Magrão (1954-2011), o que viveu na alegria, sem medo
Magrão tinha o atributo que eu mais admiro num ser humano. Jamais sacrificava a dignidade ou a alegria em nome de uma vitória, fosse ela esportiva, política ou pessoal de qualquer tipo. Das muitas qualidades que possuía, essa era a mais especial, posto que joia rara: ele, que venceu tanto, sabia abraçar e amar as derrotas, sabia que nelas é que realmente conhecemos o mundo, as pessoas e as coisas, sabia que são elas que encerram o segredo. Na derrota mais famosa e doída do futebol brasileiro na segunda metade do século XX, ele foi o capitão, o poeta, o trovador e o filósofo. Não havia experiência mais incrível que se sentar com ele à mesa, com cerveja, e ouvi-lo dizer o que é ganhar, cara? Ganhar não é porra nenhuma; ganhar não é merda nenhuma!, e soltar aquela gargalhada de quem deixava no ar um pouquinho mais do que o dito.
Sócrates caminhava com a leveza e a tranquilidade dos que nunca traíram seus princípios. Num meio superlotado de cabeças-de-bagre, fraudes, impostores, mascarados e mercenários, ele foi um gênio com a bola—quem viu jogar, não se esquecerá nunca—e, depois, um verdadeiro colosso, simples e íntegro. Como apontado aqui outro dia, caminhar com ele era enlouquecedor, porque ele não só atendia com atenção qualquer pessoa que chegasse querendo um autógrafo, uma foto, um bate-papo ou um abraço. Ele nunca fazia o movimento de encerrar a conversa, por mais chato que fosse o interlocutor. Magrão era um exemplo de como se relacionar com o tempo. Raras vezes na minha vida eu me preocupei tão pouco com o tempo como quando bebi cerveja com ele. A alegria era tão contagiante que soterrava qualquer possibilidade de cálculo.
Em Londres: Magrão, eu, José Miguel Wisnik e Alex Bellos. Foto: Christina Baum
Magrão, o cérebro da Democracia Corintiana, era de esquerda, mas daquela estirpe legítima e autêntica, ou seja, internacionalista. Quando nos reunimos em Londres, num festival literário dedicado ao Brasil, a fala de Magrão—da qual eu tive a honra de ser o intérprete simultâneo, tarefa nada fácil, pois ele sabia driblar também ao falar—foi a que mais destoou do ufanismo de alguns outros convidados. Foi ele quem nos lembrou de tudo o que ainda restava por fazer no Brasil, precisamente ele, que tinha feito mais que todos nós juntos para que as coisas melhorassem tanto no país. Quando nos reunimos em Curitiba, foi ele—muito antes de mim, de Leandro Fortes, de José Miguel Wisnik, outros convidados do belo encontro organizado por Rodrigo Merheb—que nos lembrou o que aguardaria os pobres das capitais brasileiras na preparação para a Copa. Ele sempre, sempre pensava nos mais fracos, nos mais pobres, nos que não tinham condições de se defender. Era uma espécie de generosidade que tinha o dom de ser, simultaneamente, alegre e guerreira.
Os fariseus de sempre repetirão seus mantras moralistas, suas racionalizações a posteriori, seus conselhos retirados de manuais de bom comportamento. Não entenderão nunca a lição e o legado de Magrão: abraçar a vida, afirmá-la incondicionalmente, com todos os seus riscos e em toda a sua intensidade. Bastavam algumas horas com ele para que você se desse conta de que era um sujeito que havia chegado a esse estágio superior, especial: o de viver sem medo.
Até já, Doutor. Tá confirmada aquela próxima cerveja. Vai na paz.
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