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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, dezembro 21, 2014

Diante do Parlamento russo, Vladimir Putin denunciou a “política infame de confinamento”

A nova Guerra Fria


Por Serge Halimi*

Em 1980, para resumir sua visão das relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, Ronald Reagan proferiu esta fórmula: “Nós ganhamos; eles perdem”. Doze anos depois, seu sucessor imediato na Casa Branca, George Bush, felicitava-se pelo caminho percorrido: “Um mundo outrora dividido entre dois campos armados reconhece que existe apenas uma superpotência preeminente: os Estados Unidos da América”. Esse foi o fim oficial da Guerra Fria.

Esse período acabou agora. Sua sentença de morte soou no dia em que a Rússia se cansou de “perder” e na medida em que seu rebaixamento programado nunca tocará o fundo, com cada um de seus vizinhos se vendo um de cada vez atraído – ou subornado – para uma aliança econômica e militar dirigida contra ela. “Os aviões da Otan patrulham os céus acima do Báltico, nós reforçamos nossa presença na Polônia e estamos prontos a fazer ainda mais”, relembrou Barack Obama em março em Bruxelas (1). Diante do Parlamento russo, Vladimir Putin denunciou a “política infame de confinamento” que, segundo ele, as potências ocidentais impõem a seu país desde... o século XVIII (2).

A nova Guerra Fria será, no entanto, diferente da antiga, pois, como revelou o presidente dos Estados Unidos, “contrariamente à União Soviética, a Rússia não dirige nenhum bloco de nações, não inspira nenhuma ideologia global”. O confronto que se instala também deixou de opor uma superpotência norte-americana que desenhava na sua fé religiosa a confiança imperial em um “destino manifesto” contra um “Império do Mal”, que Reagan amaldiçoava também por causa de seu ateísmo. Putin corteja, ao contrário, não sem sucesso, os cruzados do fundamentalismo cristão. E quando ele anexou a Crimeia, relembrou imediatamente que é o local “onde São Vladimir foi batizado [...]; um batismo ortodoxo que determina as noções de base da cultura, dos valores e da civilização dos povos russos, ucranianos e bielorrussos”.

É o mesmo que dizer que Moscou não admitirá que a Ucrânia se torne a base de seus adversários. Aquecido por uma propaganda nacionalista que excede até mesmo a lavagem cerebral ocidental, o povo russo se oporia a isso. Ou seja, nos Estados Unidos e na Europa, os partidários do grande rearmamento aumentam suas apostas: proclamações marciais e avalanche de sanções heteróclitas que só fazem aumentar a determinação do campo adversário. “A nova Guerra Fria será talvez mais perigosa ainda que a precedente”, já advertiu um dos maiores especialistas norte-americanos sobre a Rússia, Stephen F. Cohen, “porque, contrariamente à anterior, ela não encontra nenhuma oposição – nem na administração, nem no Congresso, nem nas mídias, nas universidades, nos think tanks” (3). É a receita conhecida de todas as derrapagens...

1 - Discurso de Barack Obama em Bruxelas, 26 mar. 2014.

2 - Discurso de Putin diante do Parlamento russo, 18 mar. 2014.

3 - Pronunciamento na Conferência Anual Rússia-Estados Unidos, Washington, 16 jun. 2014. Retomado em The Nation, Nova York, 12 ago. 2014.

* Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).

*Observadoressociais

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