Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, setembro 09, 2011

Lições da Líbia*

image 
Não é de admirar que nos EUA haja quem clame que a guerra na Líbia possa servir de modelo para outras operações congéneres (ver NYT.com, 28.08.11). Talvez na Síria (com denúncias que os EUA treinam gangs no Iraque para intervir neste país) ou na Argélia. A acção da NATO abriu novos corredores ao islamismo radical e à nebulosa da Al-Qaeda na região do Norte de África.
Luís Carapinha
Sobre a infausta guerra na Líbia muito já foi escrito e dito. Dos canais da comunicação social dominante continuam a jorrar rios de falsidade e desinformação, com muito folclore e tiros para o ar (quando não à queima-roupa) à mistura. Sobressai atrozmente, neste novíssimo jornalismo corporativo embedded com o imperialismo, a irracional desvontade assumida ou consentida (ao que os tempos obrigam…) em ler e compreender a realidade.
Importa pois recuperar os traços e carácter essencial desta guerra.
Uma guerra de inspiração colonial, como aliás o lembra o símbolo da bandeira do rei Ídris hasteada pelos bandos armados socorridos e utilizados pela NATO, desde o início apontada contra a soberania, a independência e integridade territorial da Líbia.
Uma guerra de espoliação dos preciosos recursos e riquezas nacionais e de destruição das infra-estruturas líbias. Trate agora o sempre solícito Ban Ki-moon, fingindo ignorar os crimes da NATO e a execução do direito internacional, a que não é mesmo poupada a famigerada resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, de lançar ventos ao negócio da «reconstrução». Empreendimento bem consentâneo com a exigência da «comunidade internacional» em enviar uma missão fardada para o terreno (sob comando da NATO? da UE?) a juntar aos conselheiros militares e tropas especiais de diversos países da NATO e «aliados árabes» que desde há meses actuam em território líbio.
Uma guerra a inaugurar o novo conceito estratégico aprovado pela NATO em 2010, que não deixou de marcar um ponto de inflexão no desenrolar das «revoltas árabes», expondo os perigos mortais das debilidades e fragilidades organizativas e das teses que insistem na salvaguarda do «espontaneísmo» num processo verdadeiramente emancipador. Suprema hipocrisia que atesta ao mesmo tempo da sua capacidade operacional, o imperialismo surge a cavalgar a rebelião árabe, envergando a máscara de paladino da causa humanitária e da democracia (tal como na guerra de desmembramento da Jugoslávia de 1999, então desatada à revelia das Nações Unidas). Manobra que soube tirar partido no plano interno da f(r)actura da gradual readmissão da Líbia no «convívio do grande capital» ao longo da última década, explorando simultaneamente no plano regional as ilusões e divisões reveladas no seio das forças que objectivamente têm desempenhado um papel destacado na combate à agenda hegemónica das potências imperialistas e seus aliados.
Uma guerra que remete para estratégia de largo prazo dos EUA para África (onde há anos procura um hospedeiro para o AFRICOM) e para a lenta mas inexorável tectónica da profunda redivisão e rearrumação de forças em curso no plano mundial. São sintomáticas as palavras de um responsável da companhia pirata petrolífera sediada em Benghazi ao referir que [no redesenhar do negócio do petróleo] «não temos problemas com as companhias europeias (…) mas há algumas questões políticas com a Rússia, China e Brasil» (Público, 23.08.11).
Uma guerra que acontece no pano de fundo do agravamento da grande crise do capitalismo que atinge duramente os EUA, UE e Japão (onde a dívida ultrapassa os 200 por cento do PIB e acaba de ser nomeado o sexto primeiro-ministro dos últimos cinco anos). Não por acaso a revista Time de 22 de Agosto titula em grandes parangonas, «O declínio e a queda da Europa (e talvez do Ocidente)».
Não é de admirar que nos EUA haja quem clame que a guerra na Líbia possa servir de modelo para outras operações congéneres (ver NYT.com, 28.08.11). Talvez na Síria (com denúncias que os EUA treinam gangs no Iraque para intervir neste país) ou na Argélia. A acção da NATO abriu novos corredores ao islamismo radical e à nebulosa da Al-Qaeda na região do Norte de África.
Na Líbia destroçada e dividida prossegue a agressão da NATO, que só nesta segunda-feira efectuou mais de 40 raids de combate (Ria Novosti, 30.08.11). A resistência patriótica líbia é uma realidade e esperança no longo calvário em que foi afundado aquele país.
*Este artigo foi publicado no “Avante!” nº 1970, de 1.10.2011

Nenhum comentário:

Postar um comentário