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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, junho 08, 2012

Equador: “O sucesso de uma política econômica não neoliberal”


Paul Jay (TRNN, Washington): O Equador, aparentemente, não sofreu com o crash de 2008-9 como outros países sofreram. Um novo relatório sugere que a razão disso está em o país ter seguido modelo de política econômica diferente das políticas neoliberais seguidas por outros países que foram devastados pela crise das finanças globais. Para conversar conosco sobre aquele relatório, temos hoje Rebecca Ray.
Rebecca Ray é pesquisadora associada do Center for Economic Research, em Washington-DC, consultora da Parceria para o Desenvolvimento da Indústria de Alimentos na Nicarágua e do Instituto para Educação e Ação para a Sustentabilidade em Salt Spring Island, Canada. Obrigado por estar conosco.
Rebecca Ray: Obrigada a você.
Paul Jay: Fale-nos, por favor da situação do Equador, crescimento, recessão e as políticas que, na sua opinião, fizeram a diferença.
Rebecca Ray: O que mais chama atenção no caso do Equador é que o país conseguiu sair da recessão em apenas três trimestres, e só precisaram de mais dois trimestres para voltar ao patamar de crescimento de antes. E os números de pobreza e desemprego já são hoje mais baixos do que antes da recessão. De fato, bem abaixo. O desemprego é o mais baixo da história, um recorde.
Paul Jay: Dê-nos alguns exemplos dos números.
Rebecca Ray: O desemprego, por exemplo, depois da crise, estava em 6,4% no segundo trimestre de 2011. A melhoria no índice de pobreza foi ainda maior: é hoje de apenas 6,4%. Caiu 28,6% em 2011. É realmente espantoso, se comparado a outros países que não têm moeda própria, como o Equador, com os países europeus, por exemplo, que estão em situação muito pior, sem saída à vista.
Paul Ray: O Equador usa o dólar norte-americano?
Rebecca Ray: Sim, a economia está dolarizada já há cerca de 12 anos.
Paul Ray: E quando, e como, isso aconteceu?
Rebecca Ray: Há vários aspectos interessantes. Primeiro de tudo, o Equador seguiu várias passos que têm sido severamente criticados em Washington e pelos bancos centrais europeus, por exemplo. Primeiro, envolveram o Estado no mercado das exportações, em vez de privatizar, por exemplo, o sistema de exportação de petróleo, como fizeram outros países. O Equador pôde suportar os tempos difíceis, usando as reservas que o petróleo gera e estavam sob controle do Banco Central e assim o governo pode financiar o programa de estímulo. O Estado envolveu-se na economia e pôde usar aquelas reservas. Assim o país pôde andar em direção a tempos melhores. De fato, muito, muito melhores, mesmo sendo país exportador de commodities, o que é muito difícil, sobretudo se o país não tem moeda própria e não pode administrar a própria moeda nem pode alterar o valor da própria moeda, como faz a China, para tornar mais atraentes as próprias exportações. O Estado, no Equador, está envolvido na economia do setor privado. E pode administrar as reservas do Banco Central. Durante a recessão, o país usou aquelas reservas para voltar aos níveis anteriores à crise. O Estado usou as reservas que tinha para financiar projetos, grandes projetos, domésticos. Com isso fez crescer o mercado doméstico, de modo a depender menos das importações norte-americanas e europeias, que eram os grandes importadores, antes da crise e das quais o país dependia antes.
Paul Jay: Pode dar alguns exemplos desses grandes projetos?
Rebecca Ray: Primeiro, foi um tremendo boom de construção de moradia para famílias de baixa renda, que jamais antes tiveram casas antes e são parte muito significativa da população do Equador, e que receberam financiamento subsidiado para construir. Aí, de fato, foi onde aconteceu tudo. Esse projeto puxou para cima o crescimento nacional. Mas sem criar qualquer tipo de ‘bolha’ imobiliária, como se viu acontecer nos EUA, porque no Equador só os mais pobres tiveram acesso ao crédito subsidiado. Por isso não houve hipotecas podres, subprimes etc.. E, sim, o setor bancário também foi regulado com vistas ao projeto geral dos empréstimos aos mais pobres.
Não houve financiamentos predatórios, nem boatos sobre se os tomadores de financiamentos poderiam continuar a pagar, a lei não permitia que as casas fossem retomadas pelos credores no caso de inadimplência e outras estritas regulações para a tomada de empréstimos subsidiados.
O projeto foi construído explicitamente para oferecer moradia a setores muito carentes. E também provocou crescimento muito rápido na oferta de empregos e empurrou também o setor privado de construções, porque o Estado não constrói, mas pôde ajudar o setor privado de construção.
Além disso, o Estado dobrou os investimentos na educação no país. Em cinco anos, os fundos estatais dirigidos à educação foram multiplicados por dois, dobraram. A educação secundária, em apenas dois anos, cresceu 10 pontos percentuais. Em dois anos, foram de 69% para 80%, entre 2007 e 2009. É crescimento imenso.
Também investiram em seu principal programa de assistência social. Os índices de desenvolvimento humano são quase inacreditáveis, obtidos porque o Estado saiu à procura das famílias necessitadas, para definir quem era realmente elegível para receber os benefícios.
Não é projeto fácil de executar, porque as famílias realmente necessitadas permanecem praticamente fora dos sistemas e das estatísticas, se o índice de moradias é muito baixo.
As famílias têm de ser buscadas e encontradas. De fato, o que se viu ali são soluções inusitadas, mais criativas.
Paul Jay: Vamos voltar ao programa de construções, porque em outros países, inclusive nos EUA, a construção civil é muitas vezes o caminho padrão para introduzir estímulos na economia, mas geram-se distorções, porque os mais pobres ganham empregos na construção, mas não podem comprar nem morar nas casas. Como conseguiram evitar isso no Equador?
Rebbeca Ray: O programa de estímulo, do qual os empréstimos financiados são apenas uma parte, e há muitos casos em que a transferência é feita por bolsas-salário. Houve muito trabalho de planejamento, para chegar a uma distribuição eficiente de empréstimos e bolsas-salário, a situação financeira das famílias foi analisada. Não foi questão simplesmente de “injetar” dinheiro no setor da construção civil, porque é setor que “gera empregos”. Por mais que o setor “gere” empregos, o que sempre acompanha esses picos de geração de empregos são picos subsequentes de falências em massa, porque nenhum setor de construção civil pode ser tratado como se fosse a espinha dorsal de uma economia.
O que se viu no Equador foi o Estado estabelecendo relação mais inteligente com o setor privado da construção civil.
Paul Jay: E como você compara a via pela qual o Equador saiu da recessão e que, como você disse foi muito mais rápida, com outros países latino-americanos. Porque, pelo que sei, poucos países latino-americanos estão em situação muito melhor que seus vizinhos do norte. O crescimento em outros países que não seguiram as mesmas políticas que o Equador. Como se podem comparar essas coisas?
Rebbeca Ray: O aspecto a considerar em todos os casos dessas crises é o quanto e como uma ou outra economia nacional está conectada ao norte global, porque a crise começou por lá. Países que estavam muito profundamente conectados com o norte, e eram muito dependentes do norte global, pelas exportações ou pelo dinheiro que emigrados enviam às famílias no país, entraram na crise numa posição particularmente desvantajosa. O Equador, de fato, estava em situação ainda mais desvantajosa que outros da região, porque ainda usa a moeda norte-americana.
Mas, dentre os países mais altamente dependentes do norte global, pelas exportações ou pela remessa de dinheiro pelos emigrados ou pelas duas vias, a recessão no Equador foi a mais curta.
O Equador foi o país que mais depressa voltou aos patamares de crescimento de antes da crise. Isso aconteceu porque o país deu total atenção ao desenvolvimento do mercado interno, atendendo às carências internas, da própria população, antes de cuidar de manter alguma posição nas ondas internacionais de commodities.
Paul Jay: Que outros países você está considerando, nessa comparação?
Rebbeca Ray: Estou pensando no México, Argentina, Chile, países que são exportadores pesados e também dependem muito da remessa de dinheiro de fora, pelos emigrados. Esses resultados serão publicados em breve pelo NACLA [1]. E a divisão corresponde à divisão com a qual trabalham os pesquisadores do NACLA. No quadro traçado pelo NACLA, o Equador é o país mais bem sucedido nas políticas para arrancar-se da crise, porque ali o Estado construiu um “colchão” de reservas e operou sobre o setor privado, para promover uma saída bem-sucedida da crise.
Paul Jay: É há outros exemplos das políticas do Equador, além de regular bancos e racionalizar o contato com o mercado internacional de commodities? Há outras políticas que tenham contribuído também para o mesmo resultado?
Rebbeca Ray: Há outras, também importantes. Você lembra como estava a inflação em 2008, que gerou altas enormes nos preços dos alimentos.
Nos países em desenvolvimento, os aumentos foram os maiores num longo período de tempo. E o aumento dos alimentos foi o fator que mais pesou sobre a inflação em 2008. Aconteceu em vários países latino-americanos. E vários países latino-americanos, ante o aumento da inflação, imediatamente subiram as taxas dos juros, porque é o que ensinam os manuais: se a inflação sobe, é indispensável aumentar a taxa de juros, em tempos de alta internacionalização. Mas nesse caso, porque se tratava de inflação “importada”, que crescia no mercado internacional de alimentos, o aumento das taxas de juros não bastaria para controlar os preços internos dos alimentos e só geraria recessão mais rápida e mais profunda. E foi o que se viu acontecer em vários países.
O México, por exemplo, aumentou a taxa de juros em 2008, ante os aumentos na inflação. E a recessão veio.
O aumento nos juros não foi benéfico. Depois baixaram a taxa de juros, e continuaram a baixá-la ao longo de 2008 e 2009, porque reconheceram que não estava funcionando para controlar a inflação e não controlaria.
Paul Jay: E o que fez o Equador? A Venezuela adotou soluções semelhantes, de investir os lucros do petróleo em programas e investimentos sociais, mas enfrentaram problemas terríveis de inflação. Qual a situação no Equador?
Rebbeca Ray: A situação é diferente, porque a economia do Equador é dolarizada e, portanto, não tem vários dos problemas de inflação que a Venezuela está tendo. Comparar os dois casos é mais ou menos como comparar laranjas e maçãs. O Equador está protegido de vários problemas de inflação em vários itens que importa. Essa é uma das razões pelas quais pode seguir o projeto de manter baixas as taxas de juro.
O que se vê na Europa, por exemplo, é a esperança de ver os juros reagirem exclusivamente à inflação mantida baixa, ignorando a queda nas taxas de crescimento e emprego.
Os resultados muito problemáticos dessa esperança estão lá, à vista de todos.
Dito de outro modo: o Equador pôde ter a “liberdade” de manter baixos os juros (porque a economia é dolarizada), sem que atraísse, simultaneamente, os efeitos danosos desse movimento, que se veem na Europa. Porque a Europa, para manter baixos os juros em euros de que todos precisam, teve de sacrificar o emprego e o crescimento.
A Venezuela, para não sacrificar o emprego e o crescimento, não tem meios para manter baixa a inflação. Por isso a inflação sobe na Venezuela, mas não o desemprego nem o crescimento.
Paul Jay: O que o Equador está fazendo para diversificar a economia? Porque, não se pode adivinhar, mas, se houver mais quedas no mercado das commodities, e se o preço do petróleo cair... É preciso ter mais, para exportar. Não se pode contar só com recursos da venda de petróleo, para pagar pelos programas sociais. O que é que o Equador está fazendo nessa direção?
Rebbeca Ray: Você tem toda a razão. É muito importante diversificar. Mas infelizmente não é fácil, quando um país não manda na própria moeda, porque o controle da moeda é excelente caminho para diversificar.
A China é o grande exemplo de país que controla a moeda, para tornar mais competitivos os próprios produtos, em outros mercados. Mas o que o Equador pode fazer e já começou a fazer é diversificar os mercados importadores [ininteligível], exportar para mais países.
O Equador exportava para os EUA mais da metade do que produzia, em 2006. Em 2010, já era um terço. Quando é difícil diversificar os produtos exportados, podem-se diversificar os compradores.
Esse procedimento, permite estimular, do lado da oferta, os produtos a exportar, com programas de treinamento, subsídios, programas de assistência, há vários meios. Mas diversificar, sim, é algo que o Equador têm de fazer e já está fazendo.
Paul Jay: Temos ouvido, na Grécia e em outros países, clamores para que deixem o euro e voltem à velha moeda, recuperando o controle soberano sobre a própria economia. O que pensa o Equador sobre isso, sobre permanecer ou não na zona do dólar norte-americano?
Rebbeca Ray: O Equador, que se saiba, não tem planos para deixar o dólar nos próximos tempos. A principal razão é que, não importa o que se faça para implantar medida tão dramática, sempre é um choque imenso na economia.
Mesmo que venha a ter consequências positivas no longo prazo, é enorme choque no curto prazo. Por isso, essa é medida que só se considera se se está obrigado a considerá-la.
Veja a situação em que estão a Espanha e a Grécia. Em situação mais normal, pode-se até desistir da estabilidade econômica, se houver qualquer mínima chance de crescimento.
Na Grécia, na Espanha, já não há estabilidade econômica hoje. Portanto, não estariam trocando a independência monetária por estabilidade. O Equador, por sua vez, sim, tem estabilidade econômica e altas taxas de crescimento, quer dizer, não há necessidade alguma de produzir um choque tão gigantesco na economia. Essa talvez tenha sido a razão pela qual o presidente Correa tem dito e repetido que separar-se da moeda norte-americana não interessa ao Equador nessa momento.
Paul Jay: Quais são as fraquezas da política econômica no Equador? Outra pergunta, dentro dessa, seria: o que está acontecendo com os salários. Pode-se falar muito de estímulos aos crescimento, mas... e os salários?
Rebbeca Ray: Os salários estão altos, acima da inflação já há bastante tempo, o que é bom. As pessoas estão com perspectivas, olhando à frente.
Sobre fraquezas, pode-se falar do risco de voltar tudo ao ponto em que o país estava antes, as dificuldades para diversificar a economia e exportar outros produtos, para sair da economia dependente do petróleo.
Claro que os estímulos baseados na construção é coisa de curto prazo. E foram previstos como medida de curto prazo, uma tática que o país adota para o curto prazo. Tudo que possa ser feito para diversificar a economia cada vez mais, ajudar outros ramos da indústria, são todas, medidas que seriam muito bem-vindas.
Paul Jay: Obrigado pela entrevista.
*GilsonSampaio

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