O que fazer com a vitória em SP?
Via CartaMaior
Saul Leblon
Nem
o gigantismo da cidade, nem o valor do 3º orçamento do país, depois do
brasileiro e o do Estado de SP - ainda que isso tenha um peso objetivo
óbvio - elucidam porque o pleito de São Paulo se transformou no
principal foco de atenção da mídia e do interesse nacional.
O
que distinguia o embate aqui como a disputa-chave da política
brasileira em 2012 era o confronto direto entre duas concepções de país,
duas visões de democracia e duas propostas de desenvolvimento.
Pode-se
dizer, em adendo, que um julgamento de recorte nitidamente conservador
desse antagonismo --quase um horário eleitoral paralelo-- está sendo
levado a cabo no STF há mais de 70 dias.
No das urnas, venceu a agenda personificada por Fernando Haddad, com a desassombrada estratégia política de Lula.
O que foi derrotado não é pouco.
Já
em 2002, ao perceber como inexorável a vitória do PT, o tucano José
Serra fez uma opção endossada pelos barões da mídia, embarcados no mesmo
destino.O tucano queria reunir uma bolsa de pelo menos 35 milhões de
votos no segundo turno para se tornar o líder do anti-petismo no país.
Consolidar-se
como a nova garganta conservadora, na linhagem de um Carlos Lacerda
& assemelhados, implicava eliminar concorrentes dentro e fora do
PSDB; catalisar com a facilidade previsível um leque de interesses do
mercado e, sobretudo, coordenar a crosta de jornalistas e editores
alinhados ao objetivo de impedir que Lula e o PT consolidassem uma nova
hegemonia progressista na sociedade brasileira.
Serra
teve pouco mais que 33 milhões de votos em 2002, contra quase 53
milhões de Lula, o segundo presidente mais votado do mundo, depois de
Reagan.
Sofreria um segundo revés para a
estreante Dilma Rousseff, em 2010, que trincou compartimentos do amplo
comboio coservador que comandava. Pode-se perguntar, com razão, o que
seria o futuro de Serra se não dispusesse da ancora midiática que o
sustentou até agora.
Em que pesem os
descarrilamentos e colisões, o tucano manteve intacto esse vagão
cargueiro estratégico, de olho numa aposta ainda mais ousada.
No
curral de escribas e editores aliados estava a arma decisiva para o
tudo ou nada que se urdia mais adiante: fazer do julgamento do chamado '
mensalão' a mãe de todas as eleições; uma espécie de terceiro turno
reordenador capaz de condicionar o futuro e reescrever o passado, na
determinação de desmoralizar o PT, destruir uma geração de lideranças,
inviabilizar Lula e fragilizar Dilma até o limite do
constrangimento.Quem sabe, viabilizar assim a nova tentativa do ticano
de chegar à Presidência, em 2014.
Serra
vislumbrou na desfrutável interseção entre a eleição municipal e o
julgamento da Ação 470 o palanque ideal para emergir como a garganta de
ouro dessa desforra anti-petista, modulada pelo jogral das togas no STF.
A
derrota em SP acontece quando o conservadorismo e o seu curral
midiático manejavam o que parecia ser a tempestade perfeita contra a
esquerda.
Essa é a natureza do desastre de
proporções ferroviárias que Serra e companhia acabam de colher na
capital logística, política, financeira e ideológica das forças que o
apóiam.
O PT não pode tratar essa vitória com acanhamento.
Ela é mais profunda até do que sugerem os ingredientes visíveis na superfície das urnas.
O
moralismo oportunista de Serra, sua mutação de quadro
desenvolvimentista ("de boca", diz Conceição Tavares) para um aliciador
de malafaias, telhadas & higienistas sociais não acontece por acaso.
Trata-se
da exteriorização predatória de um colapso subjacente à campanha na
qual muitos viam uma mutação do eleitor em consumidor.
Errado.
A
degradação ética e política de Serra reflete, além do caráter, o
esgotamento do projeto neoliberal abraçado pela coalizão conservadora no
Brasil.
Quem se propunha a resolver os
desafios da economia e da sociedade com a desregulação radical dos
mercados, associada a um choque de laissez-faire sobre os diretos
sociais, perdeu o chão a partir da crise de 2008, a maior do capitalismo
desde 29.
Sobrou às gargantas conservadoras
contrapor à desordem neoliberal a ordem e o progresso dos savonarolas
& malafaias que não alteram a essência da mecânica conflagrada.
Recolocar
as forças da economia à favor da sociedade, à favor da cidade e da
cidadania implica, em primeiro lugar, politizar uma crise capturada pelo
hermetismo das mesmas propostas e protagonistas que a originaram.
Essa
é a contrapartida imediata que a cidade de São Paulo espera do PT. Em
primeiro lugar, estabelecer laços de participação e discernimento que
permitam à população entender a raiz de seus problemas. No limite,
decidir em escrutínios plebiscitários o rumo a tomar.
A
desordem quase ruinosa do ambiente urbano paulistano guarda vínculos
com a desordem decorrente do naufrágio da exacerbação mercadista que
jogou o mundo na crise atual.
Estamos falando de
um tecido urbano conflagrado por cisões, desigualdade, terceirizações
suspeitas, recuo criminoso do Estado, abandono do espaço público,
privilégio, precariedade, desperdício de um lado e desencanto de outro.
Não
há panaceia técnica , tampouco orçamento suficiente para colar a curto
prazo esse vaso de cristal trincado em milhares de pedaços.
Ou se politiza as diretrizes a seguir com a participação da sociedade, ou será a rendição aos ditames dos donos da metrópole.
O
PT cometeu um erro em 2003, quando despolitizou em parte e negligenciou
em grande medida o debate desassombrado dos desafios herdados do
tucanato.
Não pode repetir esse passo agora, assentado nas lições de mais de dez anos no plano federal, ademais de duas gestões em SP.
Fernando
Haddad dispõe de um saldo de experiências administrativas de esquerda
para que se possa partir aqui de um nível superior de interlocução com a
cidadania.
Mais que isso, ao contrários das
administrações petistas anteriores na cidade, não assume constragido
pelo cerco federal;tampouco tem na Presidência da República uma corrente
de transmissão da crise internacional para dentro do país.
Quando
assumiu o governo em 2003, o PT , ao contrário, recebeu como herança um
fracasso em espiral ascendente. O risco-Brasil estava nas alturas; o
dólar perto de R$ 4 reais e a inflação projetada para 12 meses perseguia
a fronteira dos 30%.
A urgência da estabilização relegou a reforma política para um segundo momento.
Acuado
pelo cerco conservador e perplexo com as mazelas herdadas, o partido
durante os primeiros anos de governo sequer discutiu a necessidade de
uma mídia independente que facilitasse o diálogo honesto entre as opções
limitadas do país e as urgências da sociedade.
Rendeu-se
assim à mediação feita pelo dispositivo conservador, que seccionava seu
diálogo com a população e pautava diariamente a agenda do governo, ao
sabor de interesses que não eram os do país, nem do seu povo.
Em uma palavra, tornou-se quase refém da lógica que havia derrotado no voto.
Uma
relação de forças distorcida pela exacerbação midiática, incapaz de dar
suporte democrático às mudanças requeridas pela sociedade, manteve-se
desse modo como o fiel da balança dos compromissos e programas
sancionados pelas urnas.
O antagonismo entre as
duas lógicas acentuou-se na permanente negociação da governabilidade que
seguiu o padrão histórico: coalizão com divisão de cargos, dentro de um
sistema político que irradia suas distorções para as políticas
públicas.
A construção das coalizões políticas é
indispensável nas democracias representativas. O PT não errou ao
ampliá-las. Mas urdi-las sem o debate simultâneo com a sociedade pode
amesquinhar o próprio mandato e a força intrínseca que as urnas conferem
ao governante.
É querer infantilizar a
sociedade brasileira reduzir esse impasse ---e seus desdobramentos-- a
um enredo de bandidos e mocinhos; de puros contra pecadores, como
pretende certa narrativa preconceituosa e despolitizante que se esponja
no teatro das togas da Ação Penal 470.
Por isso
tudo, o primeiro passo em São Paulo é arejar o poder da cidade sobre ela
mesma; abrir as portas da prefeitura, criar outras novas, eliminar
trancas e truques contrparios aos interesses da população, sobretudo a
mais pobre, e trazer a cidadania para a discussão serena e responsável
da equação que interliga urgências, recursos e solidariedade.
No
auge da crise de 2005 , quando a oposição ensaiou um movimento de
impeachment contra o Presidente Lula, o escritor Fernando Veríssimo
lembrou em uma crônica, o militante anônimo do PT, "....aquele sujeito agitando a bandeira vermelha, sozinho na esquina, porque acreditava, porque confiava'.
A
melhor forma de São Paulo trazer de volta esse espírito tão precioso de
desprendimento engajado é chamar a populaçao a assumir as rédeas do seu
destino. Abrindo discussão imediatamente sobre o futuro da cidade com a
cidadania. A ver.
Foto: Marcelo Camargo/ABr
*GilsonSampaio
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