Onda de intolerância religiosa no Brasil
Pregadores da barbárie
Rede Brasil Atual
O medo, a ignorância e o preconceito
Tudo o que é diferente de mim me causa no mínimo estranheza”, analisa psicólogo em entrevista
Cristiano Navarro
Para o psicólogo e ebome (que
em Ketu significa: “meu irmão mais velho”) do Ilê Axé Kalamu FunFun,
Vicente Galvão Parizi, a ignorância dá origem ao medo das religiões de
matriz africana.
Parizi, que é mestre em ciências da
religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, entende que
boa parte deste medo foi alimentado pelos preconceitos social e racial.
“Não podemos
esquecer que houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os
negros não possuíam alma e por isso podiam ser escravizados”.
Brasil de Fato – Por que as pessoas têm medo das religiões de matriz africana?
Vicente Galvão Parizi – Acho
que fundamentalmente o medo vem da ignorância e de ideias
pré-concebidas. Mas há vários aspectos a serem observados. Vou
relacionar alguns. Em seu livro Notas sobre a religião dos Orixás e Voduns,
Pierre Verger apresenta documentos sobre o encontro dos brancos
colonizadores e os africanos e como os brancos, em especial os padres,
não podiam entender uma cultura – e uma religião – tão diversa. Por
exemplo: Exu era cultuado ao ar livre, portanto havia assentamentos aos
pés de árvores. Ao ver adeptos dando dobale [saudações a
orixás] nesses assentamentos, os brancos concluíram que se tratava de
culto a árvores. E nos documentos compilados por Verger encontramos
isso: trata-se de pagãos que têm árvores por deuses. Entretanto, nada
mais longe da realidade!
Para psicólogo, preconceito contra religiões de matriz africana
está relacionado a questões raciais e sociais - Foto: Rita Barreto
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Outra confusão é que Exu é representado
com chifres. Para os padres cristãos, chifre é privilegio de Satanás,
portanto Exu é o demônio. E concluíram que os africanos eram adoradores
de Satã. E por aí vai: a ignorância e o desconhecimento gerando
interpretações falsas que, muitas delas, até hoje continuam assombrando
corações e mentes.
Outro aspecto desconhecido pela maioria é
que as religiões africanas são monoteístas. Há um deus único – olorum,
olodumare, qualquer que seja o nome – e suas manifestações – os orixás.
Ou seja, os Orixás não são deuses, são manifestações de deus, são as
forças criadoras de Olorum, as forças da natureza. Mas para a maioria
das pessoas que desconhecem a religião, trata-se de uma religião com
muitos deuses. Nesse sentido, o monoteísmo cristão se enxerga como
superior, e as religiões africanas passam por “primitivas e
politeístas”.
Mas o aspecto crucial, creio eu, é a
questão do sacrifício de animais. As religiões cristãs passaram a
abordar o sacrifício a partir apenas do aspecto simbólico: na
consagração o sacerdote invoca o corpo e o sangue de Cristo e os fiéis
ingerem a hóstia se alimentando desse corpo e desse sangue. Nas
religiões de matriz africana, o sangue é efetivamente derramado. Mais
uma razão para que se diga que são religiões primitivas, que o
desenvolvimento do cristianismo as superou.
Como se dá a construção deste medo?
Tudo o que é diferente de mim me causa
no mínimo estranheza. Foi assim com os colonizadores brancos na China,
no Japão, na América e na África. Para poder entender o diferente de
mim, não posso apenas observar, apenas ver e não perguntar. Não
questionar impede que se compreenda o que realmente acontece. Não
adianta ver pessoas tomando café, ou ler livros sobre o café: apenas tomando café poderei entender o que realmente é tomar café.
O medo, a meu ver, é causado pela
ignorância, pelo desconhecimento, pela falta de diálogo da maioria
cristã com os adeptos de religiões africanas.
O preconceito contra as religiões de matriz africana se dá em conjunto com as questões racial e social?
Certamente. Não podemos esquecer que
houve uma Bula Papal que dizia, em nome de Deus, que os negros não
possuíam alma e por isso podiam ser escravizados. No Novo Mundo, as
religiões de matriz africana eram privilégio de negros, escravos e
pobres. Portanto, praticadas pelos brancos apenas às escondidas. Nesse
sentido, o papel de Joãozinho da Goméia [adepto do candomblé] foi
crucial, e sua ida para o Rio de Janeiro, sua entrada no meio político,
seusshows em teatros, a feitura de brancos etc, tudo serviu
para divulgar a religião no meio de brancos e de pessoas de estrato
social superior.
Como você vê o crescimento das
religiões neopetencostais detentoras de poder em diversas esferas
institucionais (político, judiciário, econômico, de comunicação) que
pregam contra as religiões de matriz africana?
Com muito temor. Na sua maioria, são
cristãos fundamentalistas, atendo-se à forma da lei e não ao seu
sentido. Em tese, Jesus pregava o amor a todos, mas na prática o que o
cristianismo gerou foram religiões absolutamente intransigentes com o
diferente. A Inquisição com suas fogueiras é a melhor demonstração
disso. Mas no Brasil de hoje a Inquisição continua acontecendo nos
rituais de exorcismo contra gays e lésbicas, baseadas na ideia
de que Exu é a personificação do demônio; está presente nos ritos de
renúncia a Satanás, em que adeptos quebram seus ibás de feitura e
renunciam em voz alta aos orixás. Muitos desses sacerdotes estimulam
ações concretas, como ataques a terreiros e adeptos nas ruas fazendo
despacho, assim como ataques a gays e lésbicas nas ruas. Nesse
momento, estamos assistindo pela primeira vez a uma eleição em que o
candidato apoiado pelos neopentecostais – Celso Russomanno – tem chance
real de ser escolhido como prefeito de São Paulo. Fato inédito e que
demonstra a união dessas forças.
A inquisição dos pastores contra nossas matrizes
Por meio de suas rádios e TVs, neopentencostais acirram seu discurso de intolerância contra religiões de matriz africana
Cristiano Navarro
Onda de inquisição de grupos neo-pentencostais contra religiões de matriz africana tem crescido em Pernambuco - Foto: Alex Oliveira-Setur
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Em marcha, carregando faixas e
misturando cantos de louvor com ameaças e incitação ao ódio, um grupo de
centenas de evangélicos mobilizou-se na noite do dia 15 de julho e
tentou invadir o terreiro de pai Jairo de Iemanjá Sabá, localizado no
bairro do Varadouro, em Olinda (PE). As imagens da saída do grupo foram
registradas pelo filósofo e babalorixá Érico Lustosa, no vídeo Cristãos agredindo Terreiro de Candomblé, publicado no Youtube.
Em um segundo vídeo-testemunho, também publicado no Youtube pelo Jornal do Commercio,
Lustosa lembrou que o grupo gritava “Sai daí, Satanás!” e que ameaças
foram feitas por um sujeito desconhecido durante a invasão. “Cuidado
porque eu me converti evangélico, mas eu sou ex-matador”, gritava o
manifestante. Assustados, tanto pai Jairo de Iemanjá quanto Érico
Lustosa se negaram a voltar a falar sobre o assunto.
O fato ocorrido em Olinda não é isolado.
A onda de inquisição de grupos neo-pentencostais contra religiões de
matriz africana tem crescido no estado de Pernambuco. No primeiro
semestre deste ano, foram registradas a invasão e a destruição de sete
terreiros de religião de matriz africana no agreste pernambucano. O
estopim do acirramento e perseguição aos cultos de matriz africana se
deu após o assassinato de uma criança de nove anos de idade, degolada na
cidade Brejo da Madre de Deus, também localizada na região do agreste.
Logo após a descoberta do cadáver, a polícia veio a público e descreveu o
crime como sendo fruto de um “ritual de despacho”. Daí pra frente,
programas locais de rádio e TV, policialescos e proselitistas, passaram a
insuflar o ódio contra as religiões de matriz africana.
“A mídia não separou o joio do trigo ao
associar um crime de uma religiosidade que não tem nada a ver. Essa
associação feita pelos programas de televisão policialescos foi só o
estopim para as agressões. Mas a gente sabe que os pastores na TV aberta ocupam
a casa das pessoas cotidianamente pregando essa intolerância”, afirma
mãe Beth de Oxum, yalorixá do Ilê Axé Oxum Karêe, membro da Comissão
Nacional de Povos Tradicionais de Terreiro.
Com o aumento do número de ameaças e
agressões, os povos tradicionais de terreiro, integrantes da jurema
sagrada, do candomblé, da umbanda, do terecô, do batuque, do tambor de
Mina Jeje e Nagô, do xangô pernambucano, da kimbanda, rezadeiras,
oradores do Nordeste, catimbozeiros e pajés sentiram-se obrigados a
informar por meio de nota pública que não praticam sacrifícios humanos
em suas liturgias e rituais. “Nossas teologias não concebem a morte
humana como caminho para alcançar qualquer benefício na
vida e desconhecemos qualquer ritual pertinente a esta prática
condenável. Expugnamos completamente estes atos absurdos de assassinato
em nome de qualquer deus”, afirmaram em nota.
Em agosto, o pedido de proteção aos
terreiros feito por representantes da Secretaria de Desenvolvimento
Social e Direitos Humanos, do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade
Racial, da Secretaria de Defesa Social e do Ministério Público de
Pernambuco foi atendido pela Polícia Militar, que destacou agentes para
cuidar destes casos.
Tortura
Outro caso recente que revoltou as
comunidades de terreiro ocorreu no final de 2010, quando Bernadete Souza
Ferreira dos Santos, yalorixá e coordenadora de educação do
assentamento Dom Helder Câmara, em Ilhéus, Sul da Bahia, de 42 anos, foi
torturada por policiais militares. Enquanto recebia um Orixá, yalorixá
foi puxada pelos cabelos e jogada em cima de um formigueiro. Os polícias
pisaram no seu pescoço e disseram: ‘só assim para o demônio sair’.
Depois de uma série de torturas, Bernadete foi colocada em uma cela
reservada para homens. O caso de Bernadete ainda espera por julgamento.
Veja os vídeos abaixo:
*Cappacete
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