com enorme sacrifício, a título de adiantamento, na compra dos jatos. E naquele momento, segundo os EUA, os paquistaneses não poderiam receber os aviões nem poderiam ser reembolsados do que já haviam pago. Claro. O problema é que já não havia dinheiro para devolver; a empresa que recebera, gastara. Os aviões estavam construídos. Não havia meio legal, na legislação norte-americana, para fazer surgir o dinheiro para reembolsar os paquistaneses.
Talvez, sim, vender os F-16s a outro país e, com o dinheiro assim havido, reembolsava-se os paquistaneses, mas essa via também teria de ser aprovada nos EUA por um Congresso hostil, e dificilmente se viabilizaria. Em resumo, não havia o que fazer. E, como que acrescentando insulto à injúria, os paquistaneses também estavam sendo forçados a pagar uma pesada taxa anual pela armazenagem de cada avião – cada avião que não podiam receber.
Defender o indefensável
Obama será forçado a humilhar-se na ONU, enquanto tenta explicar por que ele deve singularmente vetar a proposta para criação do Estado palestino
Quando todo o aparelho de segurança nacional e da política externa dos EUA se move numa mesma direção, é visão impressionante. Vasto aparato da burocracia movia-se para elaborar longos argumentos que levassem a concluir a favor de uma decisão já tomada. E aqueles argumentos eram hipnoticamente repetidos de dúzias de diferentes maneiras, para uso em diferentes fóruns. Virou caso clássico.
Via-me do lado de dentro da burocracia do Departamento de Estado, onde estava trabalhando à época. Fabricavam-se justificativas para o patentemente injustificável, que chegavam aos paquistaneses em todos os níveis. Saiam pela boca dos porta-vozes do Departamento de Estado e da Casa Branca, eram repetidos em depoimentos ao Congresso, distribuídos para a imprensa em diferentes enquadramentos, elaborados em respostas escritas a serem repetidas por deputados e senadores, e ao público em geral, para nem falar dos comunicados internos que circulavam dentro do Executivo.
Todo aquele ímpeto burocrático alcançou o clímax quando o presidente Clinton estava prestes a ter de repetir a mesma mensagem, pessoalmente, à primeira-ministra Bhutto.
Os preparativos para esse tipo de encontro também são muito impressionantes. Preparam-se grossos volumes de briefings que exigem, cada um, centenas de homens/hora de trabalho. São contextualizações, enquadramentos históricos e prospectivos e elaboradíssimas justificativas políticas, apoiados todos em memorandos e pareceres de especialistas em leis, organizados em tabelas em ordem alfabética, acompanhados de esmiuçamento de cada mínimo detalhe, um conjunto de dados e pareceres e informes organizados para converter o presidente em virtual boneco de ventríloquo. E então a coisa toda passa pelo crivo do sistema e, liberado, chega, através do secretário de Estado e do Conselho de Segurança Nacional, ao presidente em pessoa.
Aconteceu também naquele caso. Mas naquele caso, no final, depois de ter cuidadosamente estudado todo aquele nonsense codificado, aquele monumento à inércia burocrática, e pouco antes de andar na direção da ministra Bhutto, quando o presidente teria de olhar olho no olho da ministra, e defender o que era patentemente indefensável, Clinton fez o que ninguém – ninguém – na burocracia jamais imaginou ou teria imaginado.
Com o senso comum, o inato senso de justiça com que Deus dotou quase todas as crianças de cinco anos de idade, Clinton disse, simplesmente: “Mas isso não é justo”. E então, maravilha das maravilhas, entrou na sala e repetiu exatamente as mesmas palavras à ministra Bhutto.
Eis as palavras de Clinton, gravadas poucos instantes depois, quando os dois líderes apareceram ante a imprensa: “Já lhe disse claramente, e creio que nenhum presidente dos EUA jamais disse isso antes: não está certo que os EUA fiquemos com o dinheiro e com o equipamento. Não está certo. E vou tentar encontrar um modo de resolver o problema.”
Se você jamais trabalhou dentro da burocracia da política internacional dos EUA, se nunca viu aquilo por dentro, você não conseguirá imaginar o efeito dessas palavras – uma posição política completamente construída, ali, publicamente descartada pelo presidente, completa e inesperadamente descartada, no último instante, e em palanque planetário. Deve ter sido maravilhoso. Infelizmente, tendo assistido à toda a preparação, não assisti ao desfecho, porque, então, já trabalhava noutro emprego. Daria qualquer coisa para ter assistido ao vivo.
Pode acontecer outra vez?
Mas aquela questão era comparativamente muito menor, acompanhada só por uns poucos, e só nos círculos políticos do sul da Ásia. Imaginem então, se puderem, acontecer algo parecido, essa semana, na Assembleia Geral da ONU, quando o presidente Obama terá de explicar a atual política dos EUA sobre o pedido dos palestinos, que solicitam reconhecimento internacional para um novo estado.
Todos sabemos o que os EUA andam dizendo: que o que o presidente Mahmoud Abbas (Abu Mazen) está fazendo é contraproducente, que implica repudiar os acordos de Oslo, que é tentativa de negar a necessidade de uma solução negociada com os israelenses. Vimos o aparato-monstro da política dos EUA em movimento, com os mesmos argumentos repetidos pelos enviados dos EUA aos palestinos e ao Quarteto, publicamente elaborados pela secretária de Estado e pelo porta-voz da Casa Branca, e repetidos em dúzias de outros fóruns, dos maiores, aos menores.
Abbas deve ter a impressão de que Obama é caso de múltiplas personalidades – professa apoio à
solução dos dois estados e, ao mesmo tempo, veta a resolução que possibilitaria aquela solução
Mas repetir sempre a mesma coisa, em tom alto e insistente, não converte nonsense em argumento consistente. O presidente Obama sabe muito bem disso. Ele compreende as idas e vindas da questão Israel-palestinos. Ele sabe que o processo de paz chegou a um beco sem saída.
No início do governo, o presidente tentou reviver as negociações, ordenando completo congelamento das construções na Cisjordânia. Só conseguiu que o primeiro-ministro de Israel Netanyahu, para grande embaraço de todos, o forçasse a desdizer-se. Quando, em maio passado, Obama cometeu a temeridade de dizer publicamente aos israelenses que a atual política de Israel para os palestinos é impossível e insustentável, e modestamente sugeriu que negociassem uma fórmula para sair do impasse, foi publicamente castigado por Netanyahu e teve de passar pela humilhação de ver líderes do Congresso dos EUA, de seu próprio partido, repudiarem o presidente e manifestarem-se a favor do primeiro-ministro israelense.
Em resposta, embora não possa admiti-lo, Obama lavou as mãos e afastou-se da questão palestina. Sabe que não pode fazer mais nada. Nem por isso o problema diminuiu ou moveu-se, um passo que fosse.
Agora, outra vez, Obama está sendo obrigado a apoiar publicamente uma posição política israelense fundamentalmente oposta à sua posição pessoal. Obama sabe perfeitamente bem que Netanyahu não tem qualquer intenção de permitir que se forme um estado palestino viável, e que os palestinos têm pouca chance de sucesso, no caminho que escolheram seguir na ONU.
Também entende que o apoio solitário dos EUA a Israel e o inevitável veto ao pedido dos palestinos que requerem o reconhecimento como estado membro das Nações Unidas, minarão, talvez irremediavelmente, a posição dos EUA no Oriente Médio em democratização e exporão, como fraude, o apoio apenas nominal dos EUA aos direitos populares dos árabes.
A dimensão humana
Tudo isso está bem entendido. Já se pode ver o que acontecerá. Mas sempre esquecemos a dimensão humana.
Para o presidente de uma grande nação, em alguns momentos, o que é público se torna pessoal, como aconteceu com Bill Clinton naquele dia de abril de 1995. Não conheço pessoalmente o presidente Obama, mas tenho a impressão de que é homem orgulhoso, que não se vê como político ordinário, mas como líder que transforma. Obama tentou autocentradamente, esculpir um papel desse tipo para si mesmo, no contexto das relações dos EUA com o mundo muçulmano, mas foi repetidamente bloqueado, publicamente e muito feiamente.
Uma coisa é sacrificar princípios ante a realidade política. Todos os políticos são forçados a isso, em diferentes momentos. Mas outra coisa é fazê-lo oficial e publicamente, ver-se obrigado a dizer o que o mundo sabe que são mentiras, em encontro frente a frente, com outros líderes mundiais, que sabem o que ouvem e que, como resultado, verão, no presidente dos EUA, o personagem degradado.
Eis o que está guardado para o presidente Obama, na ONU. E ele sabe disso.
É verdade que, por mais ocupado que seja o presidente dos EUA, há vias de escape, muitos meios para evitar o que desagrade. Mas, em algum momento, quando o presidente estiver sozinho com seu livro de informes em New York, acontecerá. Ele sentirá um calor, um aperto no peito, e será tomado pelo impulso de pegar o livro encadernado em plástico e jogá-lo na cabeça de alguém. Então, sairá e dirá o que realmente pensa.
Todos sabemos que o presidente não fará nada disso. Ele sufocará o impulso, porque não sufocá-lo seria suicídio político. Não. O presidente engolirá em seco e fará o que é obrigado a fazer.
Mas, sim, bem valeria a pena dedicar alguma consideração à ideia de fugir do script, porque os EUA mais uma vez estão minando a própria segurança e a própria posição global, sem motivo algum, gratuitamente, para nada, em obediência cega e servil a um aliado mal-agradecido e autodestrutivo, e que, dessa vez, terá conseguido mais, algo mais pessoal: a mortificação pública de Barack Hussein Obama.


O dia em que a Palestina derrotou os EUA

Na ausência explícita do primeiro presidente negro dos EUA, advogado ativista dos direitos civis, eleito, entre outras coisas, para recuperar a moral mundial, Obama compareceu na ONU como vergonha. Na postura evasiva e envergonhada do homem mais poderoso do mundo está a vitória palestina.
Entre a presença de Dilma Rousseff na abertura da 66ª Assembleia Geral da ONU e a ausência de Barack Obama, explícita no discurso do presidente dos EUA, abriu-se um flanco. Faltou Obama no discurso de um presidente enfraquecido e na defensiva, refém de interlocutores ausentes (Bin Laden e o Hamas). E Dilma Rousseff esteve lá, inteira, com a sua história, os seus compromissos e uma agenda clara. Ela não tem, perante o mundo, do que se envergonhar. E o presidente dos EUA tem tanto do que se envergonhar que se envergonhou, nas palavras, na cabeça baixa, na postura de quem fala no que não acredita e defende a posição dos seus adversários. Nesta vergonha de Obama está a vitória palestina. Na ausência explícita do primeiro presidente negro, advogado ativista dos direitos civis, eleito, entre outras coisas, para recuperar a moral mundial, Obama compareceu como vergonha. Mas é preciso que se diga, de novo: na postura evasiva e derrotada do homem mais poderoso do mundo está a vitória palestina.
É verdade que, de um ponto de vista realista, o movimento da OLP tem pela frente muitas fronteiras a serem desfeitas, refeitas e estabelecidas. Dentre os árabes e palestinos há pelo menos os seguintes problemas, na proposta capitaneada por Abbas: o aparente escanteio dos refugiados palestinos, o pouco ou nenhum debate relativo a compensações dos direitos destes; há também questões em aberto sobre o estatuto jurídico e a competência da OLP em se converter ela mesma em Estado, há o Hamas, que já se retirou da proposta, porque o movimento da OLP não comporta uma recusa da existência do estado de Israel e há também a histórica hipocrisia de muitos dos países árabes, frente ao povo palestino, que costuma deixa-los à própria sorte (não é demais lembrar que Assad mandou bombardear um campo de refugiados palestinos, na Síria, há menos de um mês). Na relação com Israel e os israelenses, o problema é antes de tudo de fronteiras e tudo indica que este confronto, com o reconhecimento do estado palestino, na Assembleia Geral da ONU, ganhará um estatuto político mais claro na comunidade internacional.
Dilma lembrou algo importante, que serve de pista para entender a enrascada israelense perante a comunidade internacional, daqui para a frente: “O mundo sofre hoje as dolorosas consequências das intervenções, possibilitando a infiltração do terrorismo, onde ele não existia. Muito se fala da responsabilidade de proteger, pouco se fala da responsabilidade ao proteger”. Esta afirmação traduz com muita propriedade também a relação dos EUA com sucessivos governos israelenses, mesmo quando estes seguem violando o direito internacional. À parte a percepção de que Obama sabe bem da responsabilidade que seu país tem pela consequências sobre os palestinos de suas decisões e omissões, o que de fato sobressai é que o governo israelense foi exposto formalmente hoje como adversário de uma vontade reconhecida da comunidade internacional. Isso significa, entre outras coisas, que as violações pesarão mais, que construir assentamentos se tornará mais caro politicamente, que a defesa da retomada do processo de paz não ficará mais tão facilmente refém do ardil da “falta de interlocutores” ou da não negociação com terroristas.
Os passos dados pela OLP foram desde o começo de natureza diplomática, política, voltada à negociação. Por mais que o Hamas tenha fustigado, apesar das diatribes verbais do presidente do Irã, com a iminência de um atrito maior entre Egito e Israel, que poderia vir a fortalecer o Hamas, pois bem, apesar de tudo isso, Abbas seguiu obstinado a via da negociação com a comunidade internacional.
E Israel, agora, não pode mais dizer que não tem interlocutor na região, porque todos querem destruí-lo e não o reconhecem. Este passo foi dado, já, inclusive por Israel. O país é uma realidade e, fora da retórica oportunista do Hamas e do Hezbollah, ninguém questiona a legitimidade e o direito de Israel a existir, como país soberano e autodeterminado e membro da comunidade internacional. É nota característica da vitória palestina hoje a exposição de que o Hamas e o Hezbollah só são interlocutores da intolerância, da falta de respeito e do desprezo ao direito, ao estado de direito e ao direito internacional. Numa palavra, a exposição de que o interlocutor do Hamas é Avigdor Lieberman.
Resta saber se Israel pretende ser reconhecido se não reconhece. Se pretende prosseguir na mais longa ocupação militar moderna ou se está disposto a ser um estado respeitável na comunidade internacional. Hoje, estas considerações se tornaram muito mais acessíveis ao imaginário e à percepção das pessoas, frente ao movimento palestino, à celebração nas ruas da Palestina. E ao acontecimento a um só tempo luminoso e vergonhoso, na Assembleia da ONU.
Obama disse e repetiu o truísmo de que a paz é uma coisa difícil. Disse a verdade para iludir e, de tanto saber o que estava fazendo, envergonhou-se antes de dizer não aos palestinos. O presidente dos EUA entrou em campanha pela reeleição e parece cada vez mais cativo dos seus adversários, inclusive dos adversários internos, do seu partido. Em 19 de maio deste ano, falou em defesa das fronteiras de 67 e hoje balbuciou como um boneco de ventríloquo. Quem é o ventríloquo de Obama, pouco importa, agora. Dizer que é Avigdor Lieberman, ou Netanyahu é mentir. O ventríloquo de Obama é o medo e a derrota. Essas coisas que tornaram a sua presença hoje na ONU uma retumbante ausência e uma vergonha. A paz assim não é difícil, mas impossível.
A possibilidade de paz existe, é difícil mesmo, tornou-se mais complexa e talvez mais produtiva exatamente porque avança para o campo do direito, invertendo a prática da região. Na direção oposta à prevalência do fato consumado da construção e do muro de anexação dos territórios palestinos, o movimento da OLP, que teve seu ponto alto ou o fim de seu primeiro ato hoje, na Assembleia Geral, visa a estabelecer as condições de possibilidade de um estado palestino de fato. É verdade que o fundamento do estado, em boa teoria, é uma regra de reconhecimento que institui o fundamento último do direito. Também é verdade que o Estado não é uma obra de arte, mas um produto histórico. É verdade que os cínicos fizeram e seguem fazendo pouco caso dos palestinos, como se dizendo que os palestinos e Abbas estão desejando e imaginando que amanhã a ocupação tenha cessado (sim, todo cínico é um ingênuo arrogante).
Um ex-embaixador israelense disse que essa questão do reconhecimento do estado palestino virou uma coletiva de imprensa, quando deveria ser tratada de maneira discreta, em segredo. Talvez ele defenda isso para que as coisas continuassem como eram, com os israelenses fingindo que negociavam e bancando a expansão ilegal. Talvez seja só desdém, mesmo. Só que hoje, isso finalmente pouco importa: os palestinos derrotaram os EUA. E daqui para a frente, apesar dos pesares, do quão difícil venha a ser a paz, isso além de ser verdadeiro, permanecerá verdadeiro. Hoje, as desculpas cínicas entoadas por diplomatas entre meia dúzia de representantes no Conselho de Segurança foram substituídas por uma fala pública, envergonhada e embaraçosa do homem mais poderoso do mundo, perante os palestinos.
Poucas, muito poucas vezes na história a verdade irrompe a conjuntura para ser enunciada como aquilo que é: a norma de si mesma. Hoje foi um dia assim, e por isso Obama sentiu vergonha, por isso Dilma brilhou. E por isso os palestinos venceram.
Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com
*comtextolivre

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