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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, novembro 03, 2011

HOMENS EM TEMPOS SOMBRIOS: LEON TROTSKY


Há 71 anos, em 20 de agosto de 1940, Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução Bolchevique de 1917, era assassinado no México, onde estava exilado, por um sicário de Stálin, Ramón Mercader (foto acima). Falar de Trotsky ou de Revolução Bolchevique hoje em dia parece ser um convite a contrair irritação nas vias respiratórias depois de ter revirado o pó do baú da vovozinha. Afinal, num mundo onde a ideia de democracia virou consenso, pensar em revoluções socialistas e regimes de partido único soa atualmente tão demodée quanto o absolutismo de Luís XIV. No entanto, até 25 anos atrás, o comunismo ainda era uma força política poderosa e influente em todo o mundo. É verdade que foi uma utopia que se degenerou em regimes totalitários ou semi-totalitários de triste memória na Rússia e na Europa do Leste. 
Mas o comunismo soviético representou um contraponto fundamental à selvageria natural do capitalismo - além de ter sido imprescindível para a derrota do nazismo na II Guerra Mundial. Como disse certa vez Alexander Yakovlev, um dos formuladores da glasnost de Mikhail Gorbatchev, o grande legado da Revolução de Outubro não deve ser buscado na Rússia, mas no Ocidente. O motivo é que a simples existência do país dos sovietes deixava os líderes dos países capitalistas temerosos de que os Partidos Comunistas inspirados por Moscou tomassem o poder, o que levou muitos à criação do Welfare State social-democrata. Tanto que, depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do comunismo, a "nova ordem mundial" neoliberal avançou com as garras e o apetite de aves de rapina sobre os direitos e as conquistas dos trabalhadores ocidentais. Até que a queda do outro muro, o de Wall Street em 2008, colocasse em dúvida o modelo de capitalismo sem peias sacralizado pelo Consenso de Washington.

A titânica luta de Trotsky contra Stálin granjeou-lhe a fama de heroi trágico. Mas sua trajetória é bem mais complexa e bem menos linear do que supõe a vã filosofia maniqueísta - marxista ou não. Em 1902, Trotsky aproximou-se de Vladimir Lênin, líder do então Partido Operário Social Democrata Russo, mas logo se tornou crítico das idéias deste sobre o papel do partido como vanguarda revolucionária. Na Revolução de 1905, como presidente do soviete de São Petersburgo, Trotsky defendeu a “democracia de massas” contra o partido leninista. Mas em 1917, quando o czarismo caiu, Trotsky se reaproximou dos bolcheviques e se tornou, junto com Lênin, um dos dirigentes máximos da Revolução de Outubro. Dizem que, naquele momento, Lênin aceitou as teses de Trotsky sobre a inevitabilidade de uma Revolução Socialista - e não apenas "democrática-burguesa" - e que Trotsky, em contrapartida, engoliu o "centralismo democrático".    

Uma vez no poder, Trotsky demonstrou um fervor de "cristão novo" na defesa da tese leninista sobre o papel dirigente do partido. E ele se saiu "melhor que a encomenda", enterrando a postura libertária do passado e revelando-se até mais autoritário do que Lênin, como mostram sua condução implacável do Exército Vermelho, a repressão impiedosa que ele dirigiu contra os operários da base naval de Kronstadt – que em 1921 se rebelaram contra a autocracia bolchevique – e a vigorosa defesa que fez da “militarização do trabalho” em plena fase de estabilização política do regime.

Foi como Comissário de Guerra, aliás, que Trotsky mostrou sua impressionante capacidade de organização. Para enfrentar os exércitos de 21 países que, aliados às tropas “brancas” russas da contra-revolução, tentavam derrubar o regime comunista, Trotsky criou, praticamente do nada, o Exército Vermelho. Convencido de que a guerra moderna exigia conhecimentos militares especializados e férrea disciplina, ele ordenou o recrutamento compulsório dos camponeses e não vacilou em pôr no comando antigos oficiais do Exército czarista, embora vigiados por “comissários políticos” do partido. Baixou o centralismo punindo exemplarmente com a pena de morte atos de deserção ou indisciplina. Com isso, entrou em choque com a velha guarda bolchevique, que queria uma milícia popular dirigida por comunistas, com oficiais eleitos pela tropa. “Aviso que se qualquer unidade recuar sem ordens para tal, o primeiro a ser fuzilado será o comissário da unidade, e depois o comandante”, dizia Trotsky em uma de suas ordens. A dramática vitória militar contra os brancos e estrangeiros e o apoio irrestrito de Lênin fizeram triunfar a visão de Trotsky de um Exército não-partidário – mas atraíram a oposição de Stálin e da velha guarda.

O sucesso de Trotsky lhe subiu à cabeça e ele achou que poderia aplicar a fórmula vitoriosa nos campos de batalha nas fábricas. Acabada a guerra, a economia russa estava degringolada pela destruição do parque produtivo. Durante a Guerra Civil (1918-1921), esteve em vigor o “comunismo de guerra”, que estatizou totalmente a economia, requisitou a totalidade da produção agrícola e suspendeu todas as liberdades. Em 1920 Trotsky foi encarregado de organizar o transporte ferroviário na Rússia – um setor então controlado pelos sindicatos. E ele repetiu a fórmula que havia adotado na formação do Exército Vermelho: colocou os ferroviários sob lei marcial e intensificou o trabalho. Quando o sindicato protestou, Trotsky afastou seus dirigentes e nomeou interventores. Agiu da mesma forma nos sindicatos de trabalhadores em transportes. Os resultados foram superiores às expectativas e a reabilitação dos transportes ocorreu muito antes do previsto. Entusiasmado pelo êxito, Trotsky passou a defender a “militarização dos sindicatos”, que consistia numa atualização do “comunismo de guerra”, com a mobilização forçada de trabalhadores ociosos e a substituição de dirigentes sindicais “rebeldes” por líderes nomeados pelo governo e comprometidos com metas de produção. Mas a proposta de Trotsky foi derrotada pela Nova Política Econômica (NEP) de Lênin, que restabelecia parcialmente as práticas capitalistas de produção ao permitir que os camponeses vendessem o excedente no mercado. A partir daí, Trotsky ficaria cada vez mais isolado. A morte de Lênin, em 1924, abriu caminho para que seus adversários, principalmente Stálin - a quem ele subestimara completamente, mas que detinha o controle do aparelho burocrático do partido - o afastassem do poder.
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Trotsky defendia a radicalização da revolução no campo, com o fim da NEP, a expropriação dos camponeses e a estatização da propriedade da terra. Em aliança com Nikolai Bukhárin, teórico da "via capitalista" no campo, Stálin manteve a NEP e abraçou a ideia de "socialismo num só país". Uma vez eliminada a "oposição de esquerda", anos depois, o próprio Stálin se voltaria contra Bukhárin, implantando em seguida a política trotsquista. Foi a "coletivização forçada" da agricultura, que, por meio de uma "acumulação primitiva de capital" sui generis, fez da União Soviética uma potência industrial - a ferro e fogo. A Trotsky, expulso do partido, exilado, vagando de país em país até se fixar no México, não restou outra coisa senão teorizar sobre a "Revolução Permanente" e fundar a IV Internacional - um clube de diletantes que fez muito barulho por nada - na esperança de implementá-la. Até ser atingido pelo quebra-gelo de Ramón Mercader.

 "O mundo estava saturado de contradições extraordinárias. Em tempo algum o capitalismo esteve tão próximo da catástrofe quanto durante as depressões e colapsos da década de 1930; e em tempo algum mostrou uma elasticidade tão selvagem [...] Nunca tão grandes massas foram inspiradas pelo socialismo; e nunca foram tão impotentes e inermes. Em toda a história do homem moderno, nada é tão sublime e repulsivo quanto o primeiro Estado proletário e a primeira experiência em 'construir o socialismo'. E talvez nenhum homem tenha vivido numa comunhão tão próxima com os sofrimentos e com as lutas da humanidade oprimida e numa solidão tão profunda quanto Trotsky", escreveu Issac Deutscher, o maior biógrafo de Trotsky, em O Profeta Banido.
 

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