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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, setembro 22, 2011

O Hábito

Eu frequento a mesma padaria, diariamente, há mais de dois anos. A senhora do caixa, com lenço preto no cabelo e camiseta impecavelmente branca e bem passada, repete dia sim e outro também a mesma frase:

- Bom dia. Como vai? Algo mais?

O crachá informa que seu nome é Ana.

Charles Chaplin no filme o Grande Ditador, de 1940.
Nestes mais de 24 meses, em nenhum momento, ela me viu. Olha os pães e o queijo, a geléia e o leite, embrulha cada qual com destreza, marca o preço num caderno, registra no computador e devolve tudo atenta às mãos do próximo cliente.

Ontem, depois de informado o valor da compra, entreguei-lhe uma nota de cinquenta reais. E ela perguntou, mexendo nos pacotes:

- É débito ou crédito?

Pegou o dinheiro e repetiu a pergunta, colocando a água em outra sacola:

- É débito ou crédito?

- É à vista, respondi.

Ao perceber que tinha feito uma pergunta sem sentido, olhou nos meus olhos e riu:

- Desculpe, é o hábito.

Percebi que aquela mulher de lenço preto no cabelo e camisa branca, tinha olhos verdes claros, muito bonitos. Como se quisesse mudar de assunto, sem jeito e sem segundas intenções, me perguntou:

- É a primeira vez que o senhor vem aqui?

- Mais ou menos, respondi.

Fui embora lembrando-me da cena final do Grande Ditador, primeiro filme falado de Chaplin, lançado durante a Segunda Guerra. A história é uma sátira ao nazismo e ao fascismo. O personagem principal dirige-se à multidão e diz, entre outras coisas: “Não sois máquina, homens é que sois”.

Quantas vezes por dia nos esquecemos disso? Quantas coisas fazemos mecanicamente, sem sentir, sem ver e sem ouvir? Quantas pessoas com as quais convivemos, no trabalho ou em casa, passam por nós sem serem vistas de verdade?

O personagem de Chaplin, em frente à plateia que o ovaciona, consciente de que o discurso está sendo transmitido pelo rádio, dirige-se a Hannah, seu grande amor, de paradeiro desconhecido:

“Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!”.

O Brasil, dizem as estáticas sociais e econômicas, está saindo das trevas. Mas as pessoas – e principalmente os mais novos, com seus iPods, iPads e iPhones – vivem olhando para baixo, sem reparar ao redor, e fazem isso automaticamente, como Ana, a funcionária da padaria, a mulher de olhos verdes claros, olhos que não vêem.

Fernando Evangelista é jornalista, diretor da Doc Dois Filmes e colaborador do Portal Desacato. Mantém a coluna Revoltas Cotidianas, publicada toda terça-feira.
*notaderodapé

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