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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, fevereiro 17, 2013

Ribamar Bessa – Por um mundo com menos Cid e mais Mujica

O cantar do Cid

Por Ribamar Bessa(*)
cid chargeO que o Cid Gomes, governador do Ceará, tem em comum com o Cid Campeador, herói da literatura espanhola?
Cid é acusado de roubo. Fica com fama de ladrão. Seus bens são bloqueados e sequestrados. Ele é desterrado. Para recuperar a riqueza e a honra, o nosso herói pega em armas, participa de campanha militar, derrota os mouros que ocupavam a Península Ibérica, puxa o saco do rei para quem manda um montão de presentes caros e, desta forma, é anistiado. Consegue reaver seus bens e, mesmo sendo fidalgo de nível inferior, casa suas filhas – Elvira e Sol – com príncipes, um do Reino de Navarra e o outro de Aragón.
Esse é o Cid Campeador, cujas façanhas heroicas são narradas em um poema épico de quase quatro mil versos, escrito há mais de 800 anos. Trata-se de uma joia da literatura espanhola – o Cantar de Mio Cid – uma canção de gesta, recitada na época medieval com acompanhamento musical por jograis e menestréis, para uma audiência variada formada por pessoas de vários níveis sociais, desde os nobres na corte, até camponeses e artesãos analfabetos nas feiras e mercados. Esse é o Cid Espanhol. Mas no Ceará não tem disso não.
mio cid
No Ceará, o Cid é outro. O Cantar de Mio Cid cearense, que poderia muito bem ser recitado como literatura de cordel nas feiras de Sobral, na realidade é o cantar de Ivete Zangalo, contratada pelo governador Cid Gomes (PSB) por R$ 650 mil para um único show de inauguração de um hospital em Sobral, terra de Cid. Quem paga, é claro, não é o dito cujo, mas o contribuinte. Agora, o Ministério Público Federal entrou na Justiça na última quinta-feira contra o governador pedindo a devolução da grana, que pague o cachê da Ivete Zangalo com dinheiro dele.
- Não tem sentido o governador gastar recursos públicos com festas para inaugurar hospitais, enquanto se faz urgente o atendimento de cidadãos em fila de espera por cirurgias – afirmou em nota o procurador Oscar Costa Filho, que lembrou a existência no Ceará de 349 pacientes em espera só por cirurgias ortopédicas. Ele diz, com razão, que houve violação do princípio da moralidade administrativa e desvio de finalidade na contratação do show. A ação propõe que Cid seja proibido de usar recursos públicos da saúde para realizar eventos festivos.
Quando o procurador de Contas do Ceará, Gleydson Alexandre estranhou o pagamento, Cid de Sobral, numa atitude desrespeitosa com as instituições democráticas, afirmou que o procurador era “um garoto que quer aparecer e fica criando caso”, e disse que continuará gastando o dinheiro com shows, “doa a quem doer”. Não é uma ameaça vazia para quem, em agosto de 2012 pagou com dinheiro público R$3,1 milhões pelo show do tenor espanhol Plácido Domingo na inauguração de um centro de convenções no Ceará.
cid gomes
Cid Gomes ainda por cima é insolente e não hesita em apelar para o cinismo como fez há cinco anos, quando viajou, em pleno carnaval com a primeira-dama, a sogra, o secretário, um assessor, com suas respectivas esposas, num jatinho fretado pelo governo do Ceará por R$ 388 mil reais. Os jornais deram uma boa cobertura da viagem e houve uma acusação de mau uso do dinheiro público, sobretudo porque o roteiro incluiu hospedagens em hotéis de luxo, cuja valor da diária chega até R$ 35 mil.
Na época, Ciro alegou que o espaço no avião ocupado pela sogra não acrescentava nenhum gasto e que ela pagou sua própria hospedagem. Quanto a ele, justificou: “Viajei para a Europa no intervalo do Carnaval, mas ao contrário do que isso possa insinuar, viajei a trabalho”. Foi participar de eventos ligados ao turismo e à fruticultura.
O Cid de Sobral age como um coronel de grotão. O show de Ivete Zangalo, na realidade, é puro marketing eleitoreiro. Quantas vidas poderiam ser salvas com R$ 650 mil? Aplicar num evento como esse recursos públicos que deviam ser canalizados para a saúde é, efetivamente, um crime. A quem interessa esse crime? Quem vai se beneficiar eleitoralmente com ele?
Pepe 1 Mujica
É mais fácil o Rio Acaraú correr em sentido contrário, em direção à Serra das Matas e desaguar lá em Monsenhor Tabosa, do que o Cid Gomes de Sobral entender José Pepe Mujica, presidente do Uruguai, um pais cujo território é um pouco maior do que o Ceará.
Pepe Mujica, o presidente mais pobre do mundo, tem um salário mensal de 12.500 dólares, mas vive apenas com 1.250 dólares, porque doa 90% de seu salário para ONGs que trabalham com habitação para a população pobre: “Este dinheiro me basta, e tem que bastar porque há outros uruguaios que vivem com menos”. Com 77 anos, o presidente da República continua usando um velho fusquinha, avaliado em 1.000 dólares. A mulher dele, Lucía Topolansky, que é senadora, também doa parte de seus rendimentos.
Meu Deus do céu, como o mundo seria melhor se houvesse menos Cid e mais Mujica! Se o cantar de um fosse substituído pelo cantar do outro!
*José Ribamar Bessa Freire é antropólogo. Colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde tem a coluna “Taqui Pra Ti
*quemtemmedodademocracia

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