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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, junho 20, 2012

A AUSÊNCIA DE UMA NOVA NARRATIVA NA RIO + 20

O vazio básico do documento da ONU para a Rio+20 reside numa completa ausência de uma nova narrativa ou de uma nova cosmologia que poderia garantir a esperança de um "futuro que queremos" lema do grande encontro. Assim como está, nega qualquer futuro promissor.
Para seus formuladores, o futuro depende da economia, pouco importa o adjetivo que se lhe agregue: sustentável ou verde. Especialmente a economia verde opera o grande assalto ao último reduto da natureza: transformar em mercadoria e colocar preço àquilo que é comum, natural, vital e insubstituível para a vida como a água, solos, fertilidade, florestas, genes etc. O que pertence à vida é sagrado e não pode ir para o mercado dos negócios. Mas está indo, sob o imperativo categórico: apropia-te de tudo, faça comércio com tudo , especialmente com a natureza e com seus bens e serviços.
Eis aqui o supremo egocentrismo e a arrogância dos seres humanos, chamado também de antropocentrismo. Estes veem a Terra como um armazém de recursos só para eles, sem se dar conta de que não somos os únicos a habitar a Terra nem somos seus proprietários; não nos sentimos parte da natureza, mas fora e acima dela como seus "mestres e donos". Esquecemos, entretanto, que existe toda a comunidade de vida visível (5% da biosfera) e os quintilhões de quintilhões de microrganismos invisíveis (95%) que garantem a vitalidade e fecundidade da Terra. Todos estes pertencem ao condomínio Terra e têm direito de viver e conviver conosco. Sem as relações de interdependência com eles, sequer poderíamos existir. O documento desconsidera tudo isso. Podemos então dizer: Com ele não há salvação. Ele abre o caminho para o abismo. Enquanto tivermos tempo, urge evitá-lo.
Tal vazio se deriva da velha narrativa ou cosmologia. Por narrativa ou cosmologia entendemos a visão do mundo que subjaz às idéias, às práticas, aos hábitos e aos sonhos de uma sociedade. Por ela se procura explicar a origem, a evolução e o propósito do universo, da história e o lugar do ser humano.
A nossa atual é a narrativa ou a cosmologia da conquista do mundo em vista do progresso e do crescimento ilimitado. Caracteriza-se por ser mecanicista, determinística, atomística e reducionista. Por força desta narrativa 20% da população mundial controla e consome 80% de todos os recursos naturais; metade das grandes florestas foram destruídas, 65% das terras agricultáveis, perdidas, cerca de 27 a cem mil espécies de seres vivos desaparecem por ano (Wilson) e mais de mil agentes químicos sintéticos, a maioria tóxicos, são lançados na natureza. Construímos armas de destruição em massa, capazes de eliminar toda vida humana. O efeito final é o desequilíbrio do sistema-Terra que se expressa pelo aquecimento global. Com os gases já acumulados, até 2035 fatalmente se chegará a 3-4 graus Celsius, o que tornará a vida, assim como a conhecemos praticamente impossível.
A atual crise econômico-financeira que mergulha nações inteiras na miséria nos fazem perder a percepção do risco e conspiram contra qualquer mudança necessária de rumo.
Em contraposição, surge a narrativa ou a cosmologia do cuidado e da responsabilidade universal, potencialmente salvadora. Ela ganhou sua melhor expressão na Carta da Terra. Situa nossa realidade dentro da cosmogênese, aquele imenso processo de evolução que se iniciou há 13,7 bilhões de anos. O universo está continuamente se expandindo, se auto-organizando e se autocriando. Nele tudo é relação em redes e nada existe fora desta relação. 
Por isso todos os seres são interdependentes e colaboram entre si para garantirem o equilíbrio de todos os fatores. Missão humana reside em cuidar e manter essa harmonia sinfônica. Precisamos produzir, não para a acumulação e enriquecimento privado mas para o suficiente e decente para todos, respeitando os limites e ciclos da natureza.
Por detrás de todos os seres atua a Energia de fundo que deu origem e sustenta o universo permitindo emergências novas. A mais espetacular delas é a Terra viva e os humanos como a porção consciente dela, com a missão de cuidá-la e de responsabilizar-se por ela.
Esta nova narrativa garante "o futuro que queremos". Do contrário seremos empurrados fatalmente ao caos coletivo com consequências funestas. Ela se revela inspiradora. Ao invés de fazer negócios com a natureza, nos colocamos no seio dela em profunda sintonia e sinergia, respeitando seus limites e buscando o "bem viver" que é a harmonia entre todos e com a mãe Terra. Característica desta nova cosmologia é o cuidado no lugar da dominação, o reconhecimento do valor intrínseco de cada ser e não sua mera utilização humana, o respeito por toda a vida e dos direitos da natureza e não sua exploração e a articulação da justiça ecológica com a social.
Esta narrativa está mais de acordo com as reais necessidades humanas e com a lógica do próprio universo. Se o documento Rio+20 a adotasse, como pano de fundo, criar-se-ia a oportunidade de uma civilização planetária na qual o cuidado, a cooperação, o amor, o respeito, a alegria e espiritualidade ganhariam centralidade. Tal opção apontaria, não para o abismo, mas para o "o futuro que queremos": uma biocivilização da boa esperança.
Texto: Leonardo Boff  (teólogo)

FONTE: FUNDAÇÃO LAURO CAMPOS
*MilitânciaViva

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