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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, fevereiro 22, 2011

Ecosscialismo. Por uma ecologia socialista.



Entrevista especial com Michael Löwy
A crise ecológica abre a possibilidade para um novo projeto político, econômico e social: o ecossocialismo, defendido pelo sociólogo brasileiro, radicado na França, Michael Löwy. A ideia central da proposta é romper com o capitalismo e transformar as estruturas das forças produtivas e do aparelho produtivo. “Trata-se de destruir esse aparelho de Estado e criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado”, esclarece.
Crítico ao capitalismo verde, que pretende transformar o capital e torná-lo menos agressivo ao meio ambiente, Löwy acredita que a crise ecológica é mais grave do que a econômica, pois “coloca em perigo a sobrevivência da vida humana neste planeta”. Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, ele enfatiza que é preciso reorganizar o modo de produção e consumo, atendendo “às necessidades reais da população e à defesa do equilíbrio ecológico”. As economias emergentes devem se desenvolver, mas não precisam “copiar o modelo de desenvolvimento capitalista do Ocidente”, aconselha. “Se trata de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria”.
Michael Löwy é cientista social e leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, da Universidade de Paris. Entre sua vasta obra, destacamos Ideologias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista (São Paulo: Cortez, 1985); As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen (São Paulo: Cortez, 1998); A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002); Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” (São Paulo: Boitempo, 2005) e Lucien Goldmann, ou a dialética da totalidade (São Paulo: Boitempo, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que o senhor entende por ecossocialismo? Quais as ideias principais dessa corrente?
Michael Löwy – O ecossocialismo é uma proposta estratégica que resulta da convergência entre a reflexão ecológica e a reflexão socialista, a reflexão marxista. Existe hoje em escala mundial uma corrente ecossocialista: há um movimento ecossocialista internacional, que recentemente, por ocasião do Fórum Social Mundial de Belém (janeiro de 2009), publicou uma declaração sobre a mudança climática; e existe no Brasil uma rede ecossocialista que publicou também um manifesto, há alguns anos. Ao mesmo tempo, o ecossocialismo é uma reflexão crítica.
Em primeiro lugar, crítica à ecologia não socialista, à ecologia capitalista ou reformista, que considera possível reformar o capitalismo, desenvolver um capitalismo mais verde, mais respeitoso ao meio ambiente. Trata-se da crítica e da busca de superação dessa ecologia reformista, limitada, que não aceita a perspectiva socialista, que não se relaciona com o processo da luta de classes, que não coloca a questão da propriedade dos meios de produção. Mas o ecossocialismo é também uma crítica ao socialismo não ecológico, por exemplo, da União Soviética, onde a perspectiva socialista se perdeu rapidamente com o processo de burocratização e o resultado foi um processo de industrialização tremendamente destruidor do meio ambiente. Há outras experiências socialistas, porém, mais interessantes do ponto de vista ecológico – por exemplo, a experiência cubana (com todos seus limites).
O projeto ecossocialista implica uma reorganização do conjunto do modo de produção e de consumo, baseada em critérios exteriores ao mercado capitalista: as necessidades reais da população e a defesa do equilíbrio ecológico. Isto significa uma economia de transição ao socialismo, na qual a própria população – e não as leis do mercado ou um “burô político” autoritário – decide, num processo de planificação democrática, as prioridades e os investimentos. Esta transição conduziria não só a um novo modo de produção e a uma sociedade mais igualitária, mais solidária e mais democrática, mas também a um modo de vida alternativo, uma nova civilização, ecossocialista, mais além do reino do dinheiro, dos hábitos de consumo artificialmente induzidos pela publicidade, e da produção ao infinito de mercadorias inúteis.
IHU On-Line – Em que consiste o Manifesto Ecossocialista Internacional?
Michael Löwy – O Manifesto Ecossocialista Internacional, redigido em 2001 por Joel Kovel e por mim, foi uma primeira tentativa de resumir, em algumas páginas, as ideias principais do ecossocialismo, como projeto radicalmente anticapitalista e antiprodutivista, e como crítica às experiências socialistas não ecológicas do século XX.
IHU On-Line – A tentativa de aplicar o socialismo no mundo fracassou. Será possível vingar o ecossocialismo? Por quê?
Michael Löwy – As experiências de corte social-democrata fracassaram porque não sairam dos limites de uma gestão mais social do capitalismo e, nos últimos anos do neoliberalismo, as experiências de tipo soviético ou stalinista fracassaram por ausência de democracia, liberdade e auto-organização das classes oprimidas. As duas tinham em comum uma visão produtivista de exploração da natureza, com dramáticas consequências ecológicas.
O ecossocialismo parte de uma visão crítica destes fracassos e propõe um projeto democrático, libertário e ecológico. Nada garante que possa vingar. Depende das lutas ecossociais do futuro.
IHU On-Line – Sob quais aspectos a crise ecológica é mais grave do que a econômica?
Michael Löwy – A crise econômica tem consequências sociais dramáticas – desemprego, crise alimentar etc. –, mas a crise ecológica coloca em perigo a sobrevivência da vida humana neste planeta. O processo de mudança climática e aquecimento global, provocado pela lógica expansiva e destruidora do capitalismo, pode resultar, nas próximas décadas, numa catástrofe sem precedente na história da humanidade: desertificação das terras, desaparecimento da água potável, inundação das cidades marítimas pela subida do nível dos oceanos etc.
IHU On-Line – Como pensar em ecossocialismo se a Modernidade é capitalista? Seria
o ecossocialismo uma proposta para romper com o capital?
Michael Löwy – Absolutamente! Uma das ideias fundamentais do ecossocialismo é a necessidade de uma ruptura com o capitalismo. Uma ruptura que vai mais além de uma mudança das relações de produção, das relações de propriedade. Trata-se de transformar a própria estrutura das forças produtivas, a estrutura do aparelho produtivo. Há que aplicar ao aparelho produtivo a mesma lógica que Marx aplicava ao aparelho de Estado a partir da experiência da Comuna de Paris, quando ele diz o seguinte: os trabalhadores não podem apropriar-se do aparelho de Estado burguês e usá-lo a serviço do proletariado; não é possível, porque o aparelho do Estado burguês nunca vai estar a serviço dos trabalhadores.
Então, trata-se de destruir esse aparelho de Estado e de criar um outro tipo de poder. Essa lógica tem que ser aplicada também ao aparelho produtivo: ele tem que ser, senão destruído, ao menos radicalmente transformado. Ele não pode ser simplesmente apropriado pelos trabalhadores, pelo proletariado e posto a trabalhar a seu serviço, mas precisa ser estruturalmente transformado. É impossível separar a ideia de socialismo, de uma nova sociedade, da ideia de novas fontes de energia, em particular do Sol – alguns ecossocialistas falam do comunismo solar, pois entre o calor, a energia do Sol e o socialismo e o comunismo haveria uma espécie de afinidade eletiva.
IHU On-Line – Como o ecossosialismo pode se sustentar em economias emergentes, que ainda não conquistaram um status de bem-estar social das economias desenvolvidas?
Michael Löwy – As economias dos países do Sul, da Ásia, África e América Latina devem se desenvolver, mas isto não significa copiar o modelo de desenvolvimento capitalista do Ocidente e seu padrão de consumo insustentável. Trata-se de buscar um outro modelo, um desenvolvimento ecossocialista, baseado na agricultura orgânica dos camponeses e nas cooperativas agrárias, nos transportes coletivos, nas energias alternativas e na satisfação igualitária e democrática das necessidades sociais da grande maioria. O modelo ocidental não so é absurdo e irracional, mas não é generalizável: se os chineses quisessem imitar o American way of life, cinco planetas seriam necessários.
IHU On-Line – A humanidade deve preocupar-se com o ecossocialismo ou com o capitalismo verde?
Michael Löwy – O capitalismo verde é uma contradição nos têrmos. A lógica intrinsecamente perversa do sistema capitalista, baseada na concorrência impiedosa, nas exigências de rentabilidade, na corrida pelo lucro rápido, é necessariamente destruidora do meio ambiente e responsável pela catastrófica mudança do clima. As pretensas soluções capitalistas como o etanol, o carro elétrico, a energia atômica, as bolsas de direitos de emissão são totalmente ilusórias.
Os acordos de Kyoto, a fórmula mais avançada até agora de capitalismo verde, demonstrou-se incapaz de conter o processo de mudança climática. As soluções que aceitam as regras do jogo capitalista, que se adaptam às regras do mercado, que aceitam a lógica de expansão infinita do capital, não são soluções, são incapazes de enfrentar a crise ambiental – uma crise que se transforma, devido à mudança climática, numa crise de sobrevivência da espécie humana. Como disse recentemente o secretário das Nações Unidas, Ban Ki Moon: “Estamos correndo para o abismo com os pés colados no acelerador”.
IHU On-Line – Em que sentido a crise ecológica atual pode ser entendida como um
problema de luta de classes?
Michael Löwy – Por um lado, a crise ecológica é um problema de toda a humanidade, pessoas de várias classes sociais podem se mobilizar por esta causa. Por outro lado, as classes dominantes são cegadas por seus interesses imediatos, pensam exclusivamente em seus lucros, sua competitividade, suas partes de mercado e defendem, com unhas e dentes, o sistema capitalista responsavel pela crise. As classes subalternas, os trabalhadores da cidade e do campo, os desempregados, o pobretariado têm interesses conflitivos com o capitalismo e podem ser ganhos para o combate ecossocialista. Não se trata de um processo inevitável, mas de uma possibilidade histórica.
IHU On-Line – Nas últimas conferências do clima, em Copenhague e Cancun, os movimentos sociais e ambientalistas fracassaram? Por que não se vê perspectiva de avançar nas lutas ambientais?
Michael Löwy – O que fracassou em Copenhague e Cancun foram as políticas dos governos comprometidos com o sistema, que demonstraram sua total incapacidade de tomar qualquer decisão, mesmo a mais ínfima, no sentido de buscar reduzir significativamente as emissões de CO2, responsáveis pelo aquecimento global.
A manifestação de cem mil pessoas nas ruas de Copenhague nem 2009, protestando contra o fracasso da conferência oficial, com a palavra de ordem “Mudemos o sistema, não o clima”, é um primeiro passo, alentandor, no sentido de uma mobilização ecológica radical. Ainda estamos longe de ter uma luta ecológica planetária capaz de mudar a relação de forças e impor as drásticas mudanças necessárias. Mas esta é a única esperança de evitar a catástrofe anunciada.
IHU On-Line – Considerando o contexto de capitalismo exacerbado, acredita que as pessoas estão preparadas para o ecossocialismo?
Michael Löwy – Existe um sentimento anticapitalista difuso na América Latina, na Europa e em outras partes do mundo. O movimento altermundialista é uma das expressões disto. Por outro lado, cresce a consciência ecológica, a preocupação com as ameaças profundamente inquietantes que representa a mudança climática. Mas é no curso das lutas ecossociais contra as multinacionais destruidoras do meio ambiente e contra as políticas neoliberais que poderá surgir uma perspective ecossocialista. Não há nenhuma garantia; é apenas uma possibilidade, mas dela depende o futuro da vida neste planeta.
IHU On-Line – Qual é o papel das populações originárias como os indígenas e quilombolas na consolidação do ecossocialismo?
Michael Löwy – Em toda a América Latina – mas também na América do Norte e em outras regiões do mundo – as populações indígenas estão na primeira linha do combate à destruição capitalista do meio ambiente, em defesa da terra, dos rios, das florestas, contra as empresas mineiras, o agronegócio e outras manifestações da guerra do capital contra a natureza. Não por acaso os indígenas tiveram um papel determinante na organização da Conferência de Cochabamba em Defese da Mãe Terra e contra a Mudança Climática, em 2010, que contou com a participação de dezenas de milhares de delegados de comunidades indígenas e movimentos sociais. Temos muito a aprender com as comunidades indígenas, que representam outra visão da relação dos seres humanos com a natureza, totalmente oposta ao ethos explorador e destruidor do mercantilismo capitalista. Como diz nosso companheiro, o histórico lider indígena peruano Hugo Blanco: “Os indígenas já praticam o ecossocialismo há séculos!”
*comtextolivre

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