GUERRILHA: OS ASPECTOS "OBSCUROS"
As
Comissões de Verdade, que deixam vislumbrar a possibilidade de colocar em evidência
os crimes da ditadura, têm mobilizado a direita midiática. A parte “mais
moderada” dessa direita aplica a Teoria
dos dois Demônios, segundo a qual
repressores e guerrilheiros cometeram as mesmas atrocidades. Esta tese
é, na maioria dos países, insustentável, por numerosas razões que mencionamos
em textos anteriores, mas que, em algum momento, deverá ser tratada em todos os detalhes.
Agora é necessário alertar que
veículos da mídia “enriquecem” a teoria dos Dois Demônios mostrando
que os guerrilheiros não apenas executaram seus inimigos objetivos, mas também
mataram membros de seus próprios quadros, acusados de traição. (vide)
Veja também o artigo de Celso
Lungaretti aqui. Em especial, há neste trabalho uma
referência às motivações de resistentes desesperados pela infiltração, que
merece uma reflexão respeitosa.
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O jovem Marx era um humanista
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Quero começar deixando claro que a
aplicação de qualquer forma (revolucionária ou não) da pena de morte é contrária a ética humanista e naturalista que guiou
a esquerda clássica, desde o marxismo juvenil (Manuscritos, Sagrada Família, Ideologia Alemã), até a Nova Esquerda,
incluindo a totalidade da esquerda da Europa Ocidental.
Aplicação de pena de morte se refere a execução de inimigos rendidos, cuja morte
é puramente punitiva e não supõe a necessidade de defesa imediata. Esta defesa
justificou o acionar das guerrilhas da América Central (nem sempre
da América do Sul), da Europa ocupada pelo Fascismo e hoje da Primavera Árabe.
Em seguida, desejo mostrar que três
conceitos básicos dos militares (tortura, pena de morte e dano
colateral) são, em medida algo diferente, concepções desumanas, que
transformam a moral dos grupos de esquerda num simples pragmatismo estratégico
e contribui a degradar seus objetivos.
Finalmente, desejo salientar que o lado
obscuro da guerrilha, que não
deve ser defendido, não têm nada a
ver com os objetivos das Comissões de Verdade, cujo intuito é descobrir,
analisar e registrar os crimes de estado e não quaisquer
outros crimes que possam ter sido cometidos durante a resistência. Dou como exemplo
o caso de outros processos pós resistência, em outros países, que ignoraram
este tipo de ações.
Trazer a tona estes problemas é mais um dos cansativos e
redundantes atos de ação da direita. É uma provocação sem fim que visa esvaziar
o sentido da investigação. A direita acha que genocidas são humana e eticamente
superiores aos resistentes e defendem a tortura e o genocídio, mas nem sempre a
situação externa lhes permite enunciar essas macabras teses. Nesses casos,
limitam-se a dizer: “São todos iguais”.
Fetichismo versus objetividade
Quando, desde a esquerda, se divide
as pessoas em boas e ruins, se está carregando com o velho fetichismo
maniqueísta da sociedade de classes. A idéia subjacente a este maniqueísmo é
que existem pessoas de diversa qualidade, e que algumas merecem viver e outras
não.
Concomitante com isso aparece a crença de que objetos abstratos
(transformados agora em fetiches) têm o mesmo valor (ou, às vezes, valor maior)
que a vida consciente, que sempre é individual e concreta.
O fetichismo que dá valor
superior a entes misteriosos e intangíveis, como raça, nacionalidade,
divindade, honra, etc., é justamente o que mais combateu o marxismo, que se
propôs encontrar os componentes objetivos do pensamento
social.
Resultado desse combate foi a
primeira construção do estudo social como verdadeira ciência, embora, em alguns
casos, David Ricardo tenha antecipado em pequena medida, desde uma perspectiva
capitalista, o que Marx e Engels fariam depois de um ponto de vista universal. Esse humanismo universalista
existiu no movimento comunista oficial desde os começos, em 1799, até 1920 ou
21, quando Lenin definiu o poder soviético
(soviétskaia blast’).
A noção leninista de poder abre
caminho à teoria stalinista de “socialismo num só país”, criticada pela Quarta
Internacional. Além disso, o poder destrói
a noção de igualdade e, com ela, a de liberdade, pois quem possui poder nunca é
igual a quem deve obedecer, e nenhum poder (centralizado ou não) é compatível
com a liberdade.
Mas, a verdadeira esquerda não acaba em
1920, pois passa pela Escola de Frankfurt, o movimento Espartaquista, os marxistas
independentes, o anarquismo, o socialismo fora da socialdemocracia, e culmina
nas novas esquerdas.
Teoricamente, a democracia burguesa consiste
na supremacia dos direitos das maiorias sobre as minorias. Na prática, sabemos
que não é assim, pois as maiorias são guiadas pela propaganda da direita. Mas,
mesmo se fosse verdade, seria ainda uma visão estreita da emancipação humana.
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Otto Bauer, pensador austríaco
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Na visão da esquerda, a emancipação é
muito mais ampla que a ditadura da maioria, que é uma metáfora para indicar o
estágio de democracia proletária que tenta eliminar as classes dominantes,
porém não tornar-se alternativa delas. [Isto é formulado por Marx e Engels, e
fica claro na polêmica de Marx com Otto Bauer sobre a emancipação judia.]
A emancipação deve ser universal:
democracia socialista é a igualdade dos direitos de todos,
pois as contradições entre maioria e minoria devem desaparecer. Os direitos
para todos não significam, como se
pretende perversamente desde as tendências neofascistas, a reconciliação com o inimigo.
O inimigo existe, mas não permite reconciliação e tampouco deve ser exterminado
fisicamente. O inimigo desaparecerá quando a sociedade esvazie sua causa de
todo poder, e isso só se consegue com a consciência.
Pode se dizer que isto não aconteceu
na prática em nenhum estado. Essa observação é correta. Mas, isso é
consequência de que não temos exemplos de nenhum estado socialista atual. Socialista
foi a efêmera comuna de Paris, a sociedade russa até 1920, a República de
Bayern destruída pelo fascismo, e alguma outra. Hoje, temos apenas exemplos de
capitalismos de estado que são simples ditaduras. Isso, no melhor dos casos. No
pior, há tiranias sangrentas como a do partido Baath’, que usa o nome “socialista”
como rótulo.
Observe-se que, como já era evidente
aos movimentos sociais no começo do século 19, as causas da divisão da
humanidade em amigos e inimigos estão todas na sociedade de classes e esta, por
sua vez, é o produto da associação entre militarismo
e teologia.
A eliminação das forças armadas em
pequenos países, como o Panamá e a Costa Rica, mostram que esta utopia pode ser
realizada. Entretanto, elas não são modelo de superação do fetichismo, pois ambas sofrem um enorme peso do
obscurantismo teológico. Por outro lado, a Suécia é um exemplo de estado quase
totalmente secular, mas mantém um exército, mesmo que seja defensivo. O
resultado, se houver, só pode acontecer num futuro distante.
Traição, tortura, dano colateral
A luta armada de parte da esquerda é
um processo civil e assimétrico. Este tipo de luta teve como principal objetivo
reestabelecer a democracia como aconteceu em quase toda a América: os
movimentos armados do Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai, procuravam derrubar
suas próprias ditaduras.
Na Argentina houve uma mistura muito
complexa, pois a luta armada começou com um movimento nacionalista católico e
foi absorvendo jovens desiludidos da esquerda tradicional, o que acabou dando
ao movimento um estilo diferente. O exemplo típico disso foram os Montoneros e
as Forças Armadas Revolucionárias (FAR). Houve, também, um movimento de luta
armada autenticamente de esquerda, que surgiu de uma divisão da 4ª
Internacional, que sempre foi contrária ao blanquismo.
Este foi o Exército Revolucionário do Povo (ERP).
Por causa disso, o caso da Argentina
não tem tanta analogia com os outros da América do Sul, se aproximando mais aos
movimentos armados nacionalistas da Europa como IRA ou Brigadas Vermelhas (mas,
não aos movimentos como Autonomia Operaia ou Lotta Continua)
Já os movimentos armados da América
Central se propunham, analogamente ao Brasil e ao Chile, derrubar as ditaduras
apoiadas pelos americanos com a Operação Charlie. Aqui temos um exemplo de luta
armada realmente defensiva, que incluiu grandes massas em sua ação. Não
concorda, como às vezes se acredita, com o foquismo
e, também diferentemente dos movimentos foquistas, teve sucesso, já que forçou
a reunião na Ilha Contadora que permitiu a democracia, pela primeira vez, em
várias repúblicas da América Central.
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Pancho Villa e Emiliano Zapata |
Vários desses movimentos mantiveram
de maneira coerente a luta pela restituição da democracia burguesa, como passo
fundamental para uma futura, porém não imediata, instalação do socialismo. Eles
são semelhantes aos movimentos antifascistas e têm pouco a ver com o
social-nacionalismo dos caudilhos populistas da região.
Com este marco de referência,
voltemos a questão do lado obscuro da guerrilha: a execução de alguns de seus
próprios membros por traição.
Em
forma mais o menos explícita, há
três conceitos que formam a base da filosofia militar: a traição, que
deve ser castigada com a tortura (para que o traidor sofra o máximo
possível e revele
informação relevante), e a morte, tanto de traidores como de inimigos.
Mas, na ética militar, a morte de civis também é permitida sob o nome de
dano colateral: a vida humana, mesmo de
inocentes, é apenas um detalhe que não pode atrapalhar o fim último, que
é a
defesa da pátria, a nação, a fé, a soberania, e coisas do gênero.
Os grupos autopercebidos como
esquerda sempre repudiaram a tortura, e estabeleceram a luta contra ela como um
princípio irrenunciável. Entretanto, às vezes se tentou justificar, em alguns
movimentos de outros países a aplicação do que se chamava “pressão
revolucionária”, para obter informações que permitissem salvar a vida de
colegas presos ou em risco de captura.
É importante ter em conta que, do
ponto de vista de uma ética progressista, a vida consciente tem um valor
intrínseco, que não depende de quantas outras vidas estão sendo ameaçadas ao
mesmo tempo. A tradição de esquerda recolhe, de maneira correta, um dos valores
positivos da tradição judia, segundo a qual destruir uma vida humana equivale a
destruir um universo.
Torturar um inimigo para “salvar” vários companheiros significa tomar
decisão sobre a dor e a vida de uma pessoa já rendida. O critério de que deve
salvar-se a vida de alguns destruindo a de outros conduz a uma brutalização
absoluta do sentimento humanitário da esquerda.
É por este tipo de razões que
as “esquerdas” latino-americanas (salvo pequenos grupos) defendem hoje
ditaduras, guerras de extermínio e se aliam com movimentos demagógicos
claramente capitalistas.
Em menor medida, a punição dos
companheiros traidores com a
execução, é um desvio de natureza análoga à “tortura leve” para salvar a vida
alheia. Em sua forma original, o conceito de traição é tipicamente um fetiche militarista e teológico.
Traição significava
a desobediência ou rebelião contra alguém superior (um nobre, um comandante, um
padre, o rei), e era incompatível com qualquer noção de igualdade. O republicanismo
europeu, que era de direita em sua maioria, substituiu estes conceitos
monárquicos, por fetiches “laicos”. A traição seria a desobediência ou dano
contra entes abstratos: pátria, bandeira, uniformes militares, e assim por
diante.
Isso se evidencia já na mitologia.
Judas paga sua traição contra Cristo sendo horrivelmente mordido por Lucifer, e
Dante reserva aos traidores o nono círculo do inferno, o mais fundo e doloroso.
Na militarizada Inglaterra anterior a Segunda Guerra, a noção de traição
impregna a maior parte da literatura.
Ao adotar o conceito de traição e considera-la punível, alguns
movimentos de esquerda aceitaram os fetiches da direita e aproximaram os movimentos revolucionários aos exércitos
regulares. Ou seja, um processo que se propunha emancipar a humanidade, adotava
um estilo próprio das instituições mais escravizadoras da história.
Deve destacar-se, porém, que, no caso
do Brasil, estes fuzilamentos de “traidores” foram poucos, como se reconhece na
matéria de jornal referida acima. Eles mencionam apenas quatro casos. Além
disso, a guerrilha do Brasil não praticou nem mesmo tortura “leve” contra
prisioneiros, como aconteceu em algum outro lugar.
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Civis massacrados em My Lai (1968) |
O problema do dano colateral é muito complexo, mas vou usar um exemplo. Para os
militares, a vida possui pouco valor; não apenas a de civis, também as de suas
próprias tropas, que são mandadas à morte sem nenhuma hesitação.
Portanto, a
morte colateral de pessoas que nada têm a ver com o conflito é perfeitamente
natural. Um carrasco militar argentino e um brasileiro, em diferentes épocas,
usaram a mesma metáfora para referir-se a este assunto:
“Quando você tira um câncer, você
também elimina células periféricas sadias para evitar a expansão. Isso é dano
colateral”.
Exércitos brutais, como os nazistas,
os sul-americanos, ou os do Sudão, da Síria, etc. atacam civis de maneira
premeditada. Não há dano colateral. Todo dano é proposital. Exércitos menos
brutais não visam alvos civis, mas também não se importam com sua vida. Numa
intensidade menor de barbárie estão os que reduzem ao mínimo os danos
colaterais, ou seja, evitam o “desperdiço”.
Ora,
um grupo armado que se reconheça
de esquerda, jamais pode usar o conceito de dano colateral. Um exemplo é
o caso do ERP da Argentina. Em 1972, esse grupo preparou uma tocaia
para um
militar que comandava um campo de tortura. O objetivo não era a
vingança, mas
interromper sua carreira de torturador, beneficiando suas vítimas.
Durante a tocaia, o militar foi morto
a tiros, mas uma bala ricocheteu e matou também um civil. O ERP entendeu que um
grupo marxista não podia aduzir “dano colateral” e suspendeu todas suas ações
armadas, que vinham crescendo. Além disso, publicou comunicados manifestando
sua autocrítica. Embora o ERP não dissera de maneira explícita, entendia-se que
o risco de tortura de companheiros não justificava a morte de nenhum civil, de
alguém alheio à aplicação dessa tortura.
Então, assim como um grupo de
esquerda não tortura nem aceita danos colaterais, tampouco deve fuzilar
traidores. Entretanto, essa conduta de movimentos de esquerda brasileiros, não é
assunto de incumbência das Comissões de Verdade.
O objetivo dessas comissões é mostrar
a verdadeira história dos repressores e individualizar os responsáveis pelo
massacre. A conduta dos militantes é coisa do passado e se suas ações fossem
ainda puníveis, seus possíveis delitos seriam de natureza bem diferente daquela
que a Comissão de Verdade investiga.
Aliás, embora nenhuma execução seja
justificável, pelo menos é preciso tratar todos os casos equivalentes com pesos
similares. De acordo com os arquivos dos principais jornais, a mídia comercial
não condenou os que lutaram violentamente contra o nazismo e o fascismo, nem os
que, desde essa perspectiva, executaram cidadãos pelo fato de ser “traidores”.
É verdade que na França de Vichy houve muitas denúncias que diziam que a
“execução de traidores” eram simplesmente parte do terror comunista. Entretanto, essas críticas provinham de fontes
nazistas, como o círculo do Marechal Pétain, não de jornais supostamente
neutros. Os que hoje denúnciam o “lado obscuro da guerrilha” não têm a
transparência de esclarecer que eles são defensores
daquele terrorismo de estado, e simulam ser neutros.
Em outros países, nem a direita
(salvo a fascista) criticou a execução de colaboracionistas.
Por exemplo, as forças britânicas
justiçaram os colaboracionistas John
Amery (1945), William Joyce (1946) e Theodore Schurch (1946), quando eles já estavam presos, sem representar
perigo para ninguém, e após da conclusão de Guerra, ou seja, quando eles não
podiam ajudar mais os nazistas. (Amery foi morto em dezembro de 1945, então,
bem depois da rendição da Alemanha). Salvo a mídia abertamente pró-Eixo, não
houve críticas ao fuzilamento de colaboracionistas.
O conhecimento do “lado obscuro da
guerrilha” é importante, como qualquer outro dado histórico sobre assuntos
relevantes. Mas, sua difusão neste momento não visa apenas satisfazer a sede de
conhecimentos dos leitores.
O que tenta fazer a
imprensa que foi subserviente à ditadura é encontrar todos os atalhos possíveis
para desmoralizar a investigação dos crimes dos que foram seus benfeitores.
Estas denúncias visam
prover uma CORTINA DE FUMAÇA para confundir o público desinformado.
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Texto original:Carlos Lungarzo (professor titular da Universidade Estadual de Campinas)
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