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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, dezembro 19, 2011

O Capital atormentado

  Por Sergio Nogueira Lopes - do Rio de Janeiro
Capa-Times
Os manifestantes que se erguem, mundo afora, pelas mais diferentes razões, foi para a capa da revista norte-americana Time
O Congresso norte-americano acaba de aprovar a Lei Nacional de Autorização de Defesa, que confere poder ao governo daquele país, de usar as Forças Armadas contra a sua própria população, prender por tempo indeterminado norte-americanos em qualquer lugar do mundo, sem nenhuma acusação aparente ou o devido processo legal. A medida passou no Senado por 93 votos a sete. Segue, agora, para sanção do presidente Obama. O fato ocorre quase simultaneamente à maior mobilização já convocada naquele país nas últimas décadas, em apoio ao movimento ocupar Wall Street (OWS), que paralisou os principais portos da Costa Oeste e tende a recrudescer.
A violência contra os manifestantes que denunciam o imenso poderio do mercado financeiro sobre a vida de bilhões de seres humanos é mais um fator de consternação para todos os que tomaram por verdadeiro o país, cantado no hino nacional como a terra da liberdade, onde mora a bravura, “land of the free and the home of the brave”. E esse sentimento é devastador. Libertos da influência do capital que, normalmente esmaga as iniciativas contrárias à sua supremacia, os militantes do OWS planejam e realizam a mais longa e vigorosa marcha contra o poder controlado pelas grandes corporações e colocam em xeque o sistema que sustenta a nação-símbolo da democracia no mundo.
O fato é que começa a ficar claro, para a maioria das pessoas, de mediano entendimento, o real sentido da sociedade de consumo que rege a vida não apenas dos norte-americanos, mas de todos os habitantes dos países capitalistas do mundo e de parte das nações comunistas, salvo raríssimas exceções. O movimento, que tenta ocupar não apenas Wall Street mas todas as cidades dos EUA, paralisa os portos e, daqui a pouco, as estações de trem, as rodovias e os aeroportos para alertar sobre o dramático poder de destruição do capital desvairado que impôs ao planeta uma fórmula capaz de destruí-lo numerosas vezes, seja no efeito estufa causado pela miríade de automóveis em circulação, seja pelas bombas nucleares ou pela boca, envenenado por doses maciças de fast food. Enfim, uma tormenta sobre corpos e mentes que já não sentem mais a pujança de um mundo ascendente.
Atônito diante da onda de protestos que varre o mundo e abismado com as primaveras árabe e russa, ainda atordoado com os ataques do Talebã e as bombas no Iraque, o governo dos EUA encontra agora, na repressão dura aos seus próprios cidadãos, a única forma de tentar manter os dedos intactos e buscar de volta os anéis, em meio à balbúrdia em que se perderam nas ruas de Nova York, ou seja, estão todos autorizados a baixar o cacete na moçada e atingir, sem piedade a face plana da democracia. Este talvez seja o sistema de organização social mais ineficiente e perigoso já criado pela humanidade, embora siga como a forma considerada a mais próxima da representação da vontade popular.
Diante do ataque eficaz ao inequívoco pilar central da sociedade norte-americana, percebe-se que o cerne do capitalismo apodreceu e, na realidade, nunca foi sinônimo de democracia. Significa apenas lucro, juros, usura, desemprego, manipulação da opinião pública, concentração de riqueza, egoísmo e destruição. Acossado pela crise mundial que assola os países mais ricos do Ocidente, fica evidenciada a hipocrisia da placidez democrática exigida aos países pobres do Oriente Médio, da África e Ásia para que os EUA implantem, a ferro e fogo, o american way of life, entupido de hambúrgueres, refrigerantes e goma de mascar, sabor piche. Pensar que um dia a Líbia será uma nação democrática, a exemplo da América do Norte, é no mínimo uma falácia. O apoio norte-americano aos grupos fundamentalistas que derrubaram uma série de ditadores africanos revela-se, cada vez mais, um tiro pela culatra. A ampliação da Sharia, a lei fundamentalista islâmica, é uma realidade na maioria dos países onde ocorrem as insurreições.
Em nome da democracia, esta vetusta e esfarrapada senhora representada na Estátua da Liberdade e que leva uma surra de cacetes nos becos de Manhattan, os falcões norte-americanos encheram burras de dinheiro e levaram para o túmulo milhões de jovens heróis das guerras travadas ao longo dos últimos séculos. Patrocinaram golpes de Estado aqui na América Latina, assassinaram supostos ditadores nas republiquetas das bananas, impuseram seus cúmplices nos governos daquele areal onde jorra o petróleo, outrora berço cultural da humanidade, e de forma silenciosa, manobram até os carrinhos de compras dos supermercados para que se consuma apenas o que eles determinam.
O desejo frustrado de mudanças, nas últimas eleições presidenciais dos EUA revela agora o seu preço. E o mundo observa, com uma lupa, os próximos passos daquele eleito com o slogan: “sim, nós podemos”. Obama não disse, até agora, ás vésperas de sua sucessão se pretende seguir no apoio ao 1% de Wall Street ou aos 99% restantes de seus eleitores. O suspense inexiste na realidade, mas é sugerido apenas para evitar a comoção pública e a revolta generalizada que se avizinha na terra de Tio Sam. Todos intuem, de uma forma ou de outra, quem sairá vitorioso desse atormentado embate. Quem será?
Sergio Nogueira Lopes é sociólogo e escritor, autor de O Mal Ronda o Mosteiro, entre outros.
*CorreiodoBrasil

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