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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, junho 05, 2012

A morte dos imortais

José Roberto Torero

Era a festa anual dos deuses, que este ano aconteceu em Asgard, onde o arco-íris é ponte.

Odin, o anfitrião, desfilava com todo seu garbo, usando tapa-olho na vista direita e piscando para os amigos com o olho esquerdo. Já seu filho Thor, por conta do filme Os Vingadores, distribuía autógrafos aos outros convidados.

Num canto, Xangô, Zeus e Tupã comparavam seus raios para ver quem tinha o maior. Noutro, Ganesha, com sua cabeça de elefante, conversava com Rá, com sua cabeça de falcão. Na varanda, Ceci e Diana falavam sobre a Lua, enquanto Quetzacoatl tomava um chocolate.

No jardim, Itzamna, o deus maia, trocava ideias sobre sacrifícios humanos com Viracocha, o deus inca. E Ahura Mazda, o deus do zoroastrismo, cochichava no ouvido de Deus (ou Javé, ou Alá, dependendo de sua preferência):

- Sabe?, sem mim você não seria nada. Antes era uma tremenda bagunça.

- É verdade, mas eu fui muito mais longe. Enquanto você ficou ali pela Pérsia, eu me espalhei pelo mundo.

- Ok, mas não esqueça que graças a mim é que começaram a pensar num deus único. E num paraíso, no juízo final e num messias.

- Pode ser. Mas eu é que entendo de mercado. Tenho o judaísmo, o cristianismo, o islamismo e o espiritismo. Dividi para conquistar.

- Não se gabe muito. O ateísmo está crescendo. Até no Brasil. Lembra daquele país?

- Claro. Diziam que eu era de lá.

- Pois é, no Brasil o time dos sem-religião vem aumentando muito. Mais que o grupo dos evangélicos.

- Mesmo sem aquelas músicas ruins e as ex-atrizes pornôs?

- Mesmo. Na década de 1960, os sem-religião representavam 0,5% da população. Em 2003 este grupo já havia alcançado 5,1% e, em 2009, 6,1%. E agora chegaram a 7,8%.

- Se os brasileiros continuarem assim...

- Podem ficar como os nórdicos. Você sabia que 72% da população da Noruega é de ateus ou agnósticos? Na Dinamarca é pior: 80%. ,E na Suécia, um horror: 85%!

- Os números são altos, mas as populações destes países são pequenas.

- Pois na China só cerca de 20% das pessoas crê num deus. Quando eles dominarem o mundo de vez...

- Isso me dá um pouco de medo. Eu me dei bem com o império romano, não me saí mal com o inglês e me mantive por cima com o norte-americano. Mas com o império chinês..., não sei, não...

Com certo ar sádico, Mazda começa a cantar, apontando os indicadores para cima:

-Ai, ai, ai, ai, ai-ai-ai, tá chegando a hora... A China já vem, chegando meu bem, é hora de ir embora...

-Ir embora? Não seja radical.

-Mas é isso mesmo, meu chapa. Se não acreditam em nós, desaparecemos. Lembra de Nammu, Dagon, Anath e Molech?

-Lembro, claro.

- Pois eles desapareceram como fumaça. E também Marduk, Damona, Ésus, Dervones e Nebo; e Yau, Drunemeton, Inanna e Enlil; e Deva, Borvo, Grannos, Mogons e Sutekh, o deus do vale do Nilo.

- É mesmo...

- Mesmo os deuses desta festa estão quase transparentes. É que pouca gente crê neles. Zeus e Toth, por exemplo, são mais folclore que religião. E eu só sobrevivo por conta de uns duzentos mil adeptos. Uma mixaria. Meus dias estão contados...

A esta altura, todos os outros deuses já cercavam os dois deuses únicos. E tinham semblantes preocupados. Então todos deram as mãos e Deus (ou Javé, ou Alá, dependendo de sua preferência), para levantar o moral da turma, puxou uma oração que era assim:

“Homem nosso que estais na terra,
santificado seja o nosso Nome,
chegue a vós o nosso Reino,
e seja feita a nossa vontade
assim no céu como na Terra.
A oração de cada dia nos dai hoje,
e perdoai as nossas ofensas
assim como nós perdoamos
a quem nos tem desprezado.
Não nos deixeis cair em esquecimento
mas livrai-nos do limbo,
Amém.”

José Roberto Torero é formado em Letras e Jornalismo pela USP, publicou 24 livros, entre eles O Chalaça (Prêmio Jabuti e Livro do ano em 1995), Pequenos Amores (Prêmio Jabuti 2004) e, mais recentemente, O Evangelho de Barrabás. É colunista de futebol na Folha de S.Paulo desde 1998. Escreveu também para o Jornal da Tarde e para a revista Placar. Dirigiu alguns curtas-metragens e o longa Como fazer um filme de amor. É roteirista de cinema e tevê, onde por oito anos escreveu o Retrato Falado.

*esquerdopata

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