No Fórum Social Mundial 2011, realizado em Dakar, no Senegal, a questão do ecossocialismo ocupou novamente espaço dentre os ativistas e participantes desse importante encontro internacional. Mas afinal, o que vem a ser mesmo esse tal de ecossocialismo?
A virada do milênio tem trazido algumas questões novas à extensa pauta das preocupações com o futuro da Humanidade. Na seqüência de eventos históricos carregados de significado, talvez o mais importante tenha sido o fim da experiência do chamado “socialismo real” na maior parte dos países do leste europeu, bem como das conseqüências provocadas sobre os países que dependiam econômica e diplomaticamente daquele bloco em todos os continentes do globo.
O crescimento, em escala global, dos movimentos preocupados com a questão ambiental fortaleceu o surgimento dos próprios partidos chamados “verdes” ou “ecologistas”, que passaram a contar com representantes nos espaços legislativos em grande parte dos países, especialmente aqueles do mundo desenvolvido. Apesar de apresentarem uma visão muitas vezes restritiva em sua pauta política, a entrada em cena desses novos atores representava o início do debate a respeito da questão ambiental de forma institucional e definitiva. Não haveria mais como ignorar esse tema, até então pouco presente de forma explícita nas agendas políticas dos Estados.
Por outro lado, cada vez mais as forças políticas que partilhavam uma visão crítica do modelo de sociedade, tal como praticado pelos países defensores de uma economia de mercado - o nosso antigo e velho conhecido modo capitalista de produção, passaram a incorporar em suas reflexões a preocupação com a questão ambiental. Ou seja, a questão da superação do capitalismo passou a estar acompanhada da preocupação com um modelo social e econômico que estivesse também referenciado na própria sustentabilidade do planeta.
O crescimento da importância e da influência políticas exercidas pelo movimento altermundista reforçou igualmente tal tendência, à medida que as sucessivas edições do Fórum Social Mundial (FSM) aprofundavam os debates a respeito das estratégias para se aproximar do lema “um outro mundo é possível”. Em 2011, no evento realizado há poucos dias em Dakar, no Senegal, a questão do ecossocialismo ocupou novamente espaço dentre os ativistas e participantes desse importante encontro internacional.
Mas afinal, o que é vem a ser mesmo esse tal de ecossocialismo?
A conjugação de forças para a consolidação desse movimento foi bastante dispersa, como tende a ocorrer com as tentativas que buscam refletir uma tendência histórica e/ou conjuntural que perpassa fronteiras nacionais e barreiras de natureza até mesmo político-ideológica. Mas, ao que tudo indica, a idéia para uma iniciativa comum concretizou-se em 2001, quando os professores Joe Kovel (1) e Michael Löwy, dentre outros, propuseram o lançamento de um Manifesto Ecossocialista em escala internacional.
Pode-se começar a ter uma idéia mais objetiva do que seja o movimento a partir das considerações presentes no próprio texto introdutório do documento, escrito há quase uma década:
“O ecossocialismo não é ainda um espectro, tampouco está baseado em partido político ou movimento concreto. É somente uma alínea racional que parte de uma determinada interpretação da crise atual e das condições necessárias para superá-la. Não temos nenhuma pretensão de onisciência. Pelo contrário, nossa meta é convidar ao diálogo, a discussão, as emendas e, sobretudo, pensarmos como podemos efetivar está idéia. Por todos os lugares do universo caótico do capital mundial surgem espontaneamente pontos inumeráveis de resistência. Muitos são intrinsecamente ecossocialistas em seu conteúdo.” (2)
Com isso, percebe-se claramente um avanço em relação às críticas mais características do movimento ecologista. Em geral, este último sempre abriu suas baterias genericamente contra os chamados modelos predatórios e de destruição do meio-ambiente. Já os que se consideram integrantes da corrente ecossocialista procuram identificar no modelo capitalista as causas de tal degradação.
O texto do manifesto é claro quanto a essa qualificação:
“Na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social estão profundamente relacionados e deveriam ser vistos como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais. As primeiras derivam, de uma maneira geral, da industrialização massiva, que ultrapassou a capacidade da Terra absorver e conter a instabilidade ecológica. O segundo deriva da forma de imperialismo conhecida como globalização, com seus efeitos desintegradores sobre as sociedades que se colocam em seu caminho. Ainda, essas forças subjacentes são essencialmente diferentes aspectos do mesmo movimento, devendo ser identificadas como a dinâmica central que move o todo: a expansão do sistema capitalista mundial.” (3)
No entanto, uma das grandes dificuldades de natureza teórica e política de tal proposição reside na maneira de como encarar a questão da inclusão de bilhões de indivíduos em condições de vida minimamente civilizatórias e a questão da redução do abismo de desigualdade sócio-econômica em escala planetária. Afinal, uma coisa é ter preocupação com o modelo de sustentabilidade em sociedades que já atingiram, há muitas décadas, padrões de bem estar social para a maioria das respectivas populações, com infra-estrutura econômica e social implantada no conjunto da sociedade e capacitação produtiva para buscar modelos de produção assim chamados de “verdes” e menos agressivos ao meio-ambiente. Já o desafio apresenta-se muito mais complexo quando se trata de sociedades – a grande maioria do mundo, diga-se de passagem – do mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento. A maior parte da população do mundo vive em países onde o nível de carência básica e as exigências de caráter emergencial exigem soluções muitas vezes contraditórias com o modelo um tanto idealizado do movimento ecossocialista.
A construção de uma estratégia para sustentar um modelo ecossocialista deve passar, necessariamente, pelo enfrentamento da questão do crescimento e do desenvolvimento econômicos. Afinal, não existe alternativa à inclusão social e econômica que não seja por essa via. E nesse momento, na encruzilhada do debate, surge a questão do “limite ao crescimento”, como o próprio manifesto tenta abordar, como veremos no parágrafo abaixo.
“O ecossocialismo insiste em redefinir a trajetória e objetivo da produção socialista em um contexto ecológico. Ele o faz especificamente em relação aos “limites ao crescimento”, essencial para a sustentabilidade da sociedade. Isso sem, no entanto, impor escassez, sofrimento ou repressão à sociedade. O objetivo é a transformação das necessidades, uma profunda mudança de dimensão qualitativa, não quantitativa. Do ponto de vista da produção de mercadorias, isso se traduz em uma valorização dos valores de uso em detrimento dos valores de troca um projeto de relevância de longo prazo baseado na atividade econômica imediata.” (4)
E por mais que se tente argumentar, infelizmente a questão é inescapável. Na situação atual, para a maioria da população do globo, impor limites ao crescimento significa estabelecer algum grau de escassez e de inacessibilidade ao padrão de vida já alcançado justamente pelas sociedades onde surgiram tais teorias. O grande desafio é encontrar um caminho que combine os requisitos de sustentabilidade em escala planetária com a necessária satisfação das necessidades de bilhões de pessoas que se encontram excluídas do acesso a bens básicos. E isso significa, sim, de alguma forma, ampliar o padrão atual de consumo em escala mundial. A busca de respostas, caminhos e soluções para esse dilema é exatamente o foco desse momento que parecemos viver no mundo, desse início de milênio.
Nesse sentido, parece um tanto idealista a proposição de operar exclusivamente na escala local, no plano do microempreendimento. Essa solução pode funcionar em alguns casos, em alguns países, mas dificilmente dará conta, no curto e no médio prazos, do atendimento em escala ampla. Da forma como o manifesto trata esse ponto, a livre associação de produtores pareceria capaz de oferecer a solução de generalizar a produção em bases ecológicas. Senão vejamos,
“A generalização da produção ecológica sob condições socialistas pode fornecer a base para superação das crises atuais. Uma sociedade de produtores livremente associados não cessa sua própria democratização. Ela deve insistir em libertar todos os seres humanos como seu objetivo e fundamento. Ela supera assim o impulso imperialista subjetiva e objetivamente.” (5)
Como se pode perceber, a questão é bastante complexa e não poderia ser esgotada aqui nesse espaço. Resolver essa dificuldade implica, entre outros aspectos, em reconhecer que o tratamento da sustentabilidade e dos diversos modelos a serem adotados deve obedecer, entre outros, ao critério da diversidade. E, desse ponto de vista, o ecossocialismo para as latitudes ao sul do Trópico de Câncer deveria merecer critérios diferenciados em relação àqueles da Europa e América do Norte. A maioria dos países da África, da Ásia, da América e da Oceânia apresenta carências urgentes e imediatas. O contra-argumento, igualmente relevante e essencial, é de que qualquer caminho deve levar em consideração os limites físicos do potencial de recursos físicos do planeta.
O momento atual e os anos a seguir serão fundamentais para que se encontrem soluções capazes de combinar o caminho da sustentabilidade da Terra, da redução das desigualdades entre as populações e do atendimento de padrões de vida condignos para todos.
NOTAS
(1) Ver entrevista em http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17428
(2) Ver a íntegra em: http://www.iefd.org/manifestos/ecosocialist_manifesto.php
(3) Idem.
(4) Idem.
(5) Idem.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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