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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, outubro 17, 2012


Uruguai caminha para ser o 'mais liberal' da América do Sul

'ANTI HIPOCRISIA"



Grupo protesta contra a lei que descriminaliza o aborto do lado de fora do Congresso uruguaio, em Montevidéu. Foto: AP
Grupo protesta contra a lei que descriminaliza o aborto do lado de fora do Congresso uruguaio, em MontevidéuFoto: AP


GERARDO LISSARDY
Da BBC Brasil
Algo inédito ocorre na América Latina, surpreendendo até mesmo muitos liberais: o Uruguai acaba de descriminalizar o aborto e os parlamentares ainda discutem a legalização da maconha.
Ambas as iniciativas dão destaque internacional ao pequeno país de 3,3 milhões de habitantes, ainda que medidas de cunho conservador também estejam sendo debatidas no país.
Nesta quarta-feira, o Senado uruguaio aprovou a descriminalização do aborto até o primeiro trimestre de gestação. A lei determina que mulheres (apenas cidadãs uruguaias) que queiram pôr fim à gravidez nesse período sejam submetidas a um comitê formado por ginecologistas, psicólogos e assistentes sociais, que lhe informarão sobre riscos e alternativas ao aborto.
Se a mulher desejar prosseguir com o aborto mesmo assim, poderá realizá-lo imediatamente em centros públicos ou privados de saúde. Abortos que não sigam esses procedimentos continuarão sendo ilegais. Também é permitido o aborto em casos de riscos à saúde da mulher, de estupros ou de má-formação fetal que seja incompatível com a vida extrauterina, até 14 semanas de gestação.
O presidente José Mujica disse recentemente à BBC Mundo que não pretende vetar o projeto, já aprovado na Câmara dos Deputados. Para Mujica, a despenalização permitirá "salvar mais vidas", ao restringir a prática de abortos clandestinos.
Caso seja aprovado também o projeto que legaliza a maconha, o Uruguai passa a ser uma exceção nos dois controversos temas e confirma uma tradição liberal cultivada desde o início do século 20 - o país, de Estado laico desde 1917, foi pioneiro regional ao permitir o divórcio de iniciativa da mulher (em 1913) e o voto feminino (decidido em plebiscito em 1927).
"A ideia geral de que o Uruguai é um país mais liberal que o resto da região é provavelmente correta", diz à BBC Mundo Ignacio Zuasnabar, diretor da empresa uruguaia de pesquisas Equipos.
Droga x narcotráfico
O presidente Mujica - ex-guerrilheiro tupamaro que está no poder desde 2009 -, além de defender a despenalização do aborto, foi o impulsor do projeto que quer criar no Uruguai um monopólio estatal de produção e venda de maconha.
Seu argumento é de que isso permitiria que os consumidores da cannabis deixassem de lidar com traficantes e de receber ofertas de drogas mais pesadas. Para Mujica, também se reduziria a violência relacionada ao tráfico e à criminalidade. "A droga não nos preocupa tanto", disse o presidente. "O preocupante é o narcotráfico.
Essa proposta rendeu ao esquerdista Mujica improváveis elogios vindo de liberais como o escritor peruano Mario Vargas Llosa, alinhado à direita. "Quem teria imaginado que, sob um governo da Frente Ampla (coalização de Mujica), que parecia tão radical, um presidente que foi guerrilheiro, (o Uruguai) é novamente um modelo de legalidade, liberdade, progresso e criatividade, um exemplo que os demais países latino-americanos deveriam seguir", escreveu Vargas Llosa no jornal espanhol El País.
Medidas liberais e conservadoras
Mas quão liberal é, atualmente, a sociedade uruguaia? Segundo Zuasnabar, pesquisas mostram que a maioria dos uruguaios tende a apoiar a despenalização do aborto, mas esse apoio varia conforme as circunstâncias. Muitos defendem a prática em casos de má-formação fetal, estupro e riscos de vida para a mãe; o apoio é menor em casos de aborto por vontade da gestante.
As pesquisas também apontam que mais da metade da população se opõe em princípio ao projeto de legalização da maconha, provavelmente, segundo Zuasnabar, porque as pessoas "associam o consumo de drogas à delinquência".
O aumento da criminalidade se tornou um importante tema de debate no país, e a população teme estar perdendo a calma e a segurança que diferenciam o país do restante do continente.
Para responder a esses anseios, o governo propôs ao Congresso, junto com a lei da macona, medidas bastante discutíveis do ponto de vista liberal - por exemplo, a internação forçada de viciados em cocaína e penas equivalentes às de homicídio para traficantes da droga.
Recorrendo novamente às pesquisas, muitos uruguaios parecem concordar mais com essas medidas "linha-dura" do que com a estatização da produção de maconha.
Recente levantamento da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República apontam que a metade da população (49,8%) aprova que a polícia realize procedimentos fora dos padrões legais. E os partidos de oposição Colorado e Nacional juntaram neste ano 350 mil assinaturas para viabilizar, em 2014, uma consulta popular a respeito da redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos.
Casamento gay
Ao mesmo tempo, grupos homossexuais ainda pedem a aprovação de leis que permitam o casamento gay, apesar de o país ter sido o primeiro latino-americano a legalizar a união civil entre pessoas do mesmo sexo.
Em contraste, a Argentina já aprovou o casamento homossexual em lei de 2010 e neste ano sancionou lei que permite aos transexuais e travestis escolher que gênero querem ter em seus documentos de identidade.
Daniel Vidart, conhecido antropólogo uruguaio e autor de um livro recente sobre a identidade do país, diz à BBC que o Uruguai tem uma tradição de tolerância e liberalismo social que convive com uma "retranca conservadora".
*Terra

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